O Direito Penal não comporta profeta do passado: Em boa hora a CVM atualiza as regras aplicáveis aos fundos de investimento
As regulamentações administrativas são aplicáveis automaticamente para configuração da conduta penal incriminada, mas que devem servir de baliza, sempre levando em consideração o risco concreto ao sistema financeiro em caso de não realização.
quinta-feira, 8 de abril de 2021
Atualizado às 12:28
A Lei Federal 13.874/19, popularmente conhecida como "Lei da Liberdade Econômica - LLE", trouxe sem sombra de dúvidas relevantes modificações e atualizações legislativas, com efeitos imediatos nas relações econômicas e na interpretação dos negócios jurídicos.
Destacam-se as alterações das regras aplicáveis aos fundos de investimento (definidos como comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza), com a introdução de novo capítulo no Código Civil (artigos 1.368-C a 1.368-F).
A LLE estabeleceu expressamente a competência da Comissão de Valores Mobiliários - CVM para disciplinar os fundos de investimento, o que de certa maneira já ocorria por intermédio das Instruções CVM 555/14, aplicável aos chamados Fundos 555 (fundos de ações, cambiais, multimercado e renda fixa, bem como subsidiariamente às demais modalidades) e 356/01 (fundos em direitos creditórios - FIDCs).
Nesse contexto, em boa hora a CVM decidiu por revisar amplamente os atos normativos aplicáveis aos fundos, iniciando processo de consolidação das regras aplicáveis na constituição, funcionamento, divulgação de informações e prestação de serviços aos fundos.
Assim, o mencionado órgão regulador submeteu à consulta pública Minuta de Resolução (Audiência Pública SDM 08/20), cujo prazo para envio de sugestões e comentários foi prorrogado até o próximo dia 15 de abril de 2021.
A proposta busca organizar e racionalizar o arcabouço normativo, dividindo-o em três partes: (I) estrutura principal, contendo as regras aplicáveis a todas as categorias de fundo; (II) anexo I, disciplinando os outrora chamados Fundos 555, que agora passam a ser Fundos de Investimento Financeiros - FIF; e (III) anexo II, disciplinando os FIDCs.
Conforme amplamente divulgado pela mídia1, a superintendência reguladora da CVM está aberta para receber sugestões ousadas do mercado. A LLE possibilitou reformas profundas na regulamentação administrativa dos fundos de investimento, o que deve ser acompanhado de perto pelos que atuam e estudam o Direito Penal Econômico.
Como se sabe, o Direito Penal Econômico - conceito ainda debatido entre os estudiosos, é bem verdade, mas que ora se define como o conjunto de normas que tutelam o justo equilíbrio da produção, circulação e distribuição de riquezas entre os cidadãos2 - trabalha frequentemente com tipos penais abertos, cujo conteúdo da conduta incriminada depende de complementação de outras normas legais e infralegais.
Como exemplo, o art. 4º, parágrafo único, da Lei Federal 7.492/86, que define os crimes contra o sistema financeiro, incrimina a conduta de gerir temerariamente instituição financeira.
Sem adentrar na grande discussão relativa à conceituação de instituição financeira para fins penais (estabelecida no art. 1º, da aludida Lei), fato é que as administradoras, custodiantes e gestoras de fundos de investimento são consideradas por parte relevante da jurisprudência nacional como instituições financeiras para efeitos penais.
Significa dizer que não há como dar conformação constitucional ao crime de gestão temerária, na administração e/ou gestão de fundos de investimento, sem procurar integração e referências no arcabouço normativo administrativo. Em boa hora, pois, a atualização das Instruções CVM 555/14 e 356/01 para orientar o que pode, e principalmente, não pode ser considerado temerário na gestão de fundos.
Não é incomum, como bem sabem aqueles que estudam ou atuam com o Direito Penal Econômico, a responsabilização penal de gestores dos fundos de investimento, por suposta temeridade, em razão da falha na fiscalização de prestadores de serviço, ou ainda na omissão diante da queda de rating das agências de classificação de risco.
Ocorre que, como dito e em observância ao princípio da legalidade, essa temeridade não pode restar conceituada ao bel prazer do acusador. Deve, necessariamente, ter um ponto de referência nas regulamentações administrativas, como verdadeiro dever objetivo de cuidado.
Não se afirma, contudo, que as regulamentações administrativas são aplicáveis automaticamente para configuração da conduta penal incriminada, mas que devem servir de baliza, sempre levando em consideração o risco concreto ao sistema financeiro em caso de não realização, ou de realização, de determinados atos temerários.
O Direito Penal não comporta profeta do passado. Analisar posteriormente, por exemplo, que "algo estava errado porque caiu o rating", como sinal de que haveria ali um pontencial risco à normalidade do mercado financeiro, traduz-se na impossibilidade de deduzir de antemão o conteúdo da norma proibitiva.
O que é um erro? O que é uma estratégia errada? Quais os riscos que o gestor está autorizado a tomar? O que é um ato temerário que concretamente põe em risco o mercado?
Assim, dada a extrema abertura do tipo penal em comento, o que para essa articulista levaria à sua inconstitucionalidade, muito mais do que afirmar na proposta de Resolução sobre quais modalidades de fundo são obrigadas a contar com classificação de risco, ou ainda sobre quais informações devem ser divulgadas ao mercado com a alteração da classificação, benéfico seria uma referência concreta de quais medidas são exigidas do administrador/gestor frente a tal acontecimento.
Pode-se ponderar, a partir dessa baliza e de maneira concreta, se os gestores foram além do risco permitido e, por consequência, atuaram de maneira temerária ao colocarem o bom funcionamento do fundo e do mercado em xeque. Frisa-se a diferença: não é o rebaixamento do rating que tutela o ato temerário, mas sim a conduta objetiva do gestor frente a tal acontecimento.
Outro exemplo é a fiscalização dos prestadores de serviço pelo administrador do fundo de investimento. Em boa hora a CVM submete à análise pública uma limitação desse dever de fiscalizar a hipóteses taxativas, tudo a depender da modalidade do fundo.
Novamente, não é toda e qualquer falha de fiscalização que pode indicar um ato temerário, mas sim aqueles que o órgão regulador dotou de especial relevância. Analisado o caso concreto e verificada a violação do risco permitido, nesse caso a necessidade de fiscalização do prestador de serviço, pode-se falar então em temeridade.
Diversos outros exemplos poderiam aqui ser debatidos, mas o ponto central está bem claro: há necessidade de participação e acompanhamento de perto das mudanças das regras administrativas dos fundos de investimento também pelos estudiosos e atuantes no Direito Penal Econômico. Reflexos importantes e profundos serão sentidos a partir da nova Resolução CVM.
A ver.
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2 ARÁUJO, Marina Pinhão Coelho. DE SOUZA. Luciano Anderson. Coord. Direito Penal Econômico: Leis Penais Especiais. Vol. 1. São Paulo: Thomsom Reuters Brasil, 2019, pg. 52.
Caio Ferraris
Sócio do escritório Fachini, Valentini e Ferraris Advogados