Juridicidade administrativa: toque de recolher e lockdown em tempos de pandemia da covid-19
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: pode-se criticá-la, odiá-la, emendá-la, mas não se pode, jamais, invocá-la como óbice à preservação de vidas.
terça-feira, 6 de abril de 2021
Atualizado às 16:59
Nas últimas semanas, muito se noticiou a respeito de medidas adotadas por prefeitos e governadores na tentativa de evitar o colapso dos sistemas público e privado de saúde, em decorrência do aumento no número de internações causadas pelo novo coronavírus. Dentre as medidas mais polêmicas, estão o toque de recolher e o lockdown.
Ambas afetam, consideravelmente, o direito de ir, vir e permanecer e a autonomia privada.
Diante disto, não são poucas as críticas à adoção de tais medidas, especialmente quando realizadas via decreto do Poder Executivo estadual ou municipal. Nesse sentido, inclusive, foram ajuizadas a ADPF 806, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e a ADIn 6764, pelo Presidente da República, ambas questionando a constitucionalidade de tais atos normativos. As ações foram extintas sem resolução de mérito pelo relator, Min. Marco Aurélio.
Tomando-se por base os argumentos utilizados pelo autor da ADPF 806, os principais fundamentos daqueles que sustentam a inconstitucionalidade das medidas são, em síntese: i) violação ao princípio da legalidade administrativa; ii) violação de direitos fundamentais (especialmente, a liberdade de locomoção); e iii) impossibilidade de determinação de restrições ao direito de ir e vir quando ausente a decretação de estado de sítio.
O cerne da questão está na possibilidade ou não do Poder Público, no exercício do poder de polícia, restringir a liberdade de locomoção. E mais, se tal restrição, caso juridicamente viável, pode se dar via decreto ou é indispensável, em qualquer caso, a atuação do legislador de cada ente.
A doutrina clássica confere ao poder de polícia um caráter de poder administrativo limitador de direitos. Seria, portanto, nas palavras de Hely Lopes Meirelles, "a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado."1 Tal concepção foi incorporada pelo art. 78 do CTN.
A doutrina moderna, redefinindo este conceito, aponta para um caráter conformador de direitos. Seria, então, o poder de polícia, a ordenação social e econômica conformadora da liberdade e da propriedade, destinada a promover o desfrute de direitos fundamentais e outros objetivos de interesse da coletividade, dentro dos limites estabelecidos na Constituição.2
De acordo com este viés conformador, não há que se falar em exercício legítimo de direitos para além dos limites estabelecidos pelo legislador e pela Administração Pública, no exercício regular do poder de polícia. Com efeito, se as medidas de polícia se destinam a conformar a liberdade individual para promover o desfrute de direitos fundamentais ou interesses coletivos, a sua inobservância significaria uma agressão a direitos de terceiros, seja um indivíduo específico, seja a coletividade. Aplicável, aqui, a máxima de que a liberdade de um termina quando começa a do outro.
O princípio da legalidade administrativa, invocado por aqueles contrários às medidas restritivas da locomoção de pessoas, também foi objeto de transformações, sobretudo com o advento do constitucionalismo pós-positivista (por alguns denominado de neoconstitucionalismo), cujo marco histórico, no Brasil, se dá com a promulgação da Constituição de 19883.
Atribuiu-se força normativa à Constituição, que deixou de ser um documento essencialmente político para se tornar norma jurídica. A partir de então, verificou-se a constitucionalização do Direito. Mais do que mera inclusão de normas dos mais diversos ramos do Direito na Constituição, a constitucionalização do Direito implicou na irradiação do conteúdo material e axiológico da Constituição por todo o ordenamento jurídico.
Não foi diferente com o Direito Administrativo. Sob a influência dos princípios constitucionais? Sobretudo aqueles de caráter geral, não apenas os específicos, e a partir da ideia de centralidade da dignidade humana e da preservação dos direitos fundamentais, diversos paradigmas tradicionais do Direito Administrativo foram superados ou alterados4. Dentre eles, destaca-se o princípio da legalidade.
Superou-se a ideia de que o administrador está vinculado à lei em sentido estrito, só podendo fazer aquilo que o legislador o autorizar. O administrador deve atuar em observância ao ordenamento jurídico como um todo, especialmente às normas constitucionais. Em muitos casos, faz-se necessária uma atuação do administrador com base diretamente na Constituição, independentemente de qualquer manifestação do legislador ordinário5. Diante disto, passou-se a falar em princípio da juridicidade.
Tal mudança não se restringe ao plano teórico, possuindo consequências práticas, com a imposição de novos deveres ao administrador público, mesmo que não previstos em lei. A vedação ao nepotismo (súmula vinculante nº. 13) é um bom exemplo.
Na área da saúde, não haveria um mandamento constitucional que impusesse um dever de atuação ao administrador público? É evidente que sim. O direito à saúde está previsto no art. 196 da CRFB/88, podendo-se identificar, no dispositivo constitucional, um direito individual e um direito coletivo de proteção à saúde.6 Trata-se, portanto, de um direito subjetivo público e um direito social (art. 6º da CRFB/88). A este direito corresponde um dever de atuação estatal.
É neste dever estatal de desenvolvimento de políticas públicas para a promoção, proteção e recuperação da saúde que se insere a possibilidade de adoção de medidas sanitárias restritivas. Com efeito, o dever de atuação do Estado não se esgota com a prestação material do serviço público de saúde, abrangendo, também, a elaboração de normas e a adoção de medidas concretas que limitem ou conformem as liberdades individuais para promover o desfrute do direito fundamental à saúde.
Daí se percebe que decorre diretamente da Constituição o dever de o Poder Público adotar medidas de proteção da saúde. Nem mesmo a eventual inércia do legislador pode ser invocada pelo administrador público para se desvencilhar deste dever constitucional. Como já se afirmou, o princípio da juridicidade administrativa impõe a observância, pelo administrador público, do ordenamento jurídico como um todo, não apenas da lei em sentido estrito.
Não se diga, ademais, que o princípio da legalidade, disposto no art. 5º, II, da CRFB/88, seria impeditivo para a edição de atos normativos, pelo Poder Executivo, contendo medidas restritivas. É que, de acordo com a doutrina, por "lei" deve-se entender o conjunto do ordenamento jurídico, e não apenas o ato normativo editado pelo Poder Legislativo7.
Deve-se ponderar, contudo, que a atuação do administrador público, restringindo direitos com base diretamente na Constituição, será excepcional. Em situações de normalidade, deve-se prestigiar o amplo debate, no âmbito que lhe é próprio: o Poder Legislativo. Apenas em situações emergenciais, em que o debate não se mostre viável e a inércia estatal se mostre mais gravosa do que a supressão do mesmo, é que poderá atuar o Poder Executivo, interpretando e aplicando a própria Constituição. Importante que se diga, esta excepcionalidade não escapa ao controle do Poder Judiciário, que poderá declarar a nulidade do ato administrativo violador dos parâmetros constitucionais.
Para o bom exercício do poder de polícia nestas condições excepcionais, é salutar a devida observância do dever de motivação, que será reforçado, já que o administrador público deverá fundamentar não apenas a ponderação realizada entre os direitos fundamentais conflitantes, mas, também, a existência da situação emergencial que justifica a sua atuação sem intermédio do legislador.
Em sentido semelhante, Rafael Carvalho Rezende de Oliveira invoca o instituto do "estado de necessidade administrativo", do direito português, que possibilita a preterição das regras ordinárias aplicáveis à Administração Pública, para aplicação de uma legalidade excepcional ou alternativa8. O estado de necessidade administrativo possibilitaria uma atuação normativa ou concreta da Administração Pública, mesmo sem lei autorizativa, mitigando a visão rígida e tradicional do princípio da legalidade.9
Já se vê, portanto, que a atuação direta do administrador público, no exercício do poder de polícia, restringindo liberdades, independentemente de previsão legal específica, se mostra plenamente viável, diante da situação excepcional vivenciada por conta da pandemia do novo coronavírus.
Ocorre, contudo, que o Congresso Nacional foi diligente e aprovou a lei 13979/20, que dispõe sobre as medidas a serem tomadas no combate à covid-19. Trata-se de lei de caráter nacional (aplicável a todos os entes federados, e não apenas à União), editada com fundamento na competência legislativa concorrente prevista no art. 24, XII, da CRFB/88.
Sobre o tema aqui proposto, merece especial destaque o art. 3º da lei 13979/20, segundo o qual: "Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas:"10. Dentre as medidas expressamente listadas nos incisos do referido dispositivo não se encontram o lockdown e o toque de recolher, no entanto, verifica-se, pela redação expressa do caput do dispositivo, que o seu rol é meramente exemplificativo.
Foi feliz o legislador ao possibilitar às autoridades a adoção de outras medidas, que não aquelas expressamente previstas na lei. Não teria o Poder Legislativo a capacidade de esgotar todas as medidas de polícia eventualmente necessárias para o combate ao coronavírus. As medidas de polícia são aquelas que o Poder Público impõe para evitar a ocorrência de um dano ou o seu agravamento, não se confundindo com a sanção de polícia, que é a penalidade aplicada ao infrator pelo descumprimento da ordem de polícia. Diferentemente da sanção, as medidas de polícia nem sempre são passíveis de previsão exaustiva.
Com base parágrafo 1º do art. 3º da lei 13979/20, verifica-se que há uma discricionariedade técnica do administrador público para a adoção das medidas de saúde pública para enfrentamento da pandemia, eis que suas decisões deverão "ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde"11.
Não há qualquer óbice à edição de decretos, por prefeitos e governadores, para a adoção de medidas sanitárias restritivas de direitos com base no art. 3º da lei 13979/20, pois, além do caráter nacional da referida lei, Estados e Municípios têm competência material para adotar medidas de saúde pública. Isso porque tal competência é comum a todos os entes federativos (art. 23, II, da CRFB/88). Assim, apesar de ser possível a atuação dos legisladores estaduais e municipais na matéria (arts. 24, XII, e 30, I e II, da CRFB/88), ela é desnecessária.
É verdade que a liberdade de locomoção é um direito fundamental (art. 5º, XV, da CRFB/88). Como tal, deve ser reconhecida a sua relatividade, não havendo direito fundamental absoluto, pois sempre será possível estabelecer limites, quando houver choque com outros direitos fundamentais.
Não é verdade que a liberdade de locomoção só pode sofrer restrições quando decretado estado de sítio. O art. 139, I, da CRFB/88 traz apenas uma hipótese de restrição constitucional expressa a este direito fundamental, não afastando a possibilidade de se estabelecerem outras restrições, inclusive por norma infraconstitucional.
O art. 5º, XV, da CRFB/88, que garante a liberdade de locomoção, é norma de eficácia contida, podendo ter a sua amplitude delimitada por lei ordinária12. Diz o dispositivo: "é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;"13. Foi o que fez a lei 13979/20, ao possibilitar a restrição ao direito de ir, vir e permanecer para preservar o direito à saúde.
Para que a restrição a um direito fundamental seja legítima, deve-se preservar o núcleo essencial do direito e observar o princípio da proporcionalidade. O núcleo essencial da liberdade de locomoção resta preservado, na medida em que se autoriza que, mesmo diante de uma situação excepcional, as pessoas se locomovam para atividades essenciais (farmácia, mercado, hospitais, etc). O princípio da proporcionalidade também é observado, em seus três subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Especialistas da área da saúde afirmam que medidas de distanciamento social são adequadas e necessárias para conter a propagação do vírus. Ademais, pode-se afirmar que, verificada uma situação de descontrole da propagação do vírus ou risco iminente de colapso nos sistemas público e privado de saúde, o sacrifício que se faz à liberdade de locomoção não supera os benefícios trazidos pela medida aos direitos à saúde e à vida (proporcionalidade em sentido estrito).
Assim, cabe concluir pela constitucionalidade, em tese, da determinação de medidas restritivas da liberdade de locomoção, como o lockdown e o toque de recolher, por decretos estaduais e municipais, desde que sejam tecnicamente justificáveis no caso concreto. Tratando-se de medidas bastante restritivas a um direito fundamental, ganha especial importância o dever de fundamentação do administrador público, que deverá demonstrar a necessidade da medida no caso concreto, com base em evidências científicas e dados concretos e objetivos.
Em tempos tão difíceis, o que se espera do administrador público é uma atuação séria e comprometida com a ciência. O preço da atuação irresponsável é pago com vidas. Por isso, tanto a omissão injustificada na adoção de medidas restritivas necessárias (e, muitas vezes, impopulares), quanto uma atuação desmesurada, com restrição excessiva, desmotivada e sem amparo em critérios científicos, podem e devem levar à responsabilização do agente público, em caso de dolo ou culpa grave.
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1 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2017. pág. 500.
2 BINENBOJM, Gustavo. Poder de Polícia Ordenação Regulação. Belo Horizonte: Fórum, 2016. pág. 329.
3 BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2013. pág. 267.
4 BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2013. pág. 401-402.
5 BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2013. pág. 402.
6 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015. pág. 660.
7 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015. pág. 852.
8 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende de. Estado de necessidade administrativo e poder de polícia: o caso do novo coronavírus. Belo Horizonte: Revista Brasileira de Direito Público, 2020. pág. 11.
9 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende de. Estado de necessidade administrativo e poder de polícia: o caso do novo coronavírus. Belo Horizonte: Revista Brasileira de Direito Público, 2020. pág. 12.
10 BRASIL. lei 13979 de 6 de fevereiro de 2020. Disponível: clique aqui. Acesso: 30 mar 2021.
11 BRASIL. lei 13979 de 6 de fevereiro de 2020. Disponível: clique aqui. Acesso: março 2020.
12 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2012. pág. 135.
13 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível: clique aqui. Acesso: 30 mar 2021.