Raízes da fraternidade e o tribunal do amor
Amor fraterno e direito são palavras incompatíveis? Pode-se dizer em conjunção?
terça-feira, 6 de abril de 2021
Atualizado às 13:06
Na impossibilidade de julgar, como Pôncio Pilatos, todos os dias lavamos as mãos! O cruzamento entre eternidade e história, ponto de atravessamento do temporal pelo eterno, humano e divino, tem a forma de um processo, de uma Krisis (juízo processual), lembra Giorgio Agamben.1 A Krisis provém do verbo grego Krino, separar, decidir em sentido jurídico, mas possui ainda um sentido médico (momento decisivo na evolução de uma doença), e teológico (Bema, função de juiz, en emerai Krinos, juízo final). O mundo dos fatos deve julgar o mundo das verdades. O que é verdade? Crime sem culpa?
Pilatos, personagem com psicologia e idiomatismos próprios, não se sente na posição de juiz e julgar Jesus Cristo. No pretório de Jerusalém a "entrega" (Kategorian) aos sacerdotes noticia o tempo de in-decisão (decidir sobre o indecidível), em crise de legitimidade e efetividade. A crise denota o constante juízo sobre todas as coisas, um estado de exceção fictício, em que a lei vige sem significar.
Amor fraterno e direito são palavras incompatíveis? Pode-se dizer em conjunção?
Exigências de um direito que fala de dignidade, igualdade, fraternidade e de abstrações, parece ter se esquecido do amor em espectros de descontinuidade e incoerências.
O amor fraterno, conjuga a autoridade das Escrituras com a tradição literária latina e cristã. O direito, não nega sua importância implícita, apenas sanciona sua irrelevância.
Com o peso da lógica patrimonial e quando as condições econômicas e sanitárias contemporâneas se fazem difíceis, a requisitada fraternidade configura um luxo de poucos. Signo de liberdade, a fraternidade (adelphótes) nos remete às suas raízes cristãs. A fraternidade universal se evidencia com laços humanos e sociais, sendo o irmão (adelphos), o próximo, que se tem deveres no âmbito da comunidade. O irmão (Pedro 2, 17; 5,9) não é um ideal a alcançar, mas uma realidade adquirida, um dom recebido que se adequa a existência e nas relações entre os cristãos. A fraternidade se impõe como princípio da comunidade cristã demonstrada de forma concreta nas novas atitudes realizadas por Jesus Cristo. Na cruz, Jesus supera a categoria do inimigo na definição política das relações inter-humanos. Jesus crucificado toma forma de mandamento, "amai os vossos inimigos" (t. 5, 38-48). O amor cristão é ágape, amor de Deus pelos homens, mas também amor entre os homens ou pelos irmãos. O paradigma do amor ágape é o amor gratuito que professa Deus a todas as suas criaturas, independentemente de seus méritos ou excelência, é a distribuição gratuita da graça. A forma plena de relação interpessoal é a fraternidade como reciprocidade da ágape em Cristo, que pressupõe e expressa a liberdade e abre o diálogo com quem esteja comprometido na busca da verdade-justiça.
Na dimensão política das democracias contemporâneas, a fraternidade ressurge podendo ser expressa em documentos políticos e jurídicos. Os termos que formam a tríade Liberdade-Igualdade-Fraternidade são complementares e antagônicos. A liberdade, por si só, destrói a igualdade e corrompe a fraternidade. Uma igualdade imposta acaba com a liberdade, sem reconsiderar a fraternidade. É a fraternidade o princípio regulador da liberdade e da igualdade. Se vivida fraternalmente, a liberdade não se torna arbítrio do mais forte, e a igualdade não degenera em igualitarismo opressor2.
A Encíclica Fratelli Tutti, do Santo Padre Francisco convida a uma reflexão de amor fraterno na dimensão universal, com abertura a todos, no contexto de crises de migrações, da pandemia e das novas tecnologias. Como vivenciar uma superação das distâncias de proveniência, nacionalidade, cor ou religião, transpondo fronteiras e marcos legais? São nas fronteiras geográficas que encontramos ações políticas que impedem migrantes a participarem da vida social.
São os denominados "Estranhos à nossa porta" que "tendem a causar ansiedade por serem diferentes e assustadoramente imprevisíveis, ao contrário das pessoas com as quais interagimos todos os dias e das quais acreditamos saber o que esperar.3". As fronteiras desaparecem no mundo das tecnologias digitais - sem território. Em um mundo submetido ao isolamento social é a comunicação digital que permite a interligação e o interação entre ausentes.
Com a pandemia, medidas jurídicas emergenciais de caráter sanitário emergem; (salus populi suprema lex esto" - De leg., III, 3, 8), mas, não precedem ao Estado de Direito. A emergência apesar de ser caos, longe de preceder a norma, possibilita capturar e incluir o que está fora do âmbito jurídico4. Essas medidas emergências efetivamente nos forçam a viver em condições atípicas dentro do marco jurídico.
Em um mundo cada vez mais desregulado, o medo, a incerteza, a ausência de confiança embaladas pela desinformação provocam animosidade e estimulam a violência, a exigir a positivação do princípio da fraternidade no Direito. A dimensão deôntica da fraternidade garante sua exigibilidade e refuta a compreensão do princípio apenas como virtude ética ligada tão somente a um sentimento humano. Pessoas nascem em diferentes circunstâncias que precisam ser compensadas por serem moralmente arbitrárias. Ninguém escolhe estar em situação de vulnerabilidade com diferentes dotações de habilidades e competências (deficiências físicas e mentais, extrema pobreza, situação de refúgio, dentre outros). Cabe ao poder público, por meio de políticas s efetivas e inclusivas, promover o Princípio Jurídico da Fraternidade como pilar fundamental para a formação do indivíduo.
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1 AGAMBEN, Giorgio. Pilatos e Jesus. Tradução: Silvana de Gaspari, Patrícia Peterle. 1ed. São Paulo: Boitempo, 2013.
2 BAGGIO, Antônio Maria. El principio olvidado: la fraternidad em la politica y el derecho. Trad. Honorio Rey. Buenos Aires: Ciudad Nueva, 2006
3 BAUMAN, Zygmunt. Desconeguts a la porta de casa. Barcelona: Arcadis, 2017. p.14.
4 AGAMBEN, Giorgio. O Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 24.
Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos
Professora livre-docente em Direito Penal pela USP. Doutora e mestre em Filosofia do Direito. Mestre em Direito Penal. Doutoranda em Ciência da Religião pela PUC/SP. Professora dos cursos do programa de pós-graduação da PUC/SP. Professora da graduação em Direito da PUC/SP.
Marilene Araujo
Advogada doutora em Filosofia do Direito pela PUC/SP. Mestra em Direito Constitucional pela PUC/SP.