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Do novo modelo de Arquivamento do Inquérito Policial: uma leitura constitucional

A solução legislativa criou a figura de uma espécie de 'reexame necessário administrativo' das promoções de arquivamento do inquérito policial. Algo não só atípico como inédito.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Atualizado às 17:39

Com a entrada em vigor da lei 13.964/19, conhecida como Pacote Anticrime, pretendeu-se a alteração do princípio gestor de todo o conteúdo do processo penal. Assim, claramente, buscou-se a substituição de quaisquer resquícios do sistema inquisitório pelo acusatório (novo art. 3-A do CPP). Os papéis do juiz e do Ministério Público foram notadamente revistos e, por consequência, todo o procedimento investigatório inicial; seja para fins de oferecimento da denúncia, acordo de não persecução, seja para o seu arquivamento.

Aparentemente, busca-se priorizar a denominada 'justiça penal negocial' e viabilizar o protagonismo processual às partes, com a exclusão de qualquer ativismo do magistrado. Essa a tônica da alteração promovida ao art. 28 do CPP, que passa a dispor1:

Art. 28 - Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei.

§ 1º Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica.

§ 2º Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial." (NR)

Ou seja, na nova modalidade não cabe mais ao Poder Judiciário exercer qualquer espécie de controle. A solução legislativa criou a figura de uma espécie de 'reexame necessário administrativo' das promoções de arquivamento do inquérito policial. Algo não só atípico como inédito. Além disso, há a via do recurso da vítima, em hipótese de impugnação da manifestação do titular da ação penal, via de regra, de iniciativa pública (art. 129, I, CF).

A nosso ver, porém, se há possível inconstitucionalidade de algum dispositivo da nova legislação, essa parece ser a mais flagrante, com a criação de um reexame necessário em evidente violação ao princípio da presunção de inocência.

Ora, se houve investigação, tendo o agente do parquet fundamentadamente proposto o   arquivamento, a revisão de sua decisão somente deveria ocorrer com fulcro na discricionariedade técnica embasada na ausência de condições para o exercício da ação penal, e não mediante homologação de ofício ou recurso hierárquico administrativo. Melhor, e aí sim constitucional, seria a manutenção da sistemática anterior, que submetia o arquivamento ao crivo judicial, com a possibilidade de encaminhamento ao órgão superior do Ministério Público, sob perspectivas exclusivamente técnicas (ou seja, presença ou não das condições da ação).

Com a criação do referido reexame administrativo necessário, prolonga-se uma investigação preliminar, quiçá injusta ou até sem quaisquer bases técnicas, em nítido sofrimento ao investigado que, aparentemente, deverá aguardar inerte à revisão (homologatória) de um procedimento contra si instaurado.

Preferível a possibilidade de o magistrado local discordar do arquivamento, remetendo, aí sim, os autos à instância superior do Ministério Público. E veja-se que isso, inclusive, seria feito pelo 'juiz das garantias', segundo a nova sistemática legal (art. 3º-B, IV, V e IX, do CPP), de modo que sequer se poderia objetar quanto a sua parcialidade para posterior julgamento do processo.

Não se duvida que a essência da intenção seja aproximar o sistema processual penal brasileiro do sistema acusatório, impedindo o Poder Judiciário de exercer o controle da promoção de arquivamento do inquérito, vez que esse será feito, exclusivamente, pela instância de revisão ministerial. A busca por um juiz vinculado ao princípio dispositivo não pode, porém, afastar o sistema processual brasileiro da atuação por um juiz justo e democrático, que exerça sua função constitucional de garante dos direitos individuais e inafastabilidade da tutela dos cidadãos. A idéia aqui propugnada é, pois, que, diante das redações dos incisos IV, V e IX do art. 3º-B, da lei 13.964/19 e da nova regra do art. 28, CPP, introduzida pela mesma legislação, a melhor compreensão constitucional para os dispositivos em análise esteja na possibilidade de o juiz das garantias determinar o arquivamento do inquérito policial, ou remeter o inquérito à instância superior, seja por força de iniciativa da vítima, seja por discordar da manifestação ministerial.

Não se retira a viabilidade da, agora instaurada, decisão administrativa de "não acusar". Sequer se defende que a autonomia institucional do titular da ação penal deva sofrer alguma interferência institucional. Ao contrário, quando se defende que ela própria deveria prevalecer, independentemente de 'reexame administrativo' hierárquico superior, o que se idealiza é, justamente, preservar a manifestação de vontade já formalizada pelo 'dominus litis' da ação penal.

De fato, a inovação legislativa não pode, a nosso ver, afastar princípios constitucionais basilares, entre os quais a presunção de inocência e a inafastabilidade da tutela jurisdicional.

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1 Ressalte-se que o Min. Luiz Fux, no dia 22 de janeiro de 2020, na condição de relator das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6305, proferiu decisão liminar suspendendo "sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, (b1) da alteração do procedimento de arquivamento do inquérito policial (Artigo 28, caput, Código de Processo Penal)" (STF - Min. Luiz Fux - ADI/MC 6288 6299 6300 6305/DF - j. em 22.01.2020). Assim, a nova sistemática ainda não está em vigor, mantendo-se a sistemática da redação revogada do art. 28 enquanto perdurar referida medida cautelar.

Bianca Georgia Cruz Arenhart

Bianca Georgia Cruz Arenhart

Juíza federal. Coautora do livro "Comentários ao Novo Inquérito Policial" lançado pelo Instituto Luiz Mario Moutinho.

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