A nova lei da eutanásia na Espanha: morte digna e a excludente de ilicitude da conduta médica
Diferente do legislador brasileiro que se furtou na disciplina técnica das ações e omissões na prática da eutanásia, o constituinte espanhol foi taxativo quanto ao procedimento médico a ser adotado.
terça-feira, 30 de março de 2021
Atualizado às 16:16
A Espanha aprovou em 18 de março de 2021 (com vacatio legis de três meses) sua lei de eutanásia1, com a regulação dos dispositivos que permitem aos profissionais médicos finalizar o sofrimento de determinados pacientes com a administração de medicamentos letais, bem como permite ao próprio paciente a autoadministração de medicações, disciplinando o suicídio assistido e, desta forma, delimitando os contornos da causa de justificação para a conduta médica. Neste avanço legislativo, a Espanha se torna o quinto país do mundo a regulamentar este direito.
1. A Eutanásia no ordenamento jurídico brasileiro
A conduta médica da eutanásia se amolda ao tipo de homicídio simples (art. 1212, Código Penal), havendo, em situações específicas, a causa de diminuição de reprimenda advinda do relevante valor moral da conduta, com a aplicação do § 13 do mesmo artigo.
Ainda em trâmite, o projeto para a reforma do Código Penal (PLS 236/124) apresenta a inovação no tipo do art. 122, assim disposto:
Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave:
Pena - prisão, de dois a quatro anos
Esta novel tipificação, ao que nos parece, para euxaurimento do tipo, exigirá complementação de atestados e documentações médicas que atendam os elementos normativos "paciente em estado terminal" e "em razão de doença grave", onde, sabidamente, será necessária a confirmação do profissional médico através de seu conhecimento técnico, guidelines e da literatura médica.
Ao paciente que se submete ao procedimento médico de abreviação da vida, o tipo ainda impõe a figura do consentimento obrigatório ao regular a elementar "a seu pedido", ou seja, o legislador foi firme ao ordenar aos profissionais de medicina e casas hospitalares que colham, de forma inequívoca, a exrternalização da vontade do paciente.
Em atenção aos casos concretos, o legislador permitiu a faculdade do magistrado - tal como no atual § 5, art. 121 -, no afastamento da aplicação da reprimenda em casos específicos:
§1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição com a vítima.
Delimitada, portanto, a figura da eutanásia na nova propositura de estutato penal, enaltece-se a intenção do legislador quanto a causa de justificação impressa no § 2, art. 122, assim posto:
§ 2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, conjugê, companheiro ou irmão.
A causa justificante é o mais importante avanço legislativo em atenção a vontade do ser humano e a plena disposição de seu bem jurídico, ante ao sofrimento irreversível e a dignidade constitucional conferida aos seus cidadãos. Como aduz Busato, basicamente, toda causa de justificação é composta por uma situação especial justificante, ou seja, pela conjunção de circunstâncias que tornam a ocasião singular e especial em face daquela que trivialmente deriva em responsabilidade pela realização de um tipo e uma atitude do sujeito que, obedecendo uma série de requisitos, permite ser enquadrada na causa de justificação e, em face disso, permanecer impune[5].
De plano, em leitura ao núcleo verbal do tipo, o legislador promoveu a justificação da conduta omissiva do profissional médico - deixar de fazer -, onde torna lícita a conduta negativa do não-fazer o que a lei exige, assim sendo, na não utilização de meios artificiais, que, prima facie, entende-se pela não utilização de equipamentos médicos essenciais para a manutenção da vida (ventilação mecânica, aparelhos cardiológicos, entre outros). Duas perguntas permeiam a justificante: Em havendo a plena manifestação de vontade do paciente ou familiares conforme o tipo, a conduta positiva de desligamento dos aparelhos está encampada na licitude da ação? A ação de ministrar medicamento para abreviar o sofriemento e, como consequência, a vida, estaria abarcada na justificação? Respostas a serem discutidss em um futuro não distante pela doutrina.
Retornando ao tema do debate, tem-se que o legislador espanhol se debruçou de forma pormenorizada no assunto.
2. O avanço legislativo espanhol: Eutanásia enquanto direito fundamental
Já em sua exposição de motivos, o legislador espanhol visou dar uma resposta legal, sistemática, equilibrada e garantida a uma demanda sustentada da sociedade atual.
Os congressistas espanhóis entendem que nas doutrinas bioéticas e criminais há hoje amplo consenso em limitar o uso do termo "eutanásia6", de modo que as ações por omissão que foram designadas como eutanásia passiva (não adoção de tratamentos tendenciosos para prolongar a vida e a interrupção dos já instituídos de acordo com a lex artis), ou que possam ser considerados como eutanásia indireta ativa (uso de medicamentos ou meios terapêuticos que aliviem o sofrimento físico ou mental mesmo que acelerem a morte do paciente - cuidados paliativos -) foram excluídos do conceito bioético e jurídico-penal da eutanásia.
A legalização e a regulamentação da eutanásia, conforme entendimento apresentando na discussão legislativa, baseiam-se na compatibilidade de alguns princípios essenciais que estão na base dos direitos das pessoas e que, por isso, estão consagrados na Constituição espanhola. São, por um lado, os direitos fundamentais à vida e à integridade física e moral e, por outro, bens protegidos pela constituição, como a dignidade, a liberdade ou a autonomia da vontade.
A lei espanhola é composta de tópicos, em sendo: 1. Delimitar a amplitude de aplicação e seu objeto; 2. Os requisitos para as pessoas solicitarem ajuda para morrer e as condições para seu exercício; 3. Regulação do procedimento; 4. Regular o acesso para todos os cidadãos, de forma isonômica; 5. Criação de comissões especializadas; 6. Apoio aos cidadãos e profissionais da medicina; 7. Alteração do Código Penal Espanhol.
Diferente do legislador brasileiro que se furtou na disciplina técnica das ações e omissões na prática da eutanásia, o constituinte espanhol foi taxativo quanto ao procedimento médico a ser adotado. No artigo 3º da lei, as definições técnicas estão assim apresentadas:
g) "Prestação de ajuda à morte": ação decorrente da disponibilização dos meios necessários a quem cumpre os requisitos desta lei e que manifestou o desejo de morrer. Esse benefício pode ser produzido de duas maneiras:
1.a) A administração direta de uma substância ao paciente pelo profissional de saúde competente.
2.a) A prescrição ou fornecimento ao paciente, pelo profissional de saúde, de uma substância, para que possa ser autoadministrada, causando a sua própria morte.
Desta forma, o legislador espanhol foi assertivo quanto as condutas praticadas por médicos no momento da ação esperada e as formas da prática da atividade regulada pela lei.
Em respeito a autonomia do médico, a lei trata acerca da objeção de consciência em seu artigo 167, ou seja, ao médico espanhol é assistido o direito de não praticar condutas que afrontem sua consciência e moral. O tema também é conferido aos médicos brasileiros consoante a Resolução do Conselho Federal de Medicina 2.232, de 17 de julho de 20198, disciplinada no art. 89.
3. Alterações no Código Penal Espanhol
A nova lei da eutanásia na Espanha promoveu alterações do Código Penal Espanhol10 em seu art. 143, com a modificação do item 4, que vigora com a seguinte redação:
Artigo 143.
1. Quem provocar o suicídio de outrem é punido com pena de prisão de quatro a oito anos.
2. A pena de prisão de dois a cinco anos é imposta a quem cooperar com os actos necessários ao suicídio de uma pessoa.
3. Será punido com pena de prisão de seis a dez anos se a cooperação chegar à execução da morte.
4. Aquele que causa ou colabora ativamente com atos necessários e diretos à morte de pessoa que sofre de doença grave, crônica e incapacitante ou grave e incurável, com sofrimento físico ou psicológico constante e insuportável, por solicitação expressa, grave e inequívoca disso, será punido com pena inferior em um ou dois graus às indicadas nos incisos 2 e 3.
Com isto, não obstante, disciplina-se causa de diminuição de pena, nos moldes ao homicídio pelo relavante valor moral tipificado na lesgilação brasieleira em seu art. 121, §1. O legislador espanhol, com a alteração do tipo, promoveu uma melhor redação, acrescentando os elementos "de una persona que sufriera un padecimiento grave, crónico e imposibilitante o una enfermedad grave e incurable, con sufrimientos físicos o psíquicos constantes e insoportables".
Entretanto, com a nova legislação da eutanásia, foi incluído o item 5 no mesmo artigo a causa de excludente de ilicitude conferida aos profissionais da medicina:
5. Sem prejuízo do disposto no número anterior, quem causar ou cooperar activamente com a morte de outrem não incorre em responsabilidade penal com observância do disposto na lei orgânica que regula a eutanásia.
Demanda-se, portanto, uma interpretação sistemática da justificante com a nova legislação da eutanásia diante as condutas. Em breve apartado, a conduta do profissional da medicina se torna lícita quando atender aos preceitos da legislação, em sendo:
a) Se estiver consciente, o interessado deve primeiro solicitar a eutanásia duas vezes por escrito (ou por outro meio que deixe evidências, por exemplo, se a pessoa não souber escrever) separadas por 15 dias e que deixe claro que não é "o resultado de qualquer pressão externa;
b) Após a primeira solicitação, o médico responsável pelo caso deve realizar com o paciente solicitante "um processo deliberativo sobre o seu diagnóstico, possibilidades terapêuticas e resultados esperados, bem como sobre os possíveis cuidados paliativos, certificando-se de que ele entendeu as informações fornecidas;
c) Depois disso, o paciente deve confirmar sua intenção. Além disso, após a segunda solicitação, deve haver uma reunião médico-paciente para garantir que ele sabe o que está pedindo;
d) Com isso, já haveria quatro vezes que o paciente deveria confirmar seus desejos, e todos eles deveriam estar refletidos em sua história médica. Mas, além disso, depois que o comitê de avaliação aprovar o procedimento, o paciente terá que concordar novamente.
e) O interessado poderá interromper o processo a qualquer momento.
A lei regulou o sujeito passivo, ou seja, aquele que será submetido no procedimento de eutanásia, deverá obrigatoriamente ter nacionalidade espanhola ou residência legal na Espanha ou um certificado de registo que comprove uma permanência em território espanhol superior a 12 meses, ser maior de idade e estar apto e ciente no momento do pedido, se assim o puder.
Por fim, inegável o avanço legislativo na Espanha em termos de direitos fundamentais, em atenção a dignidade humana, e a incorporação de causas excludentes de ilicitude na prática médica, em afastamento da aplicação da legislação penal nos casos regulados pela nova lei da eutanásia.
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1 122/000020 - Proposición de Ley Orgánica de regulación de la eutanasia.
2 BRASIL. Código Penal. Art. 121. Matar alguem: Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
3 BRASIL. Código Penal. Art. 121, § 1º: Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
4 BRASIL. Projeto de Lei do Senado n° 236, de 2012. Novo Código Penal.
5 BUSATO, Paulo César. Direito Penal: Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015, p. 470.
6 Eutanásia significa etimologicamente "boa morte" e pode ser definida como o ato deliberado de acabar com a vida de uma pessoa, produzido pela vontade expressa da própria pessoa e com o objetivo de evitar o sofrimento.
7 "A recusa ou a negativa em realizar o referido benefício por motivo de consciência é uma decisão individual do profissional de saúde diretamente envolvido na sua execução, que deve ser declarada previamente e por escrito."
8 Disponível em <clique aqui>.
9 Art 8º Objeção de consciência é o direito do médico de se abster do atendimento diante da recusa terapêutica do paciente, não realizando atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.
10 REINO DA ESPANHA. Ley Orgánica 10/1995, de 23 de noviembre de 1995.
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BRASIL. Código Penal. Lei nº 7209, de 11 de julho de 1984.
BRASIL. Projeto de Lei do Senado n° 236, de 2012. Novo Código Penal.
BUSATO, Paulo César. Direito Penal: Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015.
REINO DA ESPANHA. 122/000020 - Proposición de Ley Orgánica de regulación de la eutanasia.