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A OCDE e o subgrupo de combate à corrupção: uma decisão justa?

É preciso não perder de vista que o processo penal é, principalmente, um instrumento criado para garantir que o acusado exerça de forma plena o seu direito de defesa, sem que o Estado se veja na obrigação de condená-lo para cumprir eventuais metas de efetividade fixadas por organizações internacionais.

quinta-feira, 25 de março de 2021

Atualizado às 12:18

A OCDE decidiu criar recentemente um subgrupo para monitorar, de forma permanente, o combate à corrupção no Brasil, decisão inédita que pode atrapalhar a meta do atual governo de entrar definitivamente na organização.

Segundo entrevista concedida pelo chefe do Grupo de Trabalho sobre Suborno da OCDE, Drago Kos,1 o subgrupo foi formado porque se entendeu que seria "melhor utilizar um pequeno grupo de países analisando todas as informações disponíveis sobre atividades antissuborno estrangeiras no Brasil antes de apresentá-las a todo o Grupo de Trabalho sobre Suborno, juntamente com as suas propostas sobre o curso da ação futura".

O Grupo de Trabalho sobre Suborno a que a entrevista se refere foi estabelecido pela OCDE em 1994, pouco antes da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros, promulgada no Brasil pelo Decreto n.º 3.678/00.  O artigo 12 do referido acordo prevê, nesse sentido, que "as Partes deverão cooperar na execução de um programa de acompanhamento sistemático para monitorar e promover a integral implementação da presente Convenção", iniciativa atribuída, justamente, ao Grupo de Trabalho sobre Suborno que receberá as informações do subgrupo agora criado pela OCDE.

Esse monitoramento ocorre em fases sucessivas e compulsórias para todos os signatários da Convenção, que vão desde a avaliação de adequação do sistema jurídico interno até a confirmação de que a lei vem sendo mesmo aplicada, com recomendações periódicas que devem ser implementadas pelas partes.2

O Brasil já passou por cinco avaliações desde 2004 e, na última delas, concluída no início de 2017, a OCDE reconheceu a adoção de uma série de medidas positivas, entre elas o aumento do número de investigações e a realização de acordos de colaboração premiada.  O relatório também destacou que, apesar do progresso, havia ainda diversas recomendações pendentes, cuja implementação voltaria a ser avaliada na próxima fase, então prevista para 2022.

Nesse interregno, entretanto, mesmo reconhecendo os "significativos esforços" adotados pelo Brasil, o Grupo de Trabalho sobre Suborno passou a alertar para a necessidade de "preservar a plena capacidade e a independência das autoridades públicas para investigar e processar casos de corrupção de funcionários públicos estrangeiros", impelido por "preocupações de que o Brasil, devido às recentes ações tomadas pelos Poderes Legislativo e Judiciário, corra o risco de retroceder nos progressos feitos".3

As ações que importariam em tal retrocesso seriam basicamente duas: (i) a aprovação de "uma Lei sobre abuso de autoridade (13.869/2019)" caracterizada por "conceitos vagos" e que amplia "a definição sobre o que constituiria abuso de autoridade por parte de juízes e promotores"; e (ii) uma "sequência de decisões liminares do Supremo Tribunal" limitando "a utilização de relatórios da Unidade de Inteligência Financeira, da Receita Federal e de outros órgãos administrativos em investigações criminais".4

Apesar da imprecisão na censura da OCDE, as decisões sobre a utilização dos relatórios talvez tenham sido superadas pela decisão do Supremo Tribunal Federal que, em julgamento de tese de repercussão geral ocorrido no fim de 2017, considerou válido o compartilhamento entre órgãos de investigação sem a necessidade de prévia autorização do Poder Judiciário. Já quanto à Lei de Abuso de Autoridade, em que pese a manutenção de alguns "conceitos vagos" --- que, na verdade, já estavam presentes na lei anterior ---, a preocupação da OCDE merece ser vista com cuidado.  Na realidade, a lei nova apenas regula atuações de fato abusivas, inadmissíveis ainda que em nome do combate à corrupção.6  De resto, mesmo com as restrições trazidas pela pandemia, há registro de que foram oferecidas várias denúncias por corrupção desde a entrada em vigor da lei, além de condenações.7

Superadas essas preocupações, não foi divulgada ainda informação oficial8 indicando exatamente o que levou a OCDE a implementar medida tão extrema com relação ao Brasil, ou se essa decisão teve mesmo a ver com o anunciado "fim" da Operação Lava Jato, como algumas publicações especularam.  Essa última informação, aliás, foi desmentida pelo Itamaraty,9 lançando ainda mais dúvidas sobre o tema.

É importante lembrar que a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros foi criada pela OCDE sobretudo por pressão dos Estados Unidos, em meio a legislações europeias bastante permissivas que, embora criminalizassem o pagamento de propinas internamente, admitiam que esses pagamentos fossem realizados em países como o Brasil, chegando até mesmo a incentivá-los na medida em que reduziam a carga fiscal das empresas que declarassem ter incorrido nesse tipo de despesa.10  E para evitar distorções concorrenciais --- verdadeiro motivo, aliás, por trás da pressão exercida pelos Estados Unidos ---, a entrada em vigor da Convenção foi condicionada à adesão de pelo menos cinco dos dez maiores países exportadores, cuidadosamente indicados em um de seus dispositivos.11

Nunca se tratou, portanto, de introduzir uma regra até então inexistente no Brasil que estivesse realmente alinhada às necessidades internas.  Introdução, aliás, desnecessária, porque a corrupção é criminalizada internamente desde as Ordenações Filipinas, inclusive alcançando condutas praticadas no exterior por via do critério de extraterritorialidade previsto no Código Penal.12

Assim, e em meio a tantas iniciativas que se dizem voltadas a tornar aceitáveis os padrões brasileiros de combate à corrupção, é preciso não perder de vista que o processo penal é, principalmente, um instrumento criado para garantir que o acusado exerça de forma plena o seu direito de defesa,13 sem que o Estado se veja na obrigação de condená-lo para cumprir eventuais metas de efetividade fixadas por organizações internacionais.

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1 Disponível em: clique aqui. Último acesso em 24 mar. 2021.

2 Disponível em: clique aqui. Último acesso em 24 mar. 2021.

3 Disponível em: clique aqui. Último acesso em 24 mar. 2021.

4 Disponível em: clique aqui. Último acesso em 24 mar. 2021.

5 Disponível em: clique aqui. Último acesso em 24 mar. 2021.

6 De acordo com Luciano Anderson de Souza e Tarsila Tojal, tratar a Lei de Abuso de Autoridade "como um atentado a operações policiais de grande repercussão nacional ou, de outra senda, como a solução infalível aos espasmos de autoritarismo que acometem a Administração Pública, não passa de visão míope da realidade. (...) Criou-se verdadeira cortina de fumaça a encobrir o descompromisso das estruturas estatais com o real enfrentamento das arbitrariedades cometidas por suas autoridades, problemática essencial dentre os crimes contra a Administração Pública." (SOUZA, Luciano Anderson de; TOJAL, Tarsila Fonseca. O tratamento penal ao abuso de autoridade no Direito brasileiro. In: SHECAIRA, Sérgio Salomão; ALMEIDA, Julia de Moraes; FERRARINI, Luigi Giuseppe (orgs.). Criminologia: estudos em homenagem ao professor Alvino Augusto de Sá. Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido, 2020, p. 329-353).

7 Nesse sentido, por exemplo: clique aqui. Acesso em 24 mar. 2021.

8 A OCDE disponibiliza página específica para o Brasil em seu website, mas a última atualização inserida é do fim de 2019: clique aqui. Último acesso em: 25 mar. 2021.

9 Segundo a notícia, "o Itamaraty afirma que 'nenhuma razão de mérito ou demérito está na origem da criação do subgrupo. Logo, é incorreta a interpretação de que o subgrupo foi criado 'diante do que tem sido visto como um recuo no combate à corrupção'. Tratou-se tão-somente de decisão processual para estruturar o debate sobre o monitoramento comum a que se submetem voluntariamente todos os membros do Grupo de Combate ao Suborno'." Disponível em: . Acesso em 24 mar. 2021.

10 Nesse sentido: CARTIER, Marie Elisabeth; MAURO, Cristina. "La loi relative à la lutte contre la corruption des fonctionnaires étrangers". In: Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal Comparé, Paris, n. 4, out./dez. 2000.

11 Artigo 15: "A presente Convenção entrará em vigor no sexagésimo dia seguinte à data na qual cinco dos dez países que possuam as maiores cotas de exportação, apresentadas no documento anexo, e que representem juntos pelo menos sessenta por cento do total combinado das exportações desses dez países hajam depositado seus instrumentos de aceitação, aprovação ou ratificação. Para cada Signatário depositante de instrumento após a referida entrada em vigor, a presente Convenção entrará em vigor no sexagésimo dia após o depósito de seu instrumento." 

12 Para análise mais aprofundada, ver: LAGO, Natasha do. Corrupção internacional: aspectos jurídicos, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

13 Como bem lembra Adauto Suannes, o processo "não existe para propiciar ao Estado a oportunidade de fazer prevalecer uma pretensão resistida. O Estado não necessita disso".  Ao contrário, "bem vistas as coisas, quem tem necessidade do processo, porque tem um interesse pessoal ameaçado (o interesse de continuar a desfrutar da liberdade) é o suspeito. Ele é que necessita de recorrer ao Estado-Juiz para que essa ameaça a seu interesse, que ele reputa legítimo, não se concretize. É o Estado-Administração que está questionando e pondo em perigo essa pretensão à liberdade. Logo, há que se encarar o processo como actum trium personarum, porém sob a ótica de quem dele precisa, que é o titular do direito público à liberdade" (Os fundamentos éticos do devido processo penal, 2ª ed., São Paulo: RT, 2004, p. 157).

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Natasha do Lago

Natasha do Lago

Advogada criminalista, sócia de Ráo & Lago Advogados, mestre em Direito Penal pela USP e autora de "Corrupção internacional: aspectos jurídicos", publicado pela Lumen Juris em 2020.

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