Direitos sociais, escassez, "trade-off" e a invocação da reserva do possível
As políticas públicas caminham lado a lado com os direitos fundamentais, sendo instrumentos que visam assegurar a fruição destes e dotar o Estado social de regras eficazes e prospectivas, voltadas para o futuro.
terça-feira, 6 de abril de 2021
Atualizado em 7 de abril de 2021 08:55
O período pós segunda-guerra do século XX foi marcado por profundas transformações no papel dos Estados nacionais no que diz respeito às relações internacionais, culturais, econômicas e sociais. Surge um novo "paradigma social" no liberalismo em voga, em que os direitos sociais representam a principal inovação (BUCCI, 2006, p. 2) e cuja posição central revela um Estado axiologicamente comprometido (VALLE, 2007, p.1).
Os direitos sociais são direitos fundamentais equivalente àqueles de segunda dimensão e que pressupõem um papel mais ativo do poder público com um "enfoque prestacional" (BUCCI, 2006, p. 3), mais necessário em países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. A nossa Constituição Federal de 1988 marca a tentativa de completar a democracia política com a democracia econômica e social (BUCCI, 2013, p. 25).
As políticas públicas caminham lado a lado com os direitos fundamentais, sendo instrumentos que visam assegurar a fruição destes e dotar o Estado social de regras eficazes e prospectivas, voltadas para o futuro. Ou seja, a coordenação, promoção ou concretização de ações do Estado se alcançarão com o desenvolvimento de políticas públicas, que são maneiras de formatação do agir estatal (VALLE, 2007, p. 2). As políticas públicas podem ser definidas como programas multidisciplinares de ação governamental, de curto ou longo prazo, que visam a racionalização técnica da pesquisa e ação do poder público para realização de objetivos determinados com obtenção de resultados (BUCCI pp. 2006, pp. 14/19).
Os Estados e suas políticas públicas firmam promessas de transformação dos benefícios sociais em direitos fundamentais, criando um cenário em que aqueles sujeitos sem um papel de destaque na economia de mercado são incluídos na proteção do poder público, apto a lhes assegurar a sobrevivência por meio dos recursos públicos (LOPES, 2010, p. 155). Nesse contexto, o termo "promessas" não pode levar ao engano de que se trata de mera liberalidade por parte do Estado, pois as normas programáticas do texto constitucional transmutam-se em normas impositivas a partir da autoridade constitucional (AMARAL, 2010, p. 80). Todos os direitos sociais são fundamentais do ponto de vista material e formal, devendo ser objeto da máxima eficácia e efetividade possíveis, inclusive porque, por meio deles, se assegura a vida digna de seus portadores (SARLET, 2010, p. 18).
Não há problema em se aceitar que os sujeitos inseridos no "livre" mercado possuem um conjunto mínimo de direitos que deriva diretamente da Constituição em um contexto de liberalismo marcado pelas mudanças sociais ocorridas no século XX. Ao migrarmos desse plano ideal e nos depararmos com o pragmatismo oferecido pelos dados da realidade jurídica brasileira, observamos uma grande distância entre estes dois universos. A "inflação" de direitos promovida por este novo paradigma jurídico capitaneado pela Constituição Federal de 1988 está muito distante da possibilidade real do Estado brasileiro, levando à afirmativa de que "a constituição não cabe no PIB". Em um mundo globalizado e marcadamente capitalista, todas as aspirações sociais dependem de uma realidade macroeconômica, e especialmente em países em desenvolvimento, estes parecem ser ideais irrealizáveis (BUCCI, 2006, p. 4).
A liberdade individual e coletiva pressupõe uma "autoridade mantida com recursos de todos" (LOPES, 2010, p. 157). Ou seja, qualquer direito, seja social ou relacionado à liberdade individual vincula-se a esta autoridade, pressupondo um custo.
Nesse ponto, importante ressaltar-se que, em uma primeira análise, poderíamos relacionar os custos apenas à implementação de direitos sociais que exigiriam uma atuação positiva do poder público, enquanto os direitos de liberdade seriam assegurados com a mera abstenção do Estado. Contudo, está pressuposição é falsa. Um interesse só passa a ser qualificado como direito a partir do momento em que o sistema legal o trata desse modo e usa os recursos coletivos da comunidade para defendê-lo (HOLMES, 2019, p. 12). Assim, tanto as liberdades privadas (liberdade de expressão, liberdade contratual, direito a propriedade privada) quanto os direitos sociais (seguridade social, assistência médica, benefícios assistenciais) envolvem custos e recursos públicos (HOLMES, 2019, p. 177) arcados pela infraestrutura estatal (LOPES, 2010, p. 157).
Qual é a realidade que se apresenta à sociedade cada vez mais necessitada e carente de direitos? A evidente escassez dos recursos públicos geridos pelo Estado.
Todos os bens considerados valiosos pela sociedade, como por exemplo o acesso à saúde de qualidade, são escassos (AMARAL, 2010, pp. 87/88). Sua demanda supera a oferta. Identificada essa insuficiência relacionada a escassez, é imprescindível o estabelecimento de regras para a justa distribuição de recursos escassos aos cidadãos, movimento que ocorre por meio de decisões políticas que envolvem conveniência e oportunidade (LOPES, 2010, p. 162), mas que, de modo algum, são livres ou ilimitadas. O orçamento é uma peça fundamental no estabelecimento de escolhas pelo ente público, por meio do qual se alocam os recursos públicos para o atingimento de determinados fins, decididos politicamente por discussão havidas no âmbito dos poderes executivo e legislativo (LOPES, fl. 160). Afinal, não há direitos sem gastos públicos (HOLMES, 2019, p. 177).
Assim, cumpre ao Estado gerir recursos públicos escassos a fim de materializar as liberdades de seus cidadãos. Ao fazê-lo, serão realizadas escolhas, que essencialmente importam na renúncia de uma das alternativas. A noção de "trade-off" decorre da realidade de que a alocação de recursos escassos envolve a escolha do que atender e do que não atender, comprometer-se com um fim e simultaneamente decidir por não se comprometer com outro (AMARAL, 2010, p. 92), relacionada aos chamados custos de oportunidade (HOLMES, 2019, p. 180).
O "trade off" remete aos casos difíceis conforme conceituados por Ronald Dworkin, onde seja qual for a alternativa escolhida, aquela deixada de lado será alvo de lamento. Todas as decisões são tomadas por pessoas reais, sendo impossível exigir que estas sejam neutras diante do peso que recai na manifestação de preferência por alguma alternativa em detrimento de outra (AMARAL, 2010, p. 95). A decisão que acolhe pedido imediato de atendimento a um direito fundamental vai consumir recursos públicos escassos e repercutir negativamente nas futuras escolhas e tomadas de decisões. A consideração das consequências e efeitos colaterais das atividades, mesmo que estas sejam intrinsecamente valiosas, é a metodologia consequencialista (AMARAL, 2010, p. 85), que se opõe a ideia "fiat justitia e pereat mundus", ou de que se deve fazer justiça e que o mundo pereça (WANG, 2008, p. 563)
Entendido o panorama de proliferação de direitos fundamentais a serem objeto de proteção, de escassez de bens e limitação de recursos públicos a fim de implementá-los e de necessidade de se realizarem escolhas difíceis, resta analisar a possibilidade de invocação da reserva do possível por parte do poder público.
A reserva do possível pode ser definida como o limite fático e jurídico à exigibilidade dos direitos sociais, que dependem da capacidade econômica do Estado, disponibilidade jurídica e razoabilidade, e equivale àquilo que o indivíduo pode exigir da sociedade (WANG, 2008, p. 540). Relaciona-se à ideia de que "impossibulium nulla obligato est", ou que ninguém pode ser obrigado a fazer aquilo que é impossível (LOPES, 2010, p. 159). Não pode ser atribuída ao Estado, já sobrecarregado e limitado financeiramente, a posição de garantidor universal, sequer por uma decisão judicial (LOPES, 2010, p. 159).
A reserva do possível, desta forma, pode ser invocada para excluir a apreciação judicial de uma decisão eminentemente política (LOPES, 2010, p. 165), cuja competência é mesmo dos poderes Executivo e Legislativo e envolve naturalmente a adoção de posicionamento para atingimento de fins diante de recursos insuficiente. Por outro lado, é inaceitável invocar a referida cláusula para justificar a inação estatal. Ou seja, o Estado não pode valer-se da reserva do possível para não dar explicações convincentes de suas escolhas ou de suas prioridades diante da potestatividade dos direitos sociais (LOPES, 2100, p. 168). Isso porque o não cumprimento por parte do Estado de uma obrigação constitucional exige um ônus argumentativo, sob pena haver o descumprimento culposo do orçamento (WANG, 2008, p. 541). Nesse caso, o judiciário deve agir, mesmo que se assuma difícil julgar situações que tratam de probabilidades no âmbito de escolhas complexas.
Por tudo, não se pode perder de vista que os direitos sociais dependem de arranjos orçamentários que a decisão judicial não deve substituir, sob pena de se tornar um "tribunal de caridade" e ferir a isonomia ao destinar recursos públicos, inicialmente destinados à coletividade ao litigante por meio de decisões individuais. Por outro lado, é inegável que o orçamento está subordinado a regras constitucionais e que não cabe sua manipulação de modo que uma impossibilidade seja criada por meio de ação ou omissão governamental (LOPES, 2010, p. 171), como entendeu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Agravo de Instrumento 598.212 do Paraná, ao afirmar que "não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, criar obstáculo artificial que revele - a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - o arbitrário, ilegítimo e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência e de gozo de direitos fundamentais".
A resposta judicial mais adequada deve ser aquela que fornece um programa ou que auxilia a adoção de ações coordenadas por parte do órgão estatal (AMARAL, 2010, p. 97), respeitando que as políticas são um conjunto integrado de iniciativa e ações que visam um fim. Devem ser evitadas decisões que adotem a fórmula "tudo-ou-nada" (LOPES, 2010, p.169), ou seja, é preferível que a decisão judicial exija um novo programa, mais adequado a uma política inicialmente mal formulada, do poder competente. Deste modo, são respeitadas as competências constitucionais de cada poder e a isonomia entre os cidadãos.
O poder judicante não pode ignorar que, mesmo diante de demandas que envolvam direitos sensíveis e com alto valor intrínseco, todo direito possui um custo e nem mesmo o Estado pode ser obrigado a fazer aquilo que é impossível ("impossibulium nulla obligato est") nem que, por melhor que sejam as intenções e por mais difícil que seja o caso concreto, se deve fazer justiça independente de suas consequências ("fiat justitia e pereat mundus").
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AMARAL, Gustavo; MELO, Danielle. Há Direitos Acima dos Orçamentos? In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais, orçamento e reserva do possível. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas - reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.
BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013.
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. O custo dos direitos: Por que a liberdade depende dos impostos. São Paulo: Martins Fontes, 2019.
LOPES, José Reinaldo Lima. Em torno da 'reserva do possível'. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais, orçamento e reserva do possível. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
SARLET, Ingo Wolfgang, FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais, orçamento e reserva do possível. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
VALLE, Vanice Regina Lírio do. Dever constitucional de enunciação de políticas públicas e autovinculação: caminhos possíveis de controle jurisdicional. Fórum administrativo: direito público, Belo Horizonte, v. 7, n. 82, dez. 2007.
WANG, Daniel Wei L. Escassez de recursos, custos dos direitos e reserva do possível na jurisprudência do STF. Revista Direito GV, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 539-568, jul./dez. 2008.