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O crime de perseguição e a violação à taxatividade legal

Recentemente foi sancionada pelo presidente da República lei que insere no Código Penal o artigo 147-A, tipificando a conduta de perseguição, também conhecida como "stalking".

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Atualizado em 5 de abril de 2021 09:34

Recentemente foi sancionada pelo presidente da República lei que insere no Código Penal o artigo 147-A, tipificando a conduta de perseguição, também conhecida como "stalking", que se aplica em diferentes situações e contextos, tanto presencial como virtualmente:

"Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringido-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.

Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

§ 1º A Pena é aumentada de metade se o crime é cometido:

- contra criança, adolescente ou idoso;

- contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do §2-A do art. 121 desde Código;

- mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma.

§ 2º As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.

§ 3º Somente se procede mediante representação."

A legislação penal deve acompanhar novas demandas sociais e condutas que não faziam sentido à época da edição do Código Penal, tal como a perseguição virtual ou presencial, reiterada, nos exatos termos da lei, que ameace a integridade física ou psicológica da vítima, que restrinja sua capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invada ou perturbe sua esfera de liberdade ou privacidade.

Entretanto, em muitos casos, leis penais são confeccionadas e sancionadas atendendo a algum anseio popular, mas deixando de lado a melhor técnica legislativa. A criação de tipos penais amplos e imprecisos pode incorrer em insegurança jurídica e perigosa expansão do poder punitivo.

No caso recente da criminalização do "stalking", não se discute a gravidade da conduta ou a importância de sua repressão à altura, considerandose a utilização massiva das redes sociais, perfis falsos e práticas pouco éticas que permeiam a comunicação digital, e que atinge, em especial, as mulheres, que têm sido vítimas de perseguição reiterada, violência psicológica, muitas vezes representando um prenúncio de um mal maior.

Sendo assim, parece correta a resposta legislativa a condutas que antes eram de difícil tipificação, cuja punição muitas vezes era "enterrada" na Lei de Contravenções Penais - a perturbação da tranquilidade, ora revogada, é um exemplo - e em crimes pouco adequados para o caso concreto, cuja resposta, aos olhos da vítima, não era suficiente, como os crimes contra a honra e ameaça. 

Contudo, a criação de leis de natureza penal não pode - nem deve - vir acompanhada de tantas dúvidas quanto à sua abrangência e delimitação das condutas concretas e meios de execução possíveis, sob pena de violação ao princípio da reserva legal estrita, como parece ser o caso da tipificação do crime de perseguição.

Dando o tom de sua importância histórica, FRAGOSO afirmava à época que o "princípio da legalidade é hoje universalmente reconhecido em seu sentido básico de garantia essencial do cidadão em face do poder punitivo do Estado, determinando com segurança a esfera da ilicitude penal."1

A máxima nullum crimen, nulla poena sine lege, expressão inaugurada por FEUERBACH2, demonstra ser a legalidade o princípio que possibilita - e deve, por sua vez, impedir - que qualquer ação humana seja criminalizada e, portanto, punida com a aplicação de uma sanção penal, exigindo a existência de lei penal escrita, prévia, estrita e certa. 

Aqui, particularmente, interessa-nos a análise de uma das derivações da expressão acima referida, representada pela fórmula lex certa3. A existência de lei penal que tipifica determinada conduta não é bastante, caso tal previsão legal seja vaga, ampla, indefinida e incerta. Caso assim seja, a insegurança jurídica que esta incerteza trará, inequivocamente violará o princípio da legalidade estrita.

TOLEDO (2000, p. 29) ensina que "a exigência de lei certa diz com clareza dos tipos, que não devem deixar margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios"4. Acerca da necessidade de definição, certeza e precisão da lei penal, ZAFFARONI e BATISTA subdividem o princípio da legalidade, trazendo à tona o "princípio da máxima taxatividade legal e interpretativa".5

De acordo com os autores, cabe ao legislador, portanto, a incumbência de esgotar os recursos técnicos em prol de uma maior exatidão legal, não bastando que a criminalização primária se restrinja à criação formal de uma lei, mas sim que ela seja elaborada de maneira taxativa e com a maior precisão técnica possível.

Nas palavras de CIRINO DOS SANTOS (2006, p. 23), "interpretações judiciais idiossincráticas"6 são favorecidas pela existência de leis penais indefinidas ou obscuras, que impedem ou dificultam o conhecimento da conduta proibida. Já para NILO BATISTA (2011, p. 78) a função de garantia individual exercida pelo princípio da legalidade "estaria seriamente comprometida se as normas que definem os crimes não dispusessem de clareza denotativa na significação de seus elementos, inteligível por todos os cidadãos".7

Notadamente quanto ao novo crime de perseguição, não é possível extrair da simples leitura do tipo penal uma definição clara de qual conduta determinada pode representar uma violação à lei, sendo, portanto, passível de punição. Caberá, mais uma vez, à doutrina e, principalmente, à jurisprudência modularem as condutas passíveis de criminalização pelo recente tipo penal, delimitando (ou ampliando, a depender do particular interesse casuístico) sua abrangência.

Neste sentido, FRAGOSO (1980, p. 97) entendia que, diante de uma incriminação vaga e indeterminada, entregar ao arbítrio do julgador a identificação e delimitação do fato punível ceifaria o princípio da reserva legal.

Para BITENCOURT (2010, p. 55)8 quando o legislador dispõe da possibilidade de adotar uma redação legal mais precisa e clara e opta pela via contrária, deve haver, inquestionavelmente, a declaração de inconstitucionalidade do novo dispositivo legal.

Podemos concluir que a nova lei penal que tipificou a conduta de perseguição reiterada peca na indefinição causada pelas expressões "por qualquer meio" e "de qualquer forma". Deixou, mais uma vez, a cargo da jurisprudência e da doutrina limitar o alcance do tipo através do meio e forma de execução possíveis.

Como muito bem pontuou CALLEGARI9, já em uma primeira tentativa de modulação da conduta, o instrumento desta perseguição englobaria o reiterado envio de mensagens, postagens em redes sociais, ligações telefônicas etc., que efetivamente diminuam a liberdade e sentimento de segurança da vítima, submetida a perseguições ou vigilâncias constantes, chamadas reiteradas, ou outros atos contínuos de importunação.

Devemos, entretanto, aguardar as primeiras manifestações dos tribunais sobre o tema ou mesmo as primeiras linhas doutrinárias que vão se debruçar sobre o assunto, para sanar dúvidas que até o momento estão indefinidas, tais como: qual a quantidade razoável de mensagens, ligações, postagens que o autor deste crime deve praticar para a consumação do delito? Como os tribunais lidarão com a perseguição praticada com postagens de cujo conteúdo possa se extrair a prática de crimes contra a honra ou ameaça, por exemplo? Um único ato (grave, diga-se de passagem) de perseguição presencial será suficiente sua incidência? 

Dúvidas como essas certamente poderiam - e deveriam - ter sido sanadas com a elaboração de uma lei penal mais clara e, por consequência, menos ampla e de aplicação facilitada, que não violasse o princípio da taxatividade, cuja defesa irrestrita é corolário lógico do próprio estado democrático de direito. 

_____

1 FRAGOSO, Heleno Cáudio: Lições de direito penal: parte geral, 1980, p. 93
2 FEUERBACH, Lehrbuch des gemeinen in Deutschland geltenden Peinlichen Rechts, 1801, p. 20 apud CIRINO DOS SANTOS, Juarez: Direito penal: parte geral, 2006.
3 STRATENWERTH, Stafrecht, 2000, p. 58-59 apud CIRINO DOS SANTOS, Juarez: Direito penal: parte geral, 2006. 
4 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, 5ª Ed - São Paulo: Saraiva, 2000.
5 ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR: Direito penal brasileiro: primeiro volume - Teoria Geral do Direito Penal 2003, p. 206.
6 CIRINO DOS SANTOS, Juarez: Direito penal: parte geral, 2006, p. 23.  
7 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, 12ª ed., 2011, p. 78
8 BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano: Crimes contra o sistema financeiro nacional e contra o mercado de capitais, 3ª ed., 2014, p. 55.
9 André Callegari: "Primeiras linhas sobre o delito de stalking". Disponível aqui.

 

Guilherme Furniel

Guilherme Furniel

Advogado criminalista, graduado pela UFRJ, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC/Uninter; com certificação em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas; pós-graduando em Advocacia Criminal pela UERJ e sócio do escritório Maíra Fernandes Advocacia.

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