TCU, self restraint e o inusitado pedido de afastamento parcial do presidente da república
O ministério Público de Contas da União pede o afastamento do presidente da República da gestão da pandemia, questionando sua constitucionalidade.
quinta-feira, 25 de março de 2021
Atualizado às 10:09
A imprensa reportou recentemente que o subprocurador-Geral do Ministério Público de Contas da União, Dr. Lucas Rocha Furtado, encaminhou ao Tribunal de Contas da União representação com pedido de medida cautelar, a fim de afastar o Presidente da República "[...] das funções e competências administrativas e hierárquicas relacionadas ao comando dos Ministérios da Saúde, da Fazenda, da Casa Civil e de outros eventualmente identificados [...]"1.
Fundamentada no art. 81, inciso I, da lei 8.443/92 e no art. 237, inciso VII, do Regimento Interno do Tribunal de Contas da União, na representação o subprocurador-Geral salienta o mau desempenho do Chefe do Poder Executivo na execução das políticas públicas de saúde no combate à pandemia da covid-19.
Citando o aumento dos índices de reprovação envolvendo o atual mandatário, mesmo reconhecendo, ipsis literis, não competir ao Tribunal de Contas da União "[...] nomear novas autoridades em substituição àquelas afastadas, de modo a garantir o comando por pessoas competentes tecnicamente, equilibradas e dedicadas verdadeiramente a` causa pública", o digno representante do Parquet esclarece que "[n]ão se trata, porém, de dificuldade a` altura de impedir que o TCU responda excepcionalmente à situação de calamidade inédita na história do Brasil. O afastamento do Presidente da República de certas funções administrativas pode ser equacionado sem dificuldade mediante a adoção do mecanismo próprio previsto na Constituição Federal, ainda que, no caso, limitada às áreas com influência no desempenho das políticas da saúde, com sua substituição pelo vice-Presidente Hamilton Mourão, a quem caberia escolher novos ministros para o período que o TCU vier a fixar".
Pedindo a intervenção do Tribunal de Contas da União, por mais que o requerimento esteja pendente de apreciação por parte do presidente do referido Tribunal, o pedido formulado, inusitado por sinal, não pode passar ao largo do debate por parte dos operadores do direito, pois, por mais grave que seja a crise vivenciada no país, não tem esse estado de grande comoção social o condão de derrogar cláusulas pétreas, inclusive elevadas a qualidade de princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, como é o caso da separação dos poderes.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 17892 estabelece em seu Artigo 16º que "qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição".
Demonstrando sua preocupação em assegurar a teoria que foi inicialmente desenvolvida por John Locke e aprimorada pelo barão de Montesquieu, de tão importante a inexistência de separação entre as funções do Estado implica em dizer pela ausência de Constituição.
Represada, naquele conceito, a ideia-guia do presente artigo, se a separação dos poderes é algo enfatizado não somente pelo direito internacional, como também reconhecido pela vigente ordem constitucional - basta ver o art. 2º -, ditando a Constituição que constituem Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, muito além da existência de competência - que nos termos do art. 2º, parágrafo único, alínea a da lei 4.717/65 se define como a inclusão do ato dentre as atribuições legais do agente que o praticou - é preciso indagar se a medida pretendida pelo subprocurador-geral do Ministério Público de Contas da União tem, ou não, compatibilidade com a Constituição, ou seja, se aos olhos da Lei Fundamental é constitucionalmente possível a intervenção da Corte de Contas em atribuição privativa do Poder Executivo.
Para início de argumentação, partindo a iniciativa do Ministério Público de Contas, deve primeiramente se perquirir a qual poder constituído o Tribunal de Contas da União está inserido, até porque, se a conclusão for de que pertence ao Poder Executivo, poderá se legitimar a sobredita intervenção com base no princípio da autotutela da Administração, alocando-se, a fórceps, o TCU como superior hierárquico do chefe da nação.
Reminiscência da influência do direito francês na formação do direito administrativo brasileiro, a origem dos Tribunais de Contas remonta o período de Napoleão Bonaparte que pretendia uma vigilância ativa no emprego do dinheiro público.
Criados inicialmente aos 16 de outubro de 1907, em pouco tempo a instituição das Cortes de Contas espraiou-se pelo mundo, tendo sido implementadas em países como Holanda, Bélgica, Itália, dentre tantos outros.
Apesar de seu caráter secular e grande aceitação por diversos outros Estados, no Brasil a instituição dos Tribunais de Contas somente ocorreu com a Proclamação da República.
Capitaneada por Rui Barbosa, a instalação do Tribunal de Contas ocorreu por intermédio do Decreto nº 966-A, de 7 de novembro de 1890 que, logo em seu art. 1º, dispôs competir a ele "[...] o exame, a revisão e o julgamento de todas as operações concernentes a receita e despesa da República".
Sobressaindo sua competência para auditar as contas públicas, o Decreto nº 966-A, de 1890 foi regulamentado pelo Decreto 1.166, de 17 de dezembro de 1892 que, em seu art. 28, outorgava ao Tribunal de Contas jurisdição própria e privativa sobre as pessoas e as matérias sujeitas à sua competência; funcional como Tribunal de Justiça, e as suas decisões definitivas têm força de sentença com execução aparelhada.
Reconhecendo que enquanto Tribunal de Justiça Administrativo o Tribunal de Contas atuaria como fiscal da Administração Pública e como Tribunal de Justiça teria função jurisdicional, tanto voluntária quanto contenciosa, em seus primórdios, a legislação reitora dava a entender que o Tribunal de Contas integrava o Poder Judiciário.
Contudo, não constando expressamente da Constituição de 1891, para não pôr embaraço acerca da natureza jurídica do Tribunal de Contas, Rui Barbosa disse que "Tribunal é, mas Tribunal sui generis, que a Constituição não submete ao organismo do Poder Judiciário, antes o remove dali para um lugar distinto"3.
Negando, Rui Barbosa, que os Tribunais de Contas integrassem o Poder Judiciário, com o advento da Constituição de 1988, o tratamento normativo anterior é parcialmente mantido, pois, seguindo a tradição constitucional, relega seção própria para dispor sobre a fiscalização financeira e orçamentária.
Inserindo aí as previsões acerca dos Tribunais de Contas, se é orientação consagrada que compete ao Poder Legislativo, desde os tempos da Revolução Francesa, a função de fiscalização, na qualidade de auxiliar do Congresso Nacional (art. 73, caput), tem-se que os Tribunais de Contas, notadamente o da União, não compõem nem o Poder Executivo, nem o Poder Judiciário.
Situando-se mais afeitos ao Poder Legislativo, apesar de funcionarem como órgãos auxiliares, os Tribunais de Contas também não o integram.
Constituindo um terceiro gênero, principalmente por serem dotados de autonomia administrativa e financeira, mesmo que essa independência já tenha sido reconhecida algumas vezes pelo Supremo Tribunal Federal, v.g na ADI 4190-8/RJ, relator Ministro Celso de Mello, a ausência de completa submissão dos Tribunais de Contas ao Poder Legislativo não confere a eles, principalmente ao TCU, a qualidade de um poder moderador, pois, apesar de sua singularidade, não pode ingerir em outro poder.
Respeitante ao princípio da separação dos poderes, mesmo enquanto tertium genus, o Tribunal de Contas da União, como as demais Cortes de Contas, não tem legitimidade constitucional para determinar o afastamento do Presidente da República de suas funções, especialmente no que tange a condução da crise, isso porque, perfilhando-se à experiência jurídica francesa, a vigente Constituição da República aderiu a teoria do executivo unitário.
Significando que a estruturação da administração pública federal, como naquele de França, se deu de forma piramidal; isto e', centralizada na figura do Chefe do Poder Executivo, se a Constituição prevê em seu art. 76 que o Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, competindo a este, privativamente, exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal, sob a teoria tripartite da separação de poderes, por mais incompetente que o mandatário possa vir a ser, a atribuição que lhe é conferida privativamente pelo art. 84, II da Constituição não pode ser derrogada pelos demais poderes constituídos, ainda que sob o pretexto da inusitada intervenção, pelos.
Quiçá se falando na possibilidade de suspensão episódica do exercício de suas funções, visto que a situação trazida à lume pelo Subprocurador-Geral do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União não se amolda a nenhuma das hipóteses previstas no art. 86 da Constituição, o art. 444 da lei 8.443/92 não confere ao TCU um cheque em branco, nem mesmo o transforma em um superpoder, pois, merecendo ser interpretado e analisado sob os auspícios da Constituição - crê-se que ainda a teoria de Kelsen prevalece - se a vetusta tese estruturada pelo Parquet de Contas emplacar qualquer Chefe de Poder poderá vir a ser afastado, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, pelo TCU, bastando estar em curso procedimento de apuração.
Certamente não tendo como destinatários os Chefes dos poderes constituídos, principalmente do Poder Executivo que, frise-se, diante de sua elevada função constitucional, dispõe de regramento próprio, determinado diretamente pela Lex Legum, não existe oportunidade mais providencial do que se invocar a teoria da autocontenção (self restraint), evitando que o TCU encampe uma discussão política para afastar o legítimo mandatário de suas funções privativas.
No dito popular, se a moda pega, tem-se o prenúncio do fim tanto do sistema presidencialista, soberanamente optado por plebiscito realizado em setembro de 1993 quanto do Executivo Unitário.
Até pode existir espaço para que o Congresso Nacional, retomando o que foi iniciado durante o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, esmere-se na experiência jurídica estadunidense e institua um Estado Administrativo, tudo isso de lei a porvir. Contudo, no atual cenário, é constitucionalmente vedada a pretendida intervenção.
Post scriptum: O Subprocurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União tenta apaziguar a violação ao dogma da separação de poderes requerendo que as atribuições sejam conferidas ao Vice-Presidente da República. No entanto, apesar do estágio avançado de tramitação do PLP 21/2019, de autoria do Senador Veneziano Vital do Rêgo (PSB/PB)5, até o presente momento o art. 79, parágrafo único da Constituição não foi regulamentado, não competindo ao TCU, de lege ferenda, inovar na órbita jurídica, mormente quando não se está de fronte com hipótese de impedimento ou vacância do Presidente da República.
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1- Disponível aqui.
2- Disponível aqui.
3- Disponível aqui.
4- Art. 44. No início ou no curso de qualquer apuração, o Tribunal, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, determinará, cautelarmente, o afastamento temporário do responsável, se existirem indícios suficientes de que, prosseguindo no exercício de suas funções, possa retardar ou dificultar a realização de auditoria ou inspeção, causar novos danos ao Erário ou inviabilizar o seu ressarcimento.
§ 1° Estará solidariamente responsável a autoridade superior competente que, no prazo determinado pelo Tribunal, deixar de atender à determinação prevista no caput deste artigo.
§ 2° Nas mesmas circunstâncias do caput deste artigo e do parágrafo anterior, poderá o Tribunal, sem prejuízo das medidas previstas nos arts. 60 e 61 desta Lei, decretar, por prazo não superior a um ano, a indisponibilidade de bens do responsável, tantos quantos considerados bastantes para garantir o ressarcimento dos danos em apuração.
5- Disponível aqui.