Concursos públicos: O início do fim
Desde 2016, com a aprovação da emenda constitucional 95, denominada PEC do Teto de Gastos, a realização de concursos foi sendo gradualmente reduzida. A PEC dificultou a contratação de pessoal, impedindo a criação de novos cargos.
segunda-feira, 29 de março de 2021
Atualizado às 12:24
Todos nós temos aquele amigo e amiga "concurseiros" que dedicam significativa parte do tempo estudando para o sonhado cargo público ou, então, o estudioso é você. E não é novidade que o nível de dificuldade para alcançar esse objetivo tem aumentado consideravelmente no decorrer dos anos. Antes, pela concorrência e seleções exigentes e, agora, com a escassez de processos seletivos em virtude de uma série de medidas que impedem a Administração Pública de realizá-los.
Será o início do fim dos concursos públicos?
Desde 2016, com a aprovação da emenda constitucional 95, denominada PEC do Teto de Gastos, a realização de concursos foi sendo gradualmente reduzida. A PEC dificultou a contratação de pessoal, impedindo a criação de novos cargos e possibilitou tão somente suprir as vagas decorrentes de vacâncias para evitar o aumento da folha de pagamento.
Em maio de 2020, sob o pretexto de redução de gastos em decorrência da pandemia, entrou em vigor a lei complementar 173, que expressamente vedou à União, Distrito Federal, Estados e municípios a realizar concursos, admitir ou contratar pessoal que implique despesas até 31/12/21. Consequentemente, como na EC 95, ficaram autorizados tão somente para suprir vagas em vacâncias1.
Acentuando esse freio nas contratações, no dia 15/03/21, foi promulgada pelo Congresso Nacional a PEC Emergencial 186, que obriga a União Federal, e faculta aos Estados, Distrito Federal e Municípios impedir o aumento de salários e realizar concursos, salvo para vacâncias, e criar cargos e despesas obrigatórias quando ultrapassarem 95% das despesas totais.
E, por fim, como se o cenário não pudesse se agravar, adveio a Reforma Administrativa, PEC 32, que altera profundamente a organização da Administração Pública e a relação com as servidoras e os servidores.
Na prática, o governo federal indica que a contratação continuará ocorrendo via concurso, entretanto, o concurseiro treinado a identificar artimanhas nos textos legais perceberá que a forma de ingresso da grande parte dos cargos foi alterada e precarizada, refletindo, inclusive, no fluxo daqueles já aprovados e em exercício.
O concurso nos atuais moldes, isto é, que observa critérios objetivos e democráticos, será obrigatório apenas e tão somente para as carreiras típicas de estado, embora o alcance não esteja bem definido no texto. Pode-se interpretar como sendo referente às "castas" relacionadas às atividades que só o Poder Público pode regular, como fiscalizar, julgar e punir; e para contratação por tempo indeterminado, nas atividades de natureza técnica ou administrativa não enquadradas na modalidade anterior, cujo critério de aplicação se baseie na exclusão, ou seja, basicamente na análise de inaplicabilidade das demais modalidades.
A grande aposta é a ampliação das possibilidades de contratação sem concurso público para contratos temporários e de livre nomeação. Nos cargos de vínculo por prazo determinado, é incluída a contratação para "atividades ou procedimentos sob demanda". Nesse mesmo caminho são as livres nomeações - que atualmente existem apenas para indicações em cargos estratégicos ou gerenciais, mas passarão a ser permitidas para cargos com atribuições técnicas.
O critério é extremamente neutro e amplo e facilitará o acesso ao serviço público sem o concurso, com provável aumento da rotatividade, contrariando o ideal de selecionar de forma objetiva e transparente, e dos princípios basilares de cooperação e continuidade dada a natureza e relevância cíclica e permanente. Isso tudo facilita, inclusive, práticas de clientelismo e corrupção, escancarando o regresso à velha política de troca de favores e "cabides de emprego" que são injustas e ineficientes.
Essa flexibilização piora a eficiência pública para o coletivo e se mostra igualmente cruel na perspectiva individual para o estudioso que abdica seu tempo almejando o ingresso na carreira pública, já que a aprovação passa a não ser garantia da manutenção do cargo.
Hoje, após aprovação, o servidor é submetido ao estágio probatório e, caso aprovado, garante seu cargo e estabilidade. Isso é importante para garantir a tomada de decisões sem coação ou pressão para garantir a aplicação dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência.
Com a reforma, esse pressuposto crucial deixa de ser um direito, pois será necessário cumprir, no mínimo, um ano em "vínculo de experiência" para funções ordinárias, e dois para funções típicas de Estado com comprovação de desempenho satisfatório. Ao final do prazo, os servidores serão avaliados e aqueles que forem mais bem classificados, dentro do quantitativo previsto no edital do concurso, serão investidos no cargo.
Com isso, haverá dois principais problemas: 1) o "período de experiência" da forma prevista estimulará a pessoalidade, o assédio, o favoritismo e fomentará concorrência desleal entre os servidores; 2) a Administração poderá convocar mais servidores que o número de vagas, já que apenas os mais bem avaliados assumirão o cargo público.
Em exemplo prático, suponhamos a existência de desfalque de servidores em algum órgão pelo aumento de aposentadorias. Em vez de a Administração gastar com servidores efetivos, poderá abrir 10 vagas, chamar 50 aprovados que suprirão a demanda pelo tempo mínimo do vínculo de experiência e, ao final, dará posse a apenas 10, endossando postura agressiva que gera reflexos estruturais e pessoais negativos.
Além da forma de ingresso, a permanência no serviço público é prejudicada. Na carreira típica de Estado, a estabilidade é mitigada, tendo em vista que a exoneração não mais dependerá de sentença transitada em julgado, bastando a decisão de órgão colegiado; e nos cargos por prazo indeterminado, a estabilidade é extinta, podendo ser demitido por livre vontade do gestor.
Assim, passa-se a não haver garantia de que o servidor aprovado terá seu cargo ao final do período de experiência, mesmo que bem avaliado e, quando conseguir, de que conseguirá mantê-lo de forma íntegra e segura.
Portanto, há inegável movimento para o fim do concurso público. A proposta do governo desvirtua e flexibiliza a forma de ingresso, extingue a estabilidade e favorece a pessoalidade, manobras que vão tornando o desmonte do serviço público cada vez mais evidente e fortalecido.
Nesse momento, apoiar ou se omitir é marcar a alternativa errada, que anulará a resposta correta para o seu amigo concurseiro, para você e para o futuro do Brasil.
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1 Art. 8º Na hipótese de que trata o art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 ficam proibidos, até 31 de dezembro de 2021, de:
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II - criar cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa;
III - alterar estrutura de carreira que implique aumento de despesa;
IV - admitir ou contratar pessoal, a qualquer título, ressalvadas as reposições de cargos de chefia, de direção e de assessoramento que não acarretem aumento de despesa, as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios, as contratações temporárias de que trata o inciso IX do caput do art. 37 da Constituição Federal, as contratações de temporários para prestação de serviço militar e as contratações de alunos de órgãos de formação de militares;
V - realizar concurso público, exceto para as reposições de vacâncias previstas no inciso IV;
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Jéssica Carneiro Rodrigues
Advogada Cível da LBS Advogados - Loguercio, Beiro e Surian Sociedade de Advogados, unidade de Brasília. Atua na área de servidor público.
Matheus Cunha Girelli
Advogado Cível da LBS Advogados - Loguercio, Beiro e Surian Sociedade de Advogados, unidade de Campinas. Atua na área de servidor público.