A terceirização, o STF, e a chancela do comércio do humano pelo humano
O caminho do tratamento legislativo, e principalmente, jurisprudencial sobre a terceirização, em solo brasileiro, é extremamente tortuoso, e passa necessariamente pela definição do que sejam "atividade-meio" e "atividade-fim".
segunda-feira, 5 de abril de 2021
Atualizado às 17:50
Muito se diz sobre a terceirização de serviços já há algumas décadas no contexto do mercado de trabalho no Brasil, embora haja uma certa confusão na delimitação de seu conceito.
A terceirização parte da lógica produtiva ohnista/toyotista, que compartimentaliza a produção das empresas e busca sua descentralização, reduzindo estoques, custos e etapas produtivas. Como decorrência lógica desse conceito, as empresas tendem a destacar etapas menos relevantes de seu processo produtivo, transferindo-as para outras empresas, que passam a executá-las com seus próprios empregados. Assim, por exemplo, ao invés da fábrica automobilística produzir desde componentes eletrônicos até partes mecânicas, metálicas e de plástico, transfere para outras empresas a produção de componentes eletrônicos e plásticos dos painéis dos automóveis.
A doutrina há certo tempo vem realizando a distinção entre terceirização externa e terceirização interna. Embora os conceitos clássicos sejam de que a terceirização interna se desenvolve com empregados da empresa prestadora de serviços trabalhando na planta do tomador, e a externa com o serviço prestado fora de seus domínios, o conceito evoluiu para abarcar alterações decorrentes do estado da técnica. Hoje, mais adequado seria conceber a terceirização interna como aquela em que há certo controle do tomador sobre todas as etapas do processo produtivo, ao passo que na terceirização externa, teríamos apenas a apropriação pelo tomador de serviços do produto ou serviço finalizado. Ainda merece destaque a conclusão óbvia, mas nem sempre tão bem assimilada pelo operador do Direito, de que a empresa que produz e vende para múltiplos compradores não mantém com eles o liame estreito da terceirização, nem interna, nem externa, havendo apenas uma simples relação de compra e venda entre uma e outras. A terceirização pressupõe inexoravelmente a vinculação daquele trabalhador à produção de um único tomador de serviços, conquanto não seja seu empregador, e não a múltiplos clientes em um contexto normal de relações comerciais.
O caminho do tratamento legislativo, e principalmente, jurisprudencial sobre a terceirização, em solo brasileiro, é extremamente tortuoso, e passa necessariamente pela definição do que sejam "atividade-meio" e "atividade-fim".
A atividade-fim nada mais seria do que o objeto social da empresa, a destinação a ela emprestada por seus atos constitutivos, o que ela "foi criada para fazer". Por outro lado, atividade-meio seria toda atividade necessária para manutenção da empresa ou de suas atividades, que não necessariamente represente o núcleo de suas atribuições.
E qual a razão da importância dessa distinção, que vem sendo rechaçada pela jurisprudência moderna do STF? Um exemplo pode trazer luzes.
Imaginemos o Banco Y. Como todo Banco, ocupa-se preponderantemente do trato com numerário próprio ou de terceiros. Alguma dúvida, portanto, de que o caixa de tal Banco trabalhe na atividade-fim deste? Parece-me que não. Mas e a limpeza do Banco? Nenhuma dúvida de que seria desempenhada para manter o Banco funcionando, mas não se confunde com o núcleo de suas atividades. Perfeito.
Agora, vamos supor que o Banco terceirize ambas as atividades, caixa bancário e agente de limpeza.
No caso do agente de limpeza, do que ele precisa para trabalhar? Balde, pano, rodo, vassoura, esfregão, água sanitária, luvas, botas, etc. Quem fornece esses apetrechos? A empresa que seja sua empregadora e tenha contrato com o Banco para limpar a agência. Vamos chamar essa empresa prestadora de serviço de empresa ABC.
E no caso do caixa bancário, do que ele precisa para trabalhar? Terminal de computador, estação do caixa, senha e acesso aos sistemas que englobam as contas dos clientes, basicamente. Quem fornece esses elementos? O próprio Banco Y, e não o empregador do caixa terceirizado, empresa essa que vamos chamar de XPTO.
Muito bem. Então podemos concluir que a empresa ABC fornece a mão-de-obra e os meios de produção necessários para o serviço. E a empresa XPTO, o que fornece? Apenas a mão-de-obra, apenas o caixa terceirizado.
Ora, então a empresa XPTO comercializa o trabalho humano? Exato. Dizer o contrário seria tentar dourar a pílula com uma desonestidade intelectual que não cabe neste espaço. E neste ponto, é de bom alvitre recordar que a Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT) declara que o trabalho não é uma mercadoria. Demais disso, não parece que esse "comércio do humano pelo humano" seja consentâneo com o princípio da dignidade da pessoa humana, positivado no art. 1º, III, da CF. Guarde este ponto, voltaremos a ele mais adiante.
No Brasil, a terceirização começou a ser disciplinada no âmbito da administração pública pelo Decreto-Lei 200/67, que determinava a descentralização da administração pública federal, abrindo espaço para o fenômeno da terceirização, que já se irradiava pela iniciativa privada entre os anos 50 e 60, embora de forma ainda incipiente. Posteriormente, destacam-se a lei 6019/74, que trazia a figura do trabalhador temporário, e a lei 7102/83 que admitiu a terceirização dos serviços de vigilância pessoal e patrimonial.
A jurisprudência finalmente esboçou sua primeira consolidação jurisprudencial sobre o tema na redação original da Súmula 256 do TST, de 1986, que admitia a terceirização apenas para vigilantes e temporários (leis mencionadas acima), declarando a ilegalidade de outros regimes de terceirização.
Sem procurar tecer um escorço jurisprudencial exaustivo, convém destacar que a profusão do fenômeno da terceirização e a ausência de uma regulamentação legal generalista levaram a jurisprudência a flexibilizar seu entendimento. Nesse sentido, a primeira redação da Súmula 331 do TST, de 1993, que já admitia outras formas de terceirização, desde que se tratasse de atividade-meio, sem pessoalidade e sem subordinação direta entre o trabalhador terceirizado e o tomador de serviços.
Esta súmula foi revista em outras oportunidades ao longo do tempo, acomodando a jurisprudência do STF sobre a responsabilidade do Poder Público terceirizante, questão, contudo, que refoge ao escopo deste artigo.
Eis que sobreveio a lei 13.429, de 31.3.17, trazendo a possibilidade de terceirização de "serviços específicos", sem delimitação se seriam ligados à atividade-meio ou à atividade-fim (redação alterada do art. 4º-A da lei 6019/74). A doutrina, contudo, logo se apressou em dizer que essa referência a "serviços específicos" apenas exigia uma delimitação do objeto do contrato, sem autorizar a terceirização da atividade-fim.
Porém, o caminho para o "comércio do humano pelo humano" foi finalmente aberto com "o pé na porta" pela lei 13.467, de 13.7.17, que entrou em vigor em 11.11.17, alterando novamente a redação do art. 4º-A da lei 6019/74 para admitir a terceirização inclusive da "atividade principal".
Em 30.8.18, o STF finalmente se manifestou sobre o tema, fixando o Tema 725 da Tabela de Teses Fixadas em Repercussão Geral, no RE 958252, nos seguintes termos: "É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante". No referido acórdão, o STF assentou:
"14. A terceirização apresenta os seguintes benefícios: (I) aprimoramento de tarefas pelo aprendizado especializado; (II) economias de escala e de escopo; (III) redução da complexidade organizacional; (IV) redução de problemas de cálculo e atribuição, facilitando a provisão de incentivos mais fortes a empregados; (V) precificação mais precisa de custos e maior transparência; (VI) estímulo à competição de fornecedores externos; (VII) maior facilidade de adaptação a necessidades de modificações estruturais; (VIII) eliminação de problemas de possíveis excessos de produção; (IX) maior eficiência pelo fim de subsídios cruzados entre departamentos com desempenhos diferentes; (X) redução dos custos iniciais de entrada no mercado, facilitando o surgimento de novos concorrentes; (XI) superação de eventuais limitações de acesso a tecnologias ou matérias-primas; (XII) menor alavancagem operacional, diminuindo a exposição da companhia a riscos e oscilações de balanço, pela redução de seus custos fixos; (XIII) maior flexibilidade para adaptação ao mercado; (XIV) não comprometimento de recursos que poderiam ser utilizados em setores estratégicos; (XV) diminuição da possibilidade de falhas de um setor se comunicarem a outros; e (XVI) melhor adaptação a diferentes requerimentos de administração, know-how e estrutura, para setores e atividades distintas".
Sem pretender debater cada um desses argumentos, proponho apenas os seguintes questionamentos: A) Maior transparência no que, se são incontáveis os exemplos de empresas terceirizadas sonegadoras de contribuições previdenciárias e depósitos de FGTS? B) Como a terceirização de atividade-fim facilita acesso a tecnologias e matérias-primas se neste caso a empresa terceirizada fornece exclusivamente a mão-de-obra? C) Há outro custo reduzido que não o de mão-de-obra?
As duas primeiras perguntas são retóricas, já sabemos a resposta, o texto em itálico é dissociado da realidade, com o devido respeito. A última pergunta traz um questionamento desvelado recentemente pelo próprio STF.
Em março de 2021, no julgamento do RE 635546, foi fixada a seguinte tese, com repercussão geral: "A equiparação de remuneração de remuneração entre empregados da empresa tomadora de serviços e empregados da empresa contratada (terceirizada) fere o princípio da livre iniciativa, por se tratarem de agentes econômicos distintos, que não podem estar sujeitos a decisões empresariais que não são suas".
A decisão em testilha afastou a possibilidade de equiparação remuneratória entre empregado efetivo e terceirizado que desempenhem as mesmas atribuições, com amparo no art. 12, a, da lei 6019/74 (dispositivo idealizado apenas para os temporários).
Importante destacar o seguinte trecho do voto do Ministro Luís Roberto Barroso: "Exigir que os valores de remuneração sejam os mesmos entre empregados da tomadora de serviço e empregados da contratada significa, por via transversa, retirar do agente econômico a opção pela terceirização para fins de redução de custos".
Pronto, chegamos à resposta daquela minha última pergunta: sim, a terceirização serve para baratear custos de mão-de-obra.
Então, em resumo, consolidando a jurisprudência fixada pelo STF de 2018 a 2021 sobre o tema, e trazendo ainda a previsão legal vigente desde a Lei da Reforma Trabalhista, podemos concluir: não só chancelamos, enquanto sistema, o comércio do humano pelo humano, mas também o comércio mais barato.
Fica a questão: para que, neste cenário, serve o Direito do Trabalho? Como compatibilizar um ramo do Direito destinado a reequilibrar juridicamente o desequilíbrio material entre capital e trabalho se o nosso sistema jurídico hoje se volta para a coisificação e precificação barateada do trabalho humano?
Este articulista não tem respostas. Este texto não tem respostas. Apenas traduz a perplexidade do ponto em que nos encontramos enquanto sistema jurídico, completamente divorciados de um regime de dignificação do trabalho humano.
Para que possamos acordar, enquanto é tempo, antes que não sejamos melhores do que os mercadores de escravos na era do imperialismo europeu.