Sobre o PL da "Bolsa Estupro"
O presente escrito trata do polêmico PL 5435 (Bolsa Estupro) e sua possível inconstitucionalidade, além de realizar um paralelo com a jurisprudência do STF e uma aproximação de Direito Comparado.
quinta-feira, 8 de abril de 2021
Atualizado às 10:17
Em 1985, o Tribunal Constitucional da Espanha julgava a constitucionalidade de projeto de lei que buscava descriminalizar o aborto em determinadas hipóteses. O resultado foi a Sentencia 531, reconhecida como marco por obrigar o legislador espanhol a estabelecer hipóteses permissivas de aborto, ainda que restritivas, de modo a não anular direitos fundamentais das mulheres, em especial quando vítimas de estupro.
A Corte espanhola, ao iniciar as razões de decidir, estabeleceu um belo compromisso com a imparcialidade. Confira-se:
"Trata-se de um caso limítrofe no campo do Direito; em primeiro lugar, porque o vínculo natural entre o nascituro e sua mãe estabelece uma relação de natureza especial, que não tem paralelo com nenhum outro comportamento social e, em segundo lugar, porque é uma questão onde incidem, com mais profundidade que em quaisquer outras questões, ideias, crenças e convicções morais, culturais e sociais. O Tribunal não pode deixar de levar em conta, como uma das ideias subjacentes ao seu raciocínio, a peculiaridade da relação entre a mãe e o nascituro a que mencionamos anteriormente; mas deve abstrair qualquer elemento ou padrão de entendimento que não seja o estritamente legal, uma vez que o oposto seria contraditório com a imparcialidade e objetividade do julgamento inerente à função jurisdicional, que não pode obedecer a critérios e pautas, incluindo suas próprias convicções, estranhos aos da análise jurídica".2
A reflexão demonstra a dificuldade da função jurisdicional, ao menos àqueles que a levam a sério: superar convicções pessoais e observar o caso com imparcialidade. Em alguma medida, a missão é válida para os demais operadores do Direito.
Com essa lente desapaixonada é que se tentará observar a chamada "Bolsa Estupro", oriunda do Projeto de lei 5.435/203, de iniciativa do Senador Eduardo Girão (PODEMOS/CE) e que tramita perante o Senado Federal.
Referido Projeto de Lei (PL) dispõe sobre a proteção da gestante e do nascituro desde sua concepção e possibilita que vítimas de estupro optem por colocar o recém-nascido em adoção ou recebam auxílio para os custos relacionados ao desenvolvimento da criança, ante insuficiência financeira da gestante. Nesse sentido, o PL possui iniciativas interessantes: reforça a necessidade de se garantir à gestante políticas públicas que permitam o pleno desenvolvimento da sua gestação, além de buscar proteger a infância em condições dignas de existência (Art. 3º), e reitera a vedação da discriminação à gestante (Art. 6º).
No entanto, ao que parece, o escopo maior do PL é assegurar o nascimento do nascituro mesmo que oriundo de estupro, pois protege, em absoluto, seu direito à vida, mas nega qualquer incidência dos direitos fundamentais da mulher.
Veja-se que seu artigo 1º resguarda a vida do nascituro desde a concepção. Até aqui, a redação estaria conforme o artigo 2º do Código Civil, o qual protege os direitos do concebido. Sabe-se que, apesar dos embates acadêmicos sobre o tema4, o Código Civil estabeleceu o início da personalidade civil da pessoa a partir do nascimento com vida - teoria natalista, de origem romana5 -, pondo a salvo os direitos do nascituro desde a concepção - teoria da personalidade condicional - o nascituro é projeto de pessoa, sujeito de direitos (vida), mas com precípua expectativa de direitos6.
Nada obstante, a polêmica se inicia a partir da interpretação do restante do PL e da ausência de dispositivo que excepcione a possibilidade de aborto em gravidez resultante de estupro - como prevê o Código Penal. Tudo leva a crer que tal hipótese estaria revogada tacitamente.
Na justificativa do PL, o Senador Eduardo Girão toma por iniciativa a busca por rechaçar "toda e qualquer violência perpetrada contra a gestante e a criança por nascer", incluindo, via de consequência, "a condenação de bebês à morte [...] por causa de crime cometido por seus pais" - o estupro -, hipótese de alegado abuso ao ser humano não nascido.
Veda-se a particulares causarem danos ao nascituro, em razão de ato ou decisão de qualquer de seus genitores (Art. 8º) - no texto não se excepciona a decisão oriunda da hipótese da mulher gestante vítima de estupro. As únicas ressalvas feitas pelo PL, as quais podem ser consideradas em prol da mulher gestante vítima de estupro, são as possibilidades de pôr o recém-nascido em adoção (Art. 5º) e a "Bolsa Estupro", quando a gestante não dispor de meios econômicos para custear o desenvolvimento da criança (Art. 11).
Tem-se destacada na justificativa do PL a garantia à inviolabilidade da vida humana, a proteção aos direitos do nascituro prevista no artigo 2º do Código Civil e no artigo 4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH). A conclusão do parlamentar, então, é pela necessidade de garantir a "proteção integral [grifo nosso]da gestante e da criança por nascer, para que o direito à vida seja pleno".
Aparentemente, persistiria a hipótese de aborto necessário, praticado pelo médico quando não há outro meio de salvar a vida da gestante (Art. 128, I, do CP), considerando que o PL assevera que o diagnóstico pré-natal deve ser orientado para "salvaguardar a vida, o desenvolvimento natural da gestação, a saúde e a integridade da gestante" (Art. 7º). Contudo - e aqui reside a questão jurídica -, a hipótese de aborto no caso de gravidez resultante de estupro (Art. 128, II, do CP) seria tacitamente revogada.
A partir dessas considerações, nota-se o perigo de retrocesso civilizatório. Basta observar que a possibilidade de interrupção da gravidez resultante de estupro é prevista desde a edição do Código Penal, em 19407. Trata-se do aborto humanitário, reconhecido de forma pacífica pela doutrina. Cite-se o magistério da professora Maria Stella Villela Souto Lopes Rodrigues, para quem a razão dessa faculdade legal é de que "não seria justo obrigar-se a paciente do crime de estupro, além de sofrê-lo, sofrer a punição de levar sempre consigo o fruto desse crime".8
O Ministro Marco Aurélio Mello, na ADPF 54 - interrupção terapêutica da gestação de feto anencefálico -, pontuou de forma arguta que o legislador "[...] não obstante a visão machista então reinante -, estabeleceu como impunível o aborto provocado em gestação oriunda de estupro, ou seja, quando o feto é plenamente viável"9.
Assim, a redação atual do PL viola direitos fundamentais à liberdade e à privacidade da mulher, em razão de impossibilitar tal hipótese de aborto - o que gera transtornos psicológicos e constantes recordações do ato violento. Não fosse o bastasse, o genitor, mesmo que tenha estuprado a vítima, passaria a ser responsável pela salvaguarda da vida do nascituro, isto é, teria influência na decisão de aborto, além de ter direito à informação quando da concepção com vistas ao exercício da paternidade, sendo vedado à gestante - mesmo que vítima de estupro -, negar ou omitir tal informação, sob pena de responsabilidade (Arts. 9º e 10º).
Contraria-se, assim, a dignidade humana, cuja essência é ter o indivíduo como "conformador de si próprio e da sua vida segurando o seu projecto espiritual"10. A autodeterminação da vítima para realizar escolhas pessoais deixa de prevalecer, não subsistindo espaço de dignidade. Desconsidera-se a dignidade da mulher ao reduzi-la a um receptáculo de vida em gestação, despida de interesses constitucionais que mereçam proteção.
A CADH, citada na justificativa do PL, ressalta o direito à vida desde a concepção, mas não de modo absoluto, pois ressalva tal hipótese como regra - em geral - e, logo em seguida, aduz que ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente11. Note-se que arbitrária é a coação sem fundamento idôneo. No caso de vítima de estupro, pensa-se ser legítimo o fundamento da coação. Não por acaso o Ministro Celso de Mello, ao proferir voto na ADI 3510 - pesquisas com células-tronco embrionárias -, destacou que "a Convenção Americana de Direitos Humanos não acolheu nem estabeleceu um conceito absoluto do direito à vida desde o momento da concepção", notadamente pela cláusula "em geral" - e o afirmou a partir de interpretação da própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos, extraída do caso "Baby Boy" (Resolução 23/81)12.
Ademais, o PL poderá ocasionar o descumprimento da Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979)13, a qual caracteriza discriminação contra a mulher toda forma de exclusão que tenha por resultado a anulação do exercício de seus direitos fundamentais.
O Direito Comparado, como forma de enriquecimento cultural e elemento interpretativo da lei14, ensina experiências a respeito do tema, bem compiladas pelo Boletim de Jurisprudência Internacional sobre aborto, do STF15. Em geral, os Tribunais Constitucionais reconhecem a necessidade de sopesar os interesses em jogo - a vida em gestação e os direitos da gestante. A tradição moderna é por afirmar, ao menos, que a proibição total da gravidez é inconstitucional ou não convencional, sobretudo ao considerar que, em hipóteses extremas, impõe-se à gestante um ônus inexequível que anula seus direitos fundamentais.
Para além do célebre caso Roe v. Wade (1973)16, outros julgados marcaram a evolução jurisprudencial. Em 1985, o citado Tribunal Constitucional da Espanha se debruçava sobre o "aborto criminológico (moral)" - quando a gravidez da gestante deriva de estupro -, afirmando que o projeto de lei questionado poderia descriminalizar o aborto criminológico (Sentencia 53)17. Já em 2006, a Corte Constitucional da Colômbia reafirmou a viabilidade do aborto humanitário (Sentencia C-355/06)18, assim como a Corte Constitucional da Macedônia o fez (Decisão U.br. 137/2013)19, em 2014, alargando a possibilidade de interrupção da gestação, nesse caso, mesmo após a 10ª semana da data da concepção, como "expressão dos cuidados do Estado com a saúde da mulher".
Em 2017, o Chile teve por constitucional lei que descriminaliza hipóteses de aborto humanitário, por ser situação de "encargo excessivo para as mulheres" (Sentencia Rol 3729/17)20. Seguiu a mesma linha a Suprema Corte do Reino Unido, em 2018, ao anotar que a proibição do aborto estabelecida na legislação da Irlanda do Norte, sem excepcionar casos de estupro, é contrária ao artigo 8 da Convenção Europeia de Direitos do Homem (Judgment UKSC 27)21.
Diante dessas ideias, percebe-se a relevância da ponderação entre os direitos fundamentais em jogo. O Projeto de lei 5.435/20 comporta redação que nega ou põe em risco a faculdade de abortar da mulher grávida vítima de estupro. Por essa razão, é necessário que haja o controle preventivo de constitucionalidade pelo Poder Legislativo.
Anote-se que o Senador Eduardo Girão se posicionou diante da má repercussão do PL, ressalvando que não busca realizar alterações no Código Penal22. No entanto, a lei, após promulgada, descola-se da vontade do legislador - sobretudo porque uma análise lógica do enunciado legislativo pode mostrar consequências não previstas por seus autores23. Assim, é necessária a proposição de projetos de lei claros, e não dúbios.
1. Disponível aqui. Acesso em: 31 mar. 2021.
2. Tradução livre da seguinte passagem: "Se trata de un caso límite en el ámbito del Derecho; en primer lugar, porque el vínculo natural del nasciturus con la madre fundamenta una relación de especial naturaleza de la que no hay paralelo en ningún otro comportamiento social, y en segundo término, por tratarse de un tema en cuya consideración inciden con más profundidad que en ningún otro ideas, creencias y convicciones morales, culturales y sociales. El Tribunal no puede menos de tener en cuenta, como una de las ideas subyacentes a su razonamiento, la peculiaridad de la relación entre la madre y el nasciturus a la que antes hemos hecho mención; pero ha de hacer abstracción de todo elemento o patrón de enjuiciamiento que no sea el estrictamente jurídico, ya que otra cosa seria contradictoria con la imparcialidad y objetividad de juicio inherente a la función jurisdiccional, que no puede atenerse a criterios y pautas, incluidas las propias convicciones, ajenos a los del análisis jurídico".
3. Disponível aqui. Acesso em: 29 mar. 2021.
4. MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito - II vol.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979. pp. 306-309.
5. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil / Atual. Maria Celina B. Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 183.
6. CIVIL. NASCITURO. PROTEÇÃO DE SEU DIREITO, NA VERDADE PROTEÇÃO DE EXPECTATIVA, QUE SE TORNARA DIREITO, SE ELE NASCER VIVO [...]. (RE 99038, Relator(a): FRANCISCO REZEK, Segunda Turma, julgado em 18/10/83).
7. Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: [...] Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
8. RODRIGUES, Maria Stella Villela Souto Lopes. ABC do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 317.
9. Disponível aqui. Acesso em: 29 mar. 2021.
10. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina. 1998. p. 219.
11. Ver: "ARTIGO 4 - Direito à Vida - 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente" - grifo nosso. Disponível aqui. Acesso em: 30 mar. 2021.
12. ADI 3510, Relator(a): AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 29/05/08.
13. Disponhível aqui. Acesso em: 31 mar. 2021.
14. VICENTE, Dário Moura. Direito comparado: introdução, sistemas jurídicos em geral, volume 1. São Paulo: Almedina, 2018. p. 21.
15. Disponível aqui. Acesso em: 30 mar. 2021.
16. SOUTO, João Carlos. Suprema corte dos Estados Unidos: principais decisões. São Paulo: Atlas, 2019. p. 210.
17. Disponível aqui. Acesso em: 31 mar. 2021.
18. Disponível aqui. Acesso em: 31 mar. 2021.
19. Disponível aqui. Acesso em: 31 mar. 2021.
20. Disponível aqui. Acesso em: 31 mar. 2021.
21. Disponível aqui. Acesso em: 31 mar. 2021.
22. Disponível aqui. Acesso em: 31 mar. 2021.
23. NINO, Carlos Santiago. Introdução à análise do direito - trad. Elza M. Gasparotto. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 292.