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Acordo de não persecução penal: O retrocesso da pós-modernidade? O Estado precisa de um culpado

A alteração no codex de processo penal vem no embalo da nova "tendência" de se implementar, cada vez mais, a tal Justiça Penal Negociada, cujos propósitos e meios empregados serão aqui questionados.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Atualizado às 12:30

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Com o advento da lei 13.964/19, inseriu-se o art. 28-A no Código de Processo Penal para se permitir, por meio do Ministério Público, o nomeado (e equivocado na própria etimologia1) "Acordo de Não Persecução Penal", cujas condições e consequências jurídicas estão ali dispostas.

A alteração no codex de processo penal vem no embalo da nova "tendência" de se implementar, cada vez mais, a tal Justiça Penal Negociada, cujos propósitos e meios empregados serão aqui questionados

As premissas (hipóteses) nas quais se fundamentam este breve ensaio são: (I) este instituto viola o preceito constitucional da presunção de inocência, ao que corresponderia, à luz dos axiomas de Luigi Ferrajoli ao nulla culpa sino judicio (não há formação de culpa sem um processo), derivados do art. 5º, inciso LVII da CF/88; (II) Não há critérios seguros e objetivos para, de logo, se evitar que acusações exageradas (sobre imputações) estampadas nas denúncias recebam uma readequação jurídica necessária a se permitir um acordo de não persecução penal.

Feitas estas premissas, indaga-se: este novo instituto de Justiça Penal Negociada cumpre um papel de evitar (ou interromper) a persecução penal ou de reafirmá-la?

I. A violação do preceito constitucional da presunção de inocência e do dogma da nulla culpa sino judicio (não há formação de culpa sem um processo), derivados do art. 5º, inciso LVII da CF/88;

Caro leitor: não se deixe levar pelos propósitos declarados dos institutos penais, preocupe-se, sempre, com os desígnios não declarados. Este "acordo" não quer evitar que o cidadão se mantenha com o seu status de inocente (uma presunção de estatura constitucional que milita a favor de qualquer sujeito de direito) e, partir daí, iniciar uma negociação para que, feitos os ajustes de cláusulas possíveis de um pacto, extinga-se a punibilidade.

O Estado quer, ao revés, primeiro lhe considerar culpado (ainda que o sujeito não tenha, verdadeiramente, praticado crime algum) para, apenas após esta antecipação de reconhecimento de culpa, iniciar as tratativas deste "acordo" (e aqui sempre será propositalmente aspeado - pois duvida-se de bases idôneas de um acordo quando, para que ele seja viável, uma parte precise confessar até o que não fez).

A questão é que não há outra racionalidade nesta medida, que não seja auto-afirmar uma consequência esperada pela lógica da acusação, caso o período de perseguição do Estado (persecução penal) lograsse provar as imputações lançadas sobre o investigado/denunciado: um juízo de formação de culpa. Contudo, agora um juízo antecipado de culpa.

Do contrário, admitir-se-ia que o acordo de não persecução penal pudesse ter como premissa a não assunção de culpa. Aliás, medidas que já permeiam o direito penal, notadamente nos institutos da composição civil dos danos2, transação penal3 e suspensão condicional do processo4. Em todos eles não são preciso que se "confesse" absolutamente nada, principalmente o que não se fez.

Aliás, nem mesmo de onde se transplantou este instituto (aqui utilizando-se a expressão "transplante" proposta por Maximo Langer, no artigo "From Legal Transplants to legal translations: The Globalization of Plea Bargaining and The Americanization Thesis In Criminal Procedure"5, condiciona-se um "acordo" de Justiça Penal Negocial exclusivamente à uma confissão. No direito norte-americano, é possível declarar-se "não culpado" (not guilty plea)6.

Daí surgem as alegadas violações ao princípio da presunção de inocência e a do nulla culpa sino judicio.

Primeiro, porque é garantia constitucional que ninguém seja considerado culpado antes de uma sentença penal condenatória.

Segundo, porque para que este reconhecimento ocorra é imprescindível que haja um processo, com as possibilidades do exercício pleno da ampla defesa e contraditório.

Terceiro, porque nem mesmo durante um processo penal a confissão do Réu é suficiente para, por si só, acarretar-lhe uma condenação e formar-se um juízo definitivo de culpa. É o que se deflui do art. 197 do CPP, bem como da própria jurisprudência dos Tribunais Superiores (AgRg no AREsp 1.595.824/MG 2019/0296728-3 - STJ)7

Extrai-se destas considerações que, ao ser necessário existir uma confissão para que o "acordo" tenha validade, o legislador desconsidera que o juízo de culpa apenas pode decorrer de sentença penal condenatória transitada em julgado, bem como que esta apenas pode ser proferida num ambiente de um devido processo legal, com as garantias que lhes são próprias e, por fim, que a confissão em matéria penal é mais um (porém insuficiente quando considerado isoladamente) dos elementos a serem valorados para autorizar-se uma decisão condenatória.

A presunção de inocência, sem essas prerrogativas, torna-se "culpa negociada". Aquela assumida apenas para se ter um benefício. O legislador está equiparando um ramo do direito público (penal) com a esfera do direito privado (civil). Esta última repleta de direitos disponíveis (Portanto, negociáveis). Aquele primeiro, dominado por direitos indisponíveis (impassíveis de negociação).

Em outras palavras, o legislador permitiu que se negocie, sendo ainda mais preciso, com a própria culpabilidade (como terceiro elemento da teoria tripartida da ação), já que se pode, mesmo que o sujeito não tenha praticado delito, assumir uma culpa para obter uma extinção de punibilidade, se pode, por sua vez, igualmente assumir esta mesma culpa para encobrir um verdadeiro autor de um delito, que terceiro tenha praticado.

A confissão, quando muito, poderia ser meio de obtenção de prova, tal como ocorre com a "confensión sincera" do art. 161 do CPP Peruano, segundo o qual este ato serve para facilitar os esclarecimentos de atos criminosos, para se elucidar crimes.8 É um instituto auxiliar da persecução penal, diria.

A exigência da confissão no "acordo" de persecução penal, ofende a presunção de inocência por ser adotada em um meio alijado do devido processo legal, sem meios, inclusive, para que se afira que aquela confissão, para além de voluntária, é real (a verdade processual).

O que se quer dizer, é que não se comporta na Constituição Federal de 1988 um instituto que prevê um benefício, tendo como premissa exclusiva, quanto ao reconhecimento dos fatos imputados, que o investigado/denunciado os aceites. Não há alternativas. Não há outras possibilidades. Longe de ser, este, um instituto que conheça da democracia.

E o curioso, para se encerrar estas primeiras reflexões, é que o preâmbulo da CF/88 expressamente afiança:

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL." (Constituição Federal da República de 1988)

Ao que parece, a instituição do Estado Democrático de Direito também e algo que se passou a flexibilizar.

II. Não há critérios seguros e objetivos para se evitar que acusações exageradas estampadas nas denúncias recebam uma readequação jurídica necessária a se permitir um acordo de não persecução penal.

Os problemas do "acordo" de não persecução penal não se esgotam com a inconstitucionalidade da exigência de confissão para sua validade (também não é pretensão neste artigo espancar todos os problemas). Paralelo a isto, tem-se que, concretamente, há situações em que por erro (ou consciência voluntária) a acusação contempla uma denúncia de modo exagerado que inviabiliza objetivamente a possibilidade de realização do "acordo".

Isso porque, segundo a dicção do art. 28-A do CPP, para valer-se do benefício, a pena mínima aplicável tem de ser 04 (quatro) anos.

Ocorre, porém, que não variadas vezes a peça acusatória imputa crimes para além daqueles cuja materialidade foi apurada na investigação, bem como aplica regras incorretas de concurso material de delitos ao invés de continuidade delitiva ou, ainda, tipifica conduta de modo equivocado. Em todos os casos, aplicando-se penas mínimas que superam o mínimo legal para realização do "acordo".

Lorena Bachmaier Winter, no artigo "Justiça Negociada e Coerção: reflexões à luz da Jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos"9, aponta a problemática da acusação por delitos que não se amoldam aos fatos, ao aduzir que "...sem dúvidas, essa proposta de acordo seria coercitiva, e inclusive ilegal pois para proceder a uma acusação, a premissa básica é a que exista provas suficientes que sustentem faticamente essa acusação."

Nestas circunstâncias, o art. 28-A do CPP não apresenta uma solução viável para que se evite esses excessos acusatórios.

É que a previsão do § 1º do art. 28 do CPP, que possibilita o encaminhamento dos autos à instância revisora do Ministério Público, em casos, por exemplo, em que não é oferecido o instituto da transação penal, não seria bem aplicado aos "acordos" de não persecução penal.

Nas situações em que exista denúncia oferecida (com os exageros já aqui relatados), não haveria como a instância revisora promover uma espécie de readequação jurídica da peça de acusação (tal como ocorre com a emendatio libelli feita pelo Juiz) para, revisando as tipificações adotadas na acusação, permitir-se o oferecimento do "acordo".

Nestes temos, esses exageros ficam imunes de correção, salvo se houver a aplicação de minoritário entendimento de antecipação de emendatio libelli na decisão de recebimento de denúncia, "nas hipóteses em que a inadequada subsunção típica macular a competência absoluta, o adequado procedimento ou restringir benefícios penais por excesso de acusação" (HC 258.581/RS - STJ)10.

Salvo contrário, deve-se se aguardar toda a fase de instrução processual para, na prolação da sentença, obter-se esta readequação jurídica dos feitos que permitirá a utilização do benefício do "acordo" de não persecução penal.

O legislador deveria já prever medidas que pudessem ser adotadas de imediato para combalir essas anomalias, seja por meio de uma possível readequação jurídica da peça acusatória por órgão de revisão do próprio Ministério Público (processualmente regulamentada e por lei), seja permitindo-se que a ementadio libelli seja feita de modo antecipado, tornando um posicionamento minoritário jurisprudencial em regra processual a ser implementada.

Os problemas que envolvem o novel "acordo" de não persecução penal são muitos e não se esgotam neste ensaio (e declaradamente não foi esta a pretensão). Porém, os apontamentos ora feitos evidenciam a inconstitucionalidade de um benefício que não se compatibiliza com a presunção de inocência, com o axioma da nulla culpa sino judicio (não há formação de culpa sem um processo) e, ainda, com um Estado Democrático de Direito, bem como revela ser inapto para se contrapor aos excessos das acusações exageradas.

Talvez (e apenas talvez) seja mais uma daquelas medidas simbólicas feitas às expressas para dar respostas à sociedade. Sem uma discussão verticalizada, com debates profundos e em campos próprios. É o direito à serviço da pós-modernidade. Afinal, é preciso regulamentar tudo na mesma velocidade com que a sociedade se torna mais complexa e globalizada. Mas, nem tudo que é moderno significa evoluído. Por vezes, é retrocesso, como aqui parece ser.

As respostas contra os excessos do Estado têm de ser racionalizadas. Enfim, "Direito é a tentativa de domar o poder por razões, ou melhor, de reconduzir a pura faticidade da voluntas à altura da ratio."11

Um benefício amealhado por notória inconstitucionalidade de quem é obrigado a assumir culpa de crime não praticado e que não apresenta respostas racionais às sobreimputações nas acusações penais exageradas, não pretende apresentar soluções democráticas para a criminalidade da pós-modernidade, busca, evidentemente, encontrar sujeitos fragilizados (processual e materialmente) a quem possa nomear de culpados, autofirmando a sua faceta persecutória. O Estado não para de perseguir nem mesmo quando "quer" dar um benefício.

Se verdadeiro negócio fosse - e não o é - se permitiria a possibilidade de pactuar sem assumir culpa. O critério de equidade passa por admitir que, em uma investigação ou processo penal figuram suspeitos, culpados e inocentes.

__________

1 A persecução penal envolve desde a instauração de um inquérito para apurar pretensos fatos criminosos até a prolação de sentença ou, para alguns, até o trânsito em julgado desta. Portanto, mais apropriado seria falar-se em "Acordo de Interrupção da Persecução Penal", uma vez que esta proposta, quando é oferecida, a persecução já está em curso.

2 Art. 72. Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público, o autor do fato e a vítima e, se possível, o responsável civil, acompanhados por seus advogados, o Juiz esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade. (lei 9.099/95)

3 Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta. (lei 9.099/95)

4 Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal). (lei 9.099/95)

5 DELICTAE. Vol. 2, n. 3, Jul - Dez de 2017. Universidade de Califórnia - EUA

6 A declaração pode ser de culpado (guilty plea), não culpado (not guilty plea, que ocorre também nos casos em que o acusado simplesmente silencia) ou pode haver contestação da acusação (nolo contendere ou no contest plea), quando o acusado não admite nem nega a culpa. Existe, também, a Alford ou Kennedy plea(North Carolina v. Alford, 1970 / Kennedy v. Frazier, 1987), quando o acusado se declara culpado, com protesto simultâneo de inocência; isto é, assume a culpa para não correr o risco de uma condenação a uma pena mais grave. Há, ainda, casos nos quais o acusado simplesmente declara que o julgamento não pode continuar (peremptory pleas), como na hipótese de alegar que já foi previamente processado por aquela mesma acusação (bis in idem). (MASI, Carlo Velho. A plea bargaining no sistema processual penal norte-americano. Disponível clicando aqui.

7 PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS. MATERIALIDADE. LAUDO DEFINITIVO. AUSÊNCIA. CONFISSÃO PARCIAL E DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS. PROVAS ORAIS QUE NÃO SUPREM A FALTA DO LAUDO. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. O acórdão recorrido, ao reformar a sentença, assentou a necessidade do laudo toxicológico definitivo para configuração da materialidade da conduta análoga ao delito previsto no art. 33 da Lei n. 11.343/2006. 2. No caso, a procedência da representação dependia da juntada do laudo toxicológico definitivo, fato este inocorrente. 3. A exceção a essa regra está atrelada à afirmação de que deveria constar do acórdão recorrido a suficiência do laudo provisório, o que não se verifica na hipótese. Precedentes. 4. A alteração da conclusão a que chegou a Corte local, demandaria nova incursão no acervo fático-probatório dos autos, o que é vedado em sede de recurso especial. Inafastável, assim, a incidência do verbete n. 7 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça ? STJ. 5. Agravo regimental desprovido.

(STJ - AgRg no AREsp: 1.595.824/MG 2019/0296728-3, relator: ministro Joel Ilan Paciornik, Data de Julgamento: 13/4/20, T5 - 5ª turma, Data de Publicação: DJe 16/4/20)

8 En el caso de la confesión sincera requiere, para su aplicación, que el imputado ayude a la facilitación del esclarecimiento de los hechos delictivos y, por tanto, dicha confesión debe ser relevante y oportuna para efectos de la investigación del delito. Sus efectos responden a que el juez puede disminuir prudencialmente la pena hasta en una tercera parte por debajo del extremo mínimo del tipo penal. (EFECTOS DE LA CONCLUSIÓN ANTICIPADA DEL PROCESO Y DE LA CONFESIÓN SINCERA ¿Cómo diferenciar la confesión sincera de la conclusión anticipada del proceso? (LA LEY, El Ángulo Legal de La Noticia, Jueves, 09 de Abril de 2020).

9 WINTER, Lorena Bachmaier. Plea Bargaining. Justiça Negociada e Coerção: reflexões à lux da Jusrisprudência do tribunal Europeu de Direitos Humanos.Empório do Direito. Tirant to blanch, São Paulo, 2019. Fls.35.

10 (HC 258.581/RS, rel. ministro Ribeiro Dantas, 5ª turma, julgado em 18/2/16, DJe 25/2/16)

11 GRECO, Luís. As razões do direito penal. Quatro estudos/Luis Greco; Tradução e organização: Eduardo Viana; Lucas Montenegro; Orlandino Gleizer - 1.ed. - São Paulo: Marcial pons, 2019. Fls. 25.

Pablo Domingues Ferreira de Castro

Pablo Domingues Ferreira de Castro

Doutorando pelo IDP(DF). Mestre e especialista. Professor de cursos de pós-graduação, coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais. Advogado criminalista do escritório Ana Paula Gordilho Pessoa e Advogados Associados.

Gordilho Pessoa, Federico & Castro Advogados Associados Gordilho Pessoa, Federico & Castro Advogados Associados

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