"Nem tudo que reluz é ouro": Análise antitruste em torno das SPACs
Apesar de celebradas, é necessária cautela para mitigar riscos concorrenciais.
quinta-feira, 25 de março de 2021
Atualizado às 12:35
Ultimamente, no Brasil e no mundo, as SPACs (Special Purpose Acquisition Companies) têm ganhado cada vez mais atenção de gestores, investidores e participantes do mercado de capitais em geral. Segundo matéria recente da "Forbes", este modelo de captação de recursos é considerado a nova "galinha dos ovos de ouro de Wall Street"1.
Todo esse frisson tem suas justificativas. Uma delas, por exemplo, reside no fato de que, nos EUA, dos 450 IPOs ocorridos em 2020, 228 foram através de SPACs. Em cifras, o número pode ser traduzido em um total de mais de 83 milhões de dólares captados através deste modelo.
Para 2021, o cenário no mercado de capitais norte-americano não é diferente: dos 206 IPOs, 160 foram de SPACs, o que representa 78% do total de abertura de capital e mais de 47 milhões de dólares captados até o momento2.
Carinhosamente apelidada de "cheque em branco", uma SPAC funciona, basicamente, da seguinte forma: através da oferta inicial pública, capta recursos para adquirir uma outra empresa, denominada "target", que ainda é desconhecida dos investidores no momento em que adquirem as ações da SPAC no mercado de capitais.
O termo pelo qual é conhecida faz, portanto, total sentido: os investidores, de fato, dão um cheque em branco, pois adquirem ações de uma empresa que não possui uma operação, mas que tem um único propósito: adquirir outra companhia. Após a aquisição, a target substitui a SPAC e os acionista desta passam a deter participação naquela.
Para tanto, as SPACs são constituídas em torno de um sponsor, ou, em termos populares, um garoto propaganda. Geralmente um gestor conhecido ou um empresário bem-sucedido, o baluarte da SPAC é o responsável por captar os investimentos através de sua imagem, isto é, atuando como sponsor, este indivíduo tem o papel de passar confiança aos investidores, tornando a SPAC um negócio atrativo.
O propósito especial, então, é o de adquirir uma empresa, geralmente startup de pequeno ou médio porte, com os recursos obtidos dos investidores, e ofertar ações dela em bolsa de valores.
No Brasil, até o momento, nunca ocorreu captação de recursos via SPAC na B3, mas alguns gestores brasileiros já se organizaram para adquirir empresas que estão em solo tupiniquim3.
O objetivo deste texto não é entrar no mérito legislativo e regulatório da questão, ou seja, se este modelo está de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro e com as normas da CVM. Isso é tema para outro artigo. A questão que se propõe é saber, sob uma perspectiva concorrencial, quais os riscos deste tipo de operação.
A primeira preocupação reside na possibilidade de práticas concertadas pelas SPACs. Retomando o exemplo norte-americano, boa parte dos IPOs ocorrem através deste modelo, o que implica dizer que haverá um bom número de SPACs procurando por targets, isto é, por empresas que possuem alto potencial de valorização.
Em tese, pela oferta e demanda, poucas empresas valiosas no mercado e um bom número de potenciais compradores levaria ao aumento do preço de venda. Contudo, muitas destas empresas não terão poder de barganha frente às SPACs, o que lhe coloca do lado mais fraco da mesa de negociação.
Como dito, boa parte destas empresas é pequena com o potencial de valorização. Outro fator é que muitas das empresas visadas pelas SPACs são constituídas com o fim de serem vendidas, o que a coloca, também, em uma posição de fragilidade, caso não encontre um parceiro estratégico e com recursos, tal qual uma SPAC.
Assim, caso as SPACs, que possuem prazo determinado para adquirir as targets e envolvem grandes personalidades do mercado financeiro e de capitais como sponsors da empreitada, não encontrem o ativo no lapso temporal estabelecido, os acionistas recebem o capital investido, com correção, descontada a taxa de administração.
Todo esse contexto de evitar um fracasso empresarial, que pode manchar a imagem daqueles que constituíram a SPAC, somado ao prazo para concluir o negócio, pode levar ao conluio entre as SPACs constituídas para que, através da posição que detêm como agentes estratégicos, forcem o preço de venda para abaixo da média de mercado ou para que dividam os mercados e, com isso, diminuam o processo competitivo.
Um outro fator de preocupação reside no enfraquecimento do compliance concorrencial, o que pode aumentar o risco de problemas com agências de defesa da concorrência. Em qualquer processo normal de abertura de capital ou de operação entre empresas, é imprescindível que se mantenha um programa consistente e efetivo de compliance. No caso do direito da concorrência, a finalidade do programa é de promover uma estratégia corporativa alinhada com a legislação concorrencial e identificar riscos de infração mais estreitos e próximos a que uma empresa está sujeita4.
Mais uma vez, levando em consideração o prazo, que poderá ser exíguo em certas situações, bem como a necessidade de se encontrar uma target, é possível que alguns critérios de boas práticas concorrenciais não sejam observados, o que aumenta o risco de uma infração concorrencial e posterior investigação pelo órgão de defesa da concorrência.
Por fim, tomando a realidade brasileira como parâmetro, nos casos em que a operação deva ser notificada ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE, qual deverá ser o parâmetro adotado no ato de concentração para que não se configure a prática do gun jumping?
O grande risco neste tipo de operação, ao nosso sentir, é a troca de informações consideradas concorrencialmente sensíveis. O objetivo desta barreira, segundo o CADE, é evitar que informações relevantes sejam compartilhadas caso o ato de concentração não aconteça, com o fim de preservar as estruturas do livre mercado5 e a dinâmica do processo competitivo.
Aliás, a operação entre a SPAC e a target pode ser considerada um ato de concentração, sob uma perspectiva da lei 12.529/11, para fins de escrutínio do CADE?
Para os riscos acima, uma das melhores saídas, sem prejuízo de outras, reside no fortalecimento da cultura da concorrência, a fim de enraizar boas práticas concorrenciais, solidificando, por consequência, a cultura da concorrência.
Independente do ato, se colusivo ou unilateral, a adoção voluntária a programas de conformidade tem, sem dúvidas, o potencial de minimizar os riscos de configuração de novos ilícitos à ordem econômica e até mesmo trazendo vantagens competitivas para os players que o adotam6.
Dessa forma, o potencial risco de enfraquecimento do sistema de compliance não pode servir como justificativa para que não se insista na adoção do programa.
Isso porque, tomando como exemplo o caso da SPAC, ainda que algum ilícito seja cometido, unilateral ou concertadamente, a demonstração de que existiu, no contexto da infração, boa-fé e que foram envidados os melhores esforços para observância às regras concorrenciais pode servir como atenuante, afastando, por exemplo, certas proibições ou até mesmo reduzindo o valor da multa aplicável7.
Ademais, quanto à questão do gun jumping, talvez essa preocupação seja mitigada com o estabelecimento de algumas barreiras éticas para evitar a troca de certas informações. Uma delas, possivelmente, seria a instituição de um clean team, contendo membros da SPAC e da target, associado a um auditor/consultor independente. Essa equipe, então, atuaria sob rígidos protocolos antitruste, analisando dados da operação sem que dados sensíveis fossem compartilhados, para que, frustrada a operação, a SPAC não detenha informações concorrencialmente estratégicas da antiga empresa alvo.
Em suma, as provocações, questionamentos e possíveis soluções trazidas no presente artigo têm por finalidade apimentar o debate em torno das SPACs, sob um viés concorrencial. Não se questiona a importância deste modelo, bem como a possibilidade de ele vir a ser replicado no Brasil.
Todavia, como diz o ditado que encabeça o texto, "nem tudo que reluz é ouro", pelo que devemos ter cautela e parcimônia em torno do tema, a fim de contornar riscos e amadurecer a cultura da concorrência no Brasil.
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4 SCHAPIRO, Mario G.. MARINHO, Sarah M. Matos. Compliance concorrencial: cooperação regulatória na defesa da concorrência. São Paulo: Almedina, 2019, p. 31
5 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA - CADE. GUIA PARA ANÁLISE DA CONSUMAÇÃO PRÉVIA DE ATOS DE CONCENTRAÇÃO ECONÔMICA. Disponível clicando aqui. Acesso em 21/2/21.
6 SILVEIRA, Paulo Burnier da. Direito da Concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
7 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA. GUIA PARA PROGRAMAS DE COMPLIANCE. JANEIRO DE 2016. Disponível clicando aqui
Matheus Carvalho
Sócio do escritório da Fonte, Advogados.