O recrudescimento do tratamento dos crimes licitatórios na nova Lei de Licitações
A nova Lei de Licitações, ao trazer um aumento nas penas fixadas em abstrato, recrudesceu o tratamento dado aos crimes licitatórios.
segunda-feira, 22 de março de 2021
Atualizado às 12:30
Na semana passada, o PL 4.253/20, que foi aprovado pelo Senado Federal em dezembro de 2020, foi encaminhado ao Poder Executivo para sanção. O referido projeto de lei, conhecido como nova Lei de Licitações, introduz novas regras para as licitações e contratações com a Administração Pública e revoga a atual Lei de Licitações (lei 8.666/93)1.
No que diz respeito aos ilícitos penais previstos na lei 8.666/93, o PL 4.253/20 também prevê a revogação da lei atual, mas de forma imediata após a publicação oficial do texto do projeto de lei sancionado. Com isso, os tipos penais previstos na lei especial passarão a integrar o Código Penal, no Capítulo II-B do Título XI da Parte Especial do Código Penal, denominado "DOS CRIMES EM LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS".
Não obstante esta mudança, os delitos da lei 8.666/93 foram todos mantidos pela nova lei, ainda que com alterações maiores ou menores em suas redações. São eles: contratação direta ilegal (atual art. 89 da lei 8.666/93/futuro art. 337-E do CP), frustração do caráter competitivo de licitação (atual art. 90 da lei 8.666/93/futuro art. 337-F do CP), patrocinio de contratação indevida (atual art. 91 da lei 8.666/93/futuro art. 337-G do CP), modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo (atual art. 92 da lei 8.666/93/futuro art. 337-H do CP), perturbação do processo licitatório (atual art. 93 da lei 8.666/93/futuro art. 337-I do CP), violação de sigilo em licitação (atual art. 94 da lei 8.666/93/futuro art. 337-J do CP), afastamento de licitante (atual art. 95 da lei 8.666/93/futuro art. 337-K do CP), fraude em licitação ou contrato (atual art. 96 da Lei 8.666/93/futuro art. 337-L do CP), contratação inidônea (atual art. 97 da lei 8.666/93/futuro art. 377-M do CP) e impedimento indevido (atual art. 98 da lei 8.666/93/futuro art. 337-N do CP).
A única inovação propriamente dita foi a criação de um novo tipo penal, denominado "Omissão grave de dado ou de informação por projetista", previsto no futuro art. 337-O do Código Penal.
No entanto, não se pretende neste artigo avaliar as possíveis vertentes de interpretação e aplicação destes tipos penais, considerando-se as mudanças em relação à lei atual. A análise será concentrada nas mudanças significativas nos âmbitos penal e processual penal em razão das alterações nas penas fixadas pela nova lei.
As penas previstas na lei 8.666/93 para os crimes licitatórios permitem, em boa parte, a aplicação dos benefícios da transação penal e da suspensão condicional do processo (lei 9.099/95, arts. 61, 76 e 89). Isto porque muitos dos crimes licitatórios atuais têm pena mínima igual ou inferior a 1 ano e pena máxima de 2 anos. Com isso, é possível evitar-se o oferecimento de uma denúncia (transação penal) e a existência de um processo criminal (suspensão condicional do processo), poupando-se, assim, os efeitos danosos decorrentes destes eventos processuais, sejam eles de natureza legal ou social.
É o caso dos crimes de patrocinio de contratação indevida, perturbação do processo licitatório, contratação inidônea e impedimento indevido. Pela nova lei, no entanto, apenas o delito de impedimento indevido manterá a pena máxima no limite de 2 anos, permitindo a transação penal. Já no caso da suspensão condicional do processo, o benefício permanecerá possível para estes quatro delitos.
De igual forma, o novo delito previsto no futuro art. 337-O (Omissão grave de dado ou de informação por projetista), com previsão de pena mínima de 6 meses e pena máxima de 3 anos, além de possibilidade de aumento em dobro (causa de aumento do § 2º2) não possibilitará a aplicação do instituto da transação penal, mas permitirá a suspensão condicional do processo, seja na forma do caput, seja coma causa de aumento prevista no § 2º.
Vale apontar que, para os demais delitos da lei 8.666/93, que não se enquadram nos benefícios previstos na lei 9.099/95, surgiu, com a entrada em vigor do Pacote Anticrime (lei 13.964/19), a possibilidade de aplicação benefício do acordo de não persercução penal (ANPP)3. É o caso dos crimes de contratação direta ilegal, frustração do caráter competitivo de licitação, modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo, violação de sigilo em licitação, afastamento de licitante e fraude em licitação ou contrato. Na nova Lei de Licitações, as penas mínimas destes tipos penais, ainda que em sua maioria aumentadas, permanecerão no patamar enquadrável ao benefício do ANPP, não havendo, portanto, qualquer alteração quanto a este novo benefício.
Cabe, ainda, avaliar uma outra mudança significativa decorrente das alterações das penas previstas para os crimes licitatórios na nova Lei de Licitações: a prescrição.
De acordo com as penas máximas fixadas pela lei 8.666/93, a prescrição em abstrato (antes do trânsito em julgado da sentença condenatória) dos crimes de patrocinio de contratação indevida, perturbação do processo licitatório, contratação inidônea e impedimento indevido ocorre em 4 anos. Na nova Lei de Licitações, no entnato, apenas o crime de impedimento indevido permanecerá neste patamar. Os demais crimes passarão a prescrever em 8 anos e, no caso do crime de contratação inidônea na forma qualificada (§ 1º do futuro art. 337-M do CP), a prescrição ocorrerá em 12 anos.
Já no caso dos crimes de frustração do caráter competitivo de licitação e modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo, que, com a nova Lei de Licitações, terão a pena máxima dobrada (de 4 para 8 anos), a prescrição, que atualmetne ocorre em 8 anos, passará a ocorrer em 12 anos. Também para o crime de afastamento de licitante, cuja pena máxima, na nova lei, subirá de 4 para 5 anos, a prescrição passará a ocorrer em 12 anos.
Por fim, cabe destacar que também as regras previstas para a fixação das penas de multa foram alteradas.
Na lei 8.666/93, o art. 99 fixa como base para o cálculo dos percentuais da pena de multa o "valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente", que não poderão ser inferiores a 2%, nem superiores a 5% do valor do contrato licitado ou celebrado de forma direta.
Já na nova Lei de Licitações, o futuro art. 337-P passará a prever que o cálculo da pena de multa siga as regras já existentes na parte geral do Código Penal, não podendo ser inferior a 2% do valor do contrato licitado ou celebrado de forma direta. Portanto, não será prevista a atual limitação máxima de 5% do valor do contrato, o que poderá intensificar significamente o aspecto financeiro das punições previstas para os crimes licitatórios.
Vê-se, portanto, que a nova Lei de Licitações, ao trazer um aumento nas penas fixadas em abstrato, recrudesceu o tratamento dado aos crimes licitatórios, seja por meio da restrição na aplicação do benefícios de Justiça consensual da lei 9.099/95, seja pelo alargamento dos prazos prescricionais e dos limites das penas pecuniárias previstas.
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1 Após 2 anos da publicação oficial.
2 "Se o crime é praticado com o fim de obter benefício, direto ou indireto, próprio ou de outrem, aplica-se em dobro a pena prevista no caput deste artigo".
3 O Pacote Anticrime criou uma nova categoria de crimes: a dos delitos de médio potencial ofensivo, que são crimes praticados sem violência ou grave ameaça e cuja pena mínima prevista seja igual ou inferior a 4 anos e para os quais é cabível o benefício do acordo de não persecução Penal (ANPP) (CPP, art. 28-A). Este benefício, assim como os institutos previstos na Lei 9.099/95, possibilita que a pessoa investigada evite o oferecimento de uma denúncia e a ocorrência de um processo criminal. No entanto, diferentemente do que ocorre na transação penal e na suspensão condicional do processo, para a fruição do benefício do ANPP, é necessária a confissão da prática criminosa, o que impõe um ônus a mais ao investigado.
Verônica Carvalho Rahal Brown
Graduada pela USP. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela PUC/SP. Advogada do escritório Pimentel e Fonti Advogados.