As arenas do entretenimento
Nas arenas da história, ao pretexto de eliminar pessoas sem humanidade, muitos crimes foram praticados. E na atualidade, ainda pautada na política de pão e circo, as arenas do entretenimento seguem o mesmo curso.
quinta-feira, 8 de abril de 2021
Atualizado em 9 de abril de 2021 14:01
Impressiona o quão conivente somos com práticas que desumanizam pessoas. Durante séculos a sociedade assistiu aos diversos episódios de crueldade e desumanidade, que embora tenham adquirido outra roupagem, seguem com força total. Um mergulho na história é o quanto basta para constatarmos o nosso fracasso civilizatório.
A desumanização tem legitimado, durante diferentes períodos históricos, a prática de tortura e de morte.
Jesus Cristo, alvo máximo da crueldade, ousou defender sua humanidade. Foi proclamado santo, Messias, o salvador, e esse fato foi o quanto bastou para que a sua condição de ser humano fosse afastada. A santidade retirou-lhe a humanidade.
Durante a Inquisição diversas mulheres foram queimadas vivas, porque lá, ao contrário de Jesus, a humanidade delas foi retirada não pela santidade, mas pela malignidade conferida por Satã.
Tempos depois a igreja propagou a ideia de que pessoas negras não eram detentoras de alma, o que possibilitou a equiparação de pessoas a coisas. Parcela da comunidade médica endossou o absurdo entendimento e sustentou a inferioridade de negros. Sem humanidade, o mundo não se importou com o sequestro de povos para serem escravizados em outros continentes. E neste ponto vale um alerta, a desumanização de negros persiste até hoje e o extermínio da juventude negra é a consequência.
Os horrores do nazismo ainda são latentes. Ideias eugenistas de pureza de raças desumanizaram judeus, pessoas LGBTQIA+, portadoras de necessidades especiais, conduzindo-as ao extermínio em campos de concentração.
Pois bem, nas arenas da história, ao pretexto de eliminar pessoas sem humanidade, muitos crimes foram praticados. E na atualidade, ainda pautada na política de pão e circo, as arenas do entretenimento seguem o mesmo curso.
É o caso do reality Big Brother Brasil, em que a audiência sedenta se delicia com as desavenças e conflitos estimulados pela proposta do programa, mas nisso não há problema algum. A problemática reside na aceitação pela emissora de condutas discriminatórias, que acabam por conduzir, assim como nos processos históricos narrados acima, à desumanização.
As respostas do público por meio de cancelamentos, críticas, manifestações de apoio, sem a contrapartida da emissora, não são suficientes. O altíssimo lucro adquirido com a audiência exige como contrapartida o posicionamento responsável e comprometido com à dignidade humana.
Assim como as desculpas não apagam as dores sentidas por vítimas, sermões proferidos ao vivo, com atraso e somente após repercussões negativas, também não podem ser interpretados como satisfatórios. A resposta das emissoras precisa ser mais contundente e ágil, para que ações desumanizadoras sejam efetivamente cessadas.
Pessoas marcadas pela dor que a discriminação traz não suportam mais a exposição de suas feridas nas telas da TV sem nenhuma consequência. O dano causado por essas práticas ultrapassa à vítima direta e alcança o coletivo formado por pessoas pertencentes ao grupo ofendido.
A imprensa é agente de informação, mas também de transformação social e nessa segunda função precisa ser tão exitosa quanto na primeira. Ainda hoje, grupos minoritários (em espaços de poder e não em números) são sub-representados nas mídias televisivas, ou pior, são representados a partir de estereótipos negativos.
É comum assistirmos às pessoas negras serem relacionadas à criminalidade, pessoas LGBTQIA+ sendo relacionadas a escândalos, indígenas às pessoas que necessitam de educação, enfim, estereótipos que diminuem a importância desses grupos no mundo, e isso possibilita a retirada ou a relativização de suas humanidades.
À Rede Globo não cabe, portanto, o papel de administradora da arena de gladiadores que participam do Big Brother Brasil, mas sim o de utilizar de seu espaço de privilégio e de responsabilidade para se posicionar, com a agilidade e o rigor necessários, contra toda e qualquer ação discriminatória. A máxima de Rui Barbosa de que "a justiça tardia não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta" se amolda ao ponto aqui defendido.
Episódios como o ocorrido com o João Pedrosa (BBB21) podem configurar crime de racismo, ou de injúria racial; Episódios de violência psicológica, como os havidos com o participante Lucas Penteado (BBB21), podem configurar lesão corporal, já que a concepção de saúde abrange a integridade física e mental e o abalo a qualquer delas configura lesão; Episódios como o de Guilherme (BB20) poderia configurar LGBTfobia, equiparado ao racismo. Todos, portanto, refletem práticas eventualmente criminosas, que não podem ser naturalizadas como se entretenimento fossem.
Essa é uma chamada pública não só à Rede Globo, mas a todas as emissoras, para que assumam a sua gigantesca responsabilidade de serem agentes de transformação social, com a reprovação de práticas que atentem contra a dignidade humana em seus programas, sob pena de, ainda que por omissão, deixem sangrar os seus gladiadores, que tem sido fonte de tanto lucro.
Priscila Pamela C. Santos
Advogada Criminal. Sócia do escritório Araujo Recchia Santos Sociedade de Advogadas.