Críticas reflexivas acerca da adequação típica em meio à pandemia
Tornou-se pública a conduta chamada de "fura fila", praticada por pessoas que burlam a ordem de vacinação estabelecida pelas autoridades para que tenham acesso ao imunizante mais rapidamente.
sexta-feira, 26 de março de 2021
Atualizado em 30 de março de 2021 13:56
No que concerne às condutas tipificadas que têm como bem jurídico tutelado a saúde pública, cabe expor primeiramente o crime de infração de medida sanitária preventiva previsto no artigo 268 do Código Penal, o qual já foi exaustivamente debatido nos tempos atuais em razão do momento vivido.
Conforme exposto trata-se de norma penal em branco, ou seja, precisa de um complemento para que tenha efetividade e esse complemento definiria a medida sanitária preventiva, assim, os decretos estaduais atualmente são o complemento do artigo 268 do CP complementando o tipo penal, formando o que a doutrina penal alemã de Karl Binding chama de norma penal em branco heterogênea, restringindo o direito fundamental de locomoção já que os decretos supracitados determinam o isolamento social.1
Nessa linha, tal delito representação restrição clara à liberdade de locomoção, um direito fundamental e ou humano reconhecido pela constituição no artigo 5°, inciso XV, da CRFB, que tem eficácia plena e deve ser exercido com restrições fundamentadas e de modo a não abolir o núcleo de tal direito, preservando-o na medida em que não seja utilizado para violar o ordenamento jurídico e suas normas de conduta.
Assim, esse tipo penal incrimina frontalmente o exercício de um direito fundamental previsto na constituição, se locomover ou se reunir, em alguns locais do território nacional, infringindo as medidas sanitárias, pode configurar crime previsto no artigo 268 do CP, ou seja, circunstancialmente se tornou crime o exercício de um direito fundamental, mas não há insurgência contra tal medida, tendo em vista que se tornou totalmente proporcional ao momento vivenciado no país:2
Nessa esteira, a restrição aos direitos fundamentais, em tempos de pandemia, não exige forma jurídica específica nesse caso, tendo em vista a rapidez da propagação, a gravidade da crise sanitária vivida e o esforço imediato exigido para conter a pandemia, que cada autoridade utilizou como instrumento jurídico para o combate emergencial de forma proporcional e pertinente, somente havendo vício formal se o instrumento jurídico adotado não for de competência da autoridade que o editou.3
A reflexão acima objetiva demonstrar que a intervenção penal na sociedade precisa ser delimitada de forma restritiva, a uma para que o judiciário não seja abalroado com uma chuva de ações judiciais buscando a condenação improdutiva de réus, a duas pela eficácia de medidas menos gravosos e mais eficazes para conter os agentes, por isso a atuação do Direito Penal, em qualquer momento, deve ser contida e estreita sem expansão desnecessária e ineficaz das sanções penais.4
Assim surge o papel do operador do Direito em meio a pandemia, as medidas adotadas de forma emergencial devem surgir como fontes eficazes de pacificação social. O operador do Direito precisa entender que a monotonia comodista do demandismo penal deve ser substituída pelas soluções administrativas, as quais, muitas vezes, atingem soluções utilitárias e eficazes para a condutas desviantes que oferecem retorno social mais benéficos do que a imposição da pena.5
Nesse diapasão assume função magistral a teoria do bem jurídico e a pedra fundamental da intervenção mínima. É sabido que há instrumentos administrativos no combate à pandemia sendo usados pelas autoridades brasileiras, logo as sanções administrativas devem ser utilizadas antes da sanção penal, como por exemplo, multa acompanhada de notificação de que será encaminhado à delegacia se for encontrado novamente infringindo as medidas sanitárias.
Essas sanções administrativas devem resguardar o Direito Penal, evitando que o mesmo seja chamado a atender todas as condutas desviantes perpetradas, desta forma a tutela jurídica seria produzida de maneira muito mais célere e sem precisar aguardar a apuração mais lenta em uma sentença, além disso, teríamos uma preservação da tutela penal sem banalização e causando menor ebulição social, podendo ser eficaz sem ao menos chegar à Polícia Judiciária.6
O encontro inevitável com o judiciário só poderá ser realizado após a utilização da via administrativa, de forma transparente, explicando as restrições e advertindo sobre o que ocorrerá em caso de persistência na violação às restrições. Se isso não for possível, e não se deve ser leviano ou anedótico aqui, deve ser acionado o judiciário, mas com todos os riscos e dificuldades que isso abarca, ou seja, em meio a uma pandemia em que o judiciário funciona com limitações se exigirá, muitas vezes, resposta penal não privativa de liberdade.
Além disso, como já exposto no presente, os agentes de polícia ostensiva devem ser orientados acerca das condutas de preservação do Direito Penal, devem ser orientados a utilizar a via administrativa em primeiro lugar, e somente após a tutela penal, já que a pandemia concentra os maiores esforços atualmente, mas não se pode olvidar que outros crimes continuam a acontecer e incrementar o número de inquéritos não é uma boa solução a já tão atarefada Polícia Judiciária.
Por isso o encaminhamento à delegacia com lavratura de Termo Circunstanciado só ocorreria depois de averiguado se já houver notificação administrativa anterior ao agente em questão e se a finalidade é criminosa, já que pessoas podem infringir as medidas sanitárias de forma atípica, ou seja, excluído o crime já na análise da conduta.7
Em uma perspectiva de redução de danos e de redução dos riscos decisionistas, que podem tornar a busca pela Tutela Penal em uma sanção simbólica e inócua, a medida judicial mais adequada a ser tomada seria a utilização da Justiça Penal Negociada na maioria dos casos, na qual não se discutirá o mérito, mas será de importância irrefutável para demonstrar que as condutas perpetradas merecem uma resposta amarga estatal.8
Dessa forma, é de obviedade ululante que o agente de polícia ostensiva não deve encaminhar à delegacia, por flagrante ação criminosa, alguém que está em busca de remédios ou cumpre atividade laborativa essencial, vou além, alguém que ainda não sofreu as sanções administrativas por violação às medidas sanitárias de forma criminosa, também não poderia ser encaminhado à delegacia, deve sofrer sanções e advertência administrativa, pela subsidiariedade e fragmentariedade da tutela penal, só assim poderíamos resguarda mais uma vez a máquina penal à questões mais sensíveis e necessárias.9
Atravessado o campo tortuoso da infração das medidas sanitárias preventivas, à análise dos crimes relacionados à vacinação durante a pandemia, todavia, ressaltando mais uma vez que a tutela penal é subsidiária e fragmentária, logo tais condutas só se configuram em caso de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado em questão, por isso as condutas devem ser analisadas a partir da teoria do bem jurídico com o viés restritivo que demanda a tutela penal.10
Tornou-se pública a conduta chamada de "fura fila", praticada por pessoas que burlam a ordem de vacinação estabelecida pelas autoridades para que tenham acesso ao imunizante mais rapidamente. Primeiramente deve ser esclarecido que o início da vacinação foi destinado às pessoas do denominado grupo risco, ou seja, pessoas com alguma comorbidade e de faixas etárias mais avançadas, começando pelas pessoas com mais de 100 anos, na maioria dos municípios brasileiros.
Seguindo a avaliação da conduta descrita, vale ressaltar que o controle da vacinação é feito pelo preenchimento eletrônico ou físico do sistema de saúde do ente federado que promove a imunização em massa, desta feita em análise superficial já constatamos a existência de conduta fraudulenta, já que para que a vacinação seja realizada em indivíduo fora do perfil permitido deve haver omissão no preenchimento ou inserção de informações falsas. Ademais, essa conduta só se torna possível com a aquiescência do agente público que realiza a vacinação, pois somente este terá a oportunidade de manipular o imunizante, em atitude de mero detentor.
Em um primeiro momento deve ser analisada a conduta do agente pública que desvia o imunizante do destino final que seria as pessoas com a faixa etária divulgada pelos governantes de maneira gradual para imunização. A inserção de informações falsas no sistema de controle do ente federado, configura fraude, o que nos restringe aos tipos penais que apresentem fraude como elemento do tipo.
Além disso, há a vantagem ilícita de cunho econômico ou pessoal auferida pelo agente público ao vacinar alguém de sua livre escolha e por fim temos o prejuízo econômico da fazenda pública, que tem a sua dose de imunizante desviada, já que a valoração econômica do imunizante é imensurável nesse momento, além do prejuízo à saúde do público alvo, que ainda são os maiores de 70 anos no momento, os expondo lesão à doença altamente letal e em plena circulação.
Nesse sentido, em razão da legalidade penal estrita e da adequação típica formal chegamos ao crime de estelionato do art. 171 do Código Penal, na forma qualificada por ser perpetrado contra pessoa maior de 70 anos, conforme o parágrafo terceiro do artigo, e de ação penal pública incondicionada por ser contra maior de 70 anos nesse caso, conforme o parágrafo 5º do mesmo artigo. Ao agente que recebe o imunizante, que sabe ser produto do crime, resta configurado a conduta prevista no art.180 do cp, crime de receptação, qualificada pelo parágrafo 6º, tendo em vista que se trata de bem de ente federado.11
Todavia, a fraude empregada, qual seja, omissão na inserção dos dados do vacinado ou inserção de dados falsos, provoca prejuízo à mais de uma vítima, já que temos o prejuízo financeiro causado à administração pública que investiu na compra de imunizantes e o prejuízo à saúde do idoso seria imunizado, nesse sentido a doutrina penalista clássica é uníssona em afirmar que o prejuízo no estelionato pode ter cunho econômico ou não, mas o produto do prejuízo deve criar vantagem patrimonial ao agente, e nesse caso a infração é produto de patrimônio, eis o alto valor de mercado do imunizante em questão.12
Tendo em vista que o prejuízo em análise é suportado por 2 vítimas diferentes no estelionato em questão, conclui-se que há concurso formal de crimes, pois temos estelionato praticado em prejuízo de idosos maiores de 70 anos e em prejuízo da administração pública, entretanto, continua sendo infração produtora de vantagem econômica, salientando-se que o bem jurídico tutelado é o patrimônio, já que estamos no título dos crimes contra o patrimônio. A pluralidade de vítimas no caso da coletividade de idosos maiores de 70 anos deve ser aferida na dosimetria da pena no art.59 do cp, assim como o aumento pelo motivo egoístico, as circunstâncias de pandemia e consequências nefastas para a saúde pública e vida das pessoas.13
Por outro lado, é recorrente nas delegacias de polícia atualmente a capitulação de tal conduta nos crimes de infração de medida sanitária preventiva do art. 268 do cp em concurso formal com o art 312, do cp, peculato. Insta salientar que a conduta é recente e que a situação vivida pela população mundial não é experimentada há mais de 100 anos.
Além disso, a crítica a expansão da tutela penal no Brasil se faz necessária nesse caso. Não é novidade que o Brasil convive com uma inflação legislativa absurda em todas as searas do Direito, entretanto, a instabilidade, insegurança jurídica e injustiça causada pela previsão de mais de 1.700 tipos penais em um ordenamento jurídico faz como que a adequação típica de condutas no Brasil seja como procurar uma agulha no palheiro, o que torna a crítica a qualquer capitulação muito mais uma reflexão científica do que um julgamento açodado das reflexões de qualquer operador do Direto.14
Portanto, passada a crítica à inflação legislativa, voltemos a conduta a ser analisada: A conduta fraudulenta está clara conforme já explicado, entretanto em esforço de clareza, cabe explicar que o agente público, ao desviar o imunizante, sempre terá que ludibriar a Administração Pública por meio fraudulento, seja a inserção de informação falsa ou a omissão dessa informação, nesta última hipótese tentando fazer com que o desvio não seja contabilizada pelo ente público responsável pela vacinação.
Assim, temos a fraude como figura elementar da conduta praticada, ou seja, nosso leque de opções com mais de 1.700 tipos penais se reduz aos tipos penais que apresentam fraude em seu núcleo, o que não é o caso do peculato, art.312 do cp, ou da infração de medida sanitária preventiva, art. 268 do cp, somente por esses argumentos já teríamos tal tipificação excluída. Porém, há ainda a possibilidade de considerarmos a fraude na dosimetria da pena no art.59 do cp, circunstâncias judiciais, primeira fase da dosimetria, considerando-a nas circunstâncias do crime.
Vale discordar cientificamente dessa última reflexão ou capitulação em razão do seguinte: A criticada inflação legislativa Brasileira, já citada no presente, nos trouxe inúmeros problemas, todavia, também nos oportuniza a adequação típica perfeita, como diria o mestre Nelson Hungria a adequação típica é como a mão que calça a luva sem nada faltar. Por isso, indago aos que capitulam tal conduta no art. 268 do cp, e no art, 312, do cp, se a adequação típica é como a mão que calça a luva sem nada faltar, e realmente é, onde ficaria o dedo chamado fraude dessa conduta chamada mão nas condutas descritas nos artigos anteriormente citados?15
Quanto a considerar o meio fraudulento nas circunstâncias do crime do art.59 do cp, teríamos clara violação ao princípio fundamental da legalidade penal estrita esculpido por Feuerbach em seu Direito Penal Iluminista, além disso, violamos também o direito público subjetivo à lei certa, prévia, estrita e escrita previsto no art. 1º do cp, ora não podemos fragmentar os elementos de uma conduta que se adequa perfeitamente ao art.171 do cp, para utilizarmos o fragmento descolado em qualquer outra disposição da legislação penal, até mesmo as circunstancias judiciais do art. 59 do cp.16
Por todo exposto, devemos sempre nos lembrar de que a capitulação de tipos penais em legislação penal de um país é garantia conquistada pelas lutas sociais. O crime há tempos deixou de ser o que rei quiser para ser o que a lei prevê, como uma das garantias mais primárias e fundamentais de um Estado Democrático de Direito, logo não podemos nos afastar da legalidade penal estrita em qualquer análise penal, assim como um prédio não fica de pé sem pilastras.
Por fim, cabe elucidar que o art. 59 do cp, circunstâncias judiciais, deve ser levado em conta em razão do momento catastrófico que o mundo vive. Desviar imunizantes que seriam aplicados em pessoas maiores de 70 anos, diante da circunstância de pandemia, por motivo egoístico e de consequências graves para a saúde dessas pessoas que se imunizadas, teriam sua vida resguardada merecem atenção reprimenda mais amarga da ciência penal.17
1 Clique aqui. Acesso em: 12 de mar. de 2020.
2 Clique aqui. Acesso em: 12 de mar. de 2020.
3 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
4 Clique aqui. Acesso em: 12 de mar. de 2020..
5 Clique aqui. Acesso em: 12 de mar. de 2020..
6 Clique aqui. Acesso em: 12 de mar. de 2020..
7 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 2. ed. São Paulo, 2011.
8 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 2. ed. São Paulo, 2011
9 Clique aqui. Acesso em 12 de março de 2021.
10 Clique aqui. Acesso em 12 de março de 2021.
11 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
12 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
13 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
14 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
15 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
16 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
17 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
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HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
JUSBRASIL.Clique aqui. Acesso em 08 de março de 2021.
O TEMPO. Clique aqui. Acesso em 12 de março de 2021.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 2. ed. São Paulo, 2011.