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A volta dos que não foram

A emissão de novas golden shares mesmo diante das indefinições para a sua extinção.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Atualizado às 12:36

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

No último dia 23, foi editada a medida provisória 1.031/21, que dispõe sobre a desestatização da Centrais Elétricas Brasileiras S.A. ("Eletrobras")1. Em linhas gerais, a norma prevê que a modalidade operacional de desestatização a ser implementada no âmbito da Companhia é aquela prevista no art. 4º, inc. III, da lei 9.491/972 ("Lei do PND"), qual seja, a modalidade de aumento de capital social, por meio da subscrição pública de ações ordinárias com renúncia do direito de subscrição da União3.

No entanto, a medida provisória condicionou a concretização da referida operação ao cumprimento de uma sequência de etapas, dentre elas, à aprovação, pela assembleia geral de acionistas, de alteração do estatuto social da Eletrobras para emissão de uma ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva da União4, nos termos do § 7º do art. 17 da lei 6.404/765. Tal instrumento de participação acionária, também conhecido como golden share, conferirá à União, poder de veto nas deliberações sociais relacionadas às matérias de que trata o art. 3º, inc. III, da norma6.

Introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro através da edição dos diplomas legais instituidores do Programa Nacional de Desestatização - lei 8.031/907 -, as golden shares são um instrumento societário de governança corporativa capaz de garantir ao Estado a prerrogativa de intervir nas deliberações de uma companhia, agora privada, em prol da tutela de um interesse público.

Dentre os poderes usualmente conferidos a essa classe de ações destaca-se o poder de veto sobre as matérias taxativamente elencadas no estatuto social, e, ainda, a prerrogativa de nomeação de membros dos órgãos societários da companhia. Pontua-se, no entanto, que a vasta flexibilidade inerente ao instrumento permite que os poderes conferidos a tal ação, em cada uma das sociedades, sejam distintos. 

Contudo, ainda que este título mobiliário sui generis tenha sido importado quando da edição da primeira lei do PND há mais de 30 anos, este instrumento de participação societária foi empregado em apenas quatro desestatizações federais: (i) na Companhia Eletromecânica Celma, atualmente GE Celma ("Celma"); (ii) na Embraer S.A. ("Embraer"); (iii) na Companhia Vale do Rio Doce, agora denominada, Vale S.A. ("Vale"); e, (iv) no Instituto de Resseguros do Brasil ("IRB Brasil RE").

Para além disso, nas quatro sociedades em que esta ação foi emitida, o Poder Público jamais vetou qualquer deliberação, ou seja, jamais alterou a deliberação majoritária tomada pela Assembleia Geral.

Percebe-se, portanto, que a discussão sobre uma nova utilização da técnica, ante a ausência do exercício dos direitos conferidos pelas golden shares desde sua implementação, reflete uma anacrônica "ressurreição", que marca uma espécie de "volta dos que não foram". Em outras palavras: talvez o problema central não resida na possibilidade de sua criação. Legalmente possível, embora de utilidade duvidosa. A questão tormentosa reside em aspectos ligados à sua extinção, frente ao verdadeiro descolamento do contexto em que esses títulos foram emitidos do cenário econômico e jurídico atual8.

O tema não passou despercebido pela Administração Pública. Em 2017, diante dessas transformações sociais, das próprias modificações sofridas pelo mercado e da ausência de qualquer previsão legal que autorize expressamente a supressão dessas ações, o então Ministro da Economia, Henrique Meirelles apresentou os seguintes questionamentos ao Tribunal de Contas da União: (i) se é possível suprimir os direitos conferidos às golden shares; (ii) qual seria o ente responsável pela referida extinção; (iii) e se essa operação exigiria o pagamento de uma contrapartida pecuniária ao ente público que anteriormente possuía a titularidade dessas ações.

Naquele momento, ao apreciar a consulta9 025.285/17-3, através do acórdão 284/20 - TCU - Plenário, a Corte de Contas consignou a tese de que: "não existe previsão legal para a extinção de ações de classe especial, tampouco competência definida para quem poderá extinguir esses direitos, de sorte que tal matéria deve ser tratada no âmbito do Poder Legislativo, inclusive com relação a eventual necessidade de compensação financeira à União".

Contudo, ainda que o TCU tenha delimitado tal entendimento, propõe-se aqui que a ausência de uma previsão legislativa expressa sobre a matéria - extinção de golden shares - não representa um silêncio eloquente por parte do legislador, que demande, atualmente, a sua complementação.

Não se vislumbra uma lacuna normativa: outros diplomas legais, que disciplinam o processo de desestatização como um todo, podem e devem ser aplicados ao caso em questão.

Quanto ao primeiro questionamento, deve-se relembrar que essa classe de ações viabiliza a atuação do Estado enquanto empresário e, ainda, enquanto agente regulador. E que, portanto, essa dupla atuação deve se pautar, concomitantemente, pelos limites previstos nos artigos 173, caput10 e 174, caput11 da Constituição Federal.

Portanto, as ações preferenciais de classe especial só poderiam ser emitidas "quando necessárias aos imperativos de segurança nacional ou relevante interesse coletivo". Assim, uma vez superadas as hipóteses que autorizaram a criação dessas ações, a permanência desse instrumento de participação no capital social das companhias corresponde a uma frontal violação à garantia da liberdade de iniciativa e ao princípio da subsidiariedade. Consequentemente, a supressão dos direitos conferidos à golden share não apenas é possível, como demandado pela própria redação do texto constitucional, especificamente, pelo art. 173, caput da CRFB/88.

Com relação ao ente competente pela referida extinção, uma vez que coube ao Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (CPPI) a decisão pela emissão das golden shares, caberá ao mesmo ente, com base no princípio da simetria das formas, a identificação, no caso concreto, da permanência ou da superação das razões de interesse público que justificaram a criação dessas ações e, no segundo caso, a consequente deliberação por sua extinção.

Por fim, quanto à suposta necessidade de indenização do ente público pela perda das prerrogativas que a golden share lhe conferia, deve-se relembrar que essas ações são verdadeiros instrumentos regulatórios, previstos no capital social das companhias desestatizadas não com o objetivo de auferir dividendos ou qualquer tipo de benefício econômico, mas sim com o propósito de viabilizar o exercício de uma regulação endógena à estrutura societária. Portanto, os objetivos regulatórios inerentes à ação obstam o pagamento de qualquer possível contraprestação ao ente público, sob pena de desvirtuamento da própria dinâmica do instrumento.

Assim, em contraponto à referida decisão do TCU, parece mais aderente ao ordenamento jurídico as seguintes conclusões: (i) as golden shares podem ser extintas, uma vez que a superveniência de um cenário em que inexista relevante interesse social ou de um imperativo de segurança nacional impede que esse tipo de ação seja mantido, sob pena de violação do princípio da livre iniciativa; (ii) por deliberação do CPPI, tendo em vista que, de acordo com o princípio da simetria das formas, o ente competente para a previsão de um determinado instituto deve ser encarregado da decisão pela sua extinção; (iii) sem que haja o pagamento de qualquer contraprestação financeira, dado que as golden shares constituem um instrumento utilizado para a tutela de razões estratégicas do Estado e não um mecanismo para obtenção de algum tipo de retorno econômico-financeiro.

Aqui, destaca-se, a discussão não versa sobre as circunstâncias nem sobre o procedimento que deve ser observado para a emissão das ações preferenciais de classe especial no âmbito das sociedades desestatizadas. Reconhece-se, até mesmo que, para além das hipóteses de relevante interesse coletivo e imperativo de segurança nacional, essas ações também são previstas com finalidades exclusivamente políticas, em que o objetivo central de sua emissão consiste em gerar um maior consenso e uma maior adesão entorno do processo de desestatização.

Contudo, como pode ser extraído da experiência brasileira, sua aplicação, do ponto de vista operacional, inexiste12.

Portanto, a questão central atinente às ações preferenciais de classe especial é aquela referente às condições e ao procedimento que devem ser adotados para que estas ações sejam naturalmente retiradas do capital social dessas companhias, quando do esgotamento de suas finalidades.

Com relação às golden shares já existentes e previstas no capital social da Embraer, Vale e IRB Brasil RE, sua extinção está subordinada à tese fixada no âmbito do acórdão 284/20. No entanto, as eventuais ações preferenciais de classe especial que venham a ser emitidas, por qualquer ente, podem se submeter a distintas condições de extinção.

É dizer: em processos de desestatização em que a anuência prévia do Congresso Nacional é necessária - seja por expressa determinação legal, na forma do art. 3º da lei 9.491/9713 e de outros normativos legais14, ou ainda, por questões eminentemente políticas -, a lei que disciplina as etapas do referido procedimento e, portanto, a emissão de uma golden share poderá prever, em caráter ex ante, as respectivas condições para a sua extinção.

Portanto, o texto original da MP 1.031/21, não aproveitou a oportunidade de disciplinar o mecanismo que deverá ser observado para a exclusão dessa classe de ações do capital social da companhia.

Resta agora esperar que as emendas apresentadas pelos parlamentares sejam capazes de modificar a sistemática deste instrumento, de modo a que o Congresso Nacional preveja, na largada, ou seja, quando da emissão dessa nova golden shares, as condições e procedimentos que deverão ser observados para a extinção dessa classe de ações, quando sobrevierem os fundamentos naturais que ensejarão a sua superação.

________

1 MP 1.031/21 - "Dispõe sobre a desestatização da empresa Centrais Elétricas Brasileiras S.A. - Eletrobras e altera a lei  5.899, de 5 de julho de 1973, a lei 9.991, de 24 de julho de 2000, e a lei 10.438, de 26 de abril de 2002".

2 Lei 9.491/97 - "Art.  4º As desestatizações serão executadas mediante as seguintes modalidades operacionais: III - aumento de capital, com renúncia ou cessão, total ou parcial, de direitos de subscrição".

3 MP 1.031/21 - "Art. 1º, §1º A desestatização da Eletrobras será executada na modalidade de aumento do capital social, por meio da subscrição pública de ações ordinárias com renúncia do direito de subscrição pela União".

4 MP 1.031/21 - "Art. 3º A desestatização da Eletrobras fica condicionada à aprovação, por sua assembleia geral de acionistas, das seguintes condições: III - alteração do estatuto social da Eletrobras para: c) criar ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva da União, nos termos do disposto no § 7º do art. 17 da lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, que dará o poder de veto nas deliberações sociais relacionadas às matérias de que trata o inciso III do caput".

5 Lei 6.404/76 - "Art. 17 § 7º Nas companhias objeto de desestatização poderá ser criada ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva do ente desestatizante, à qual o estatuto social poderá conferir os poderes que especificar, inclusive o poder de veto às deliberações da assembléia-geral nas matérias que especificar". 

6 MP 1.031/21 - "Art. 3º A desestatização da Eletrobras fica condicionada à aprovação, por sua assembleia geral de acionistas, das seguintes condições:

III - alteração do estatuto social da Eletrobras para:

a) vedar que qualquer acionista ou grupo de acionistas exerça votos em número superior a dez por cento da quantidade de ações em que se dividir o capital votante da Eletrobras;

b) vedar a realização de acordos de acionistas para o exercício de direito de voto, exceto para a formação de blocos com número de votos inferior ao limite de que trata a alínea "a"; e

c) criar ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva da União, nos termos do disposto no § 7º do art. 17 da Lei no 6.404, de 15 de dezembro de 1976, que dará o poder de veto nas deliberações sociais relacionadas às matérias de que trata o inciso III do caput;

IV - manutenção do pagamento das contribuições associativas ao Centro de Pesquisas de Energia Elétrica - Cepel, pelo prazo de quatro anos, contado da data da desestatização; e

V - desenvolvimento de projetos que comporão os programas de:

a) revitalização dos recursos hídricos da bacia do Rio São Francisco, diretamente pela Eletrobras ou, indiretamente, por meio de sua subsidiária Companhia Hidrelétrica do São Francisco - Chesf;

b) redução estrutural de custos de geração de energia na Amazônia Legal, diretamente pela Eletrobras ou, indiretamente, por meio de sua subsidiária Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. - Eletronorte; e

c) revitalização dos recursos hídricos das bacias hidrográficas na área de influência dos reservatórios das usinas hidrelétricas de Furnas Centrais Elétricas S.A. - Furnas, cujos contratos de concessão são afetados por esta Medida Provisória, diretamente pela Eletrobras ou, indiretamente, por meio de sua subsidiária Furnas".

7 Lei 8.031/90 - Art. 8º - "Sempre que houver razões que o justifiquem, a União deterá, direta ou indiretamente, ações de classe especial do capital social de empresas privatizadas, que lhe confiram poder de veto em determinadas matérias, as quais deverão ser caracterizadas nos estatutos sociais das empresas, de acordo com o estabelecido no art. 6º, inciso XIII e §§ 1º e 2º desta lei".

8 Um exemplo capaz de ilustrar tal afirmação é o caso do IRB Brasil - RE. Isso porque, no momento em que a empresa foi desestatizada, o setor de resseguros era marcado por um monopólio legal, diante do qual, cabia à Companhia, a realização de todas as operações de resseguro e retrocessão do país, bem como a própria regulação do serviço. Cenário este que foi superado com a edição da LC nº 126/07 e com a consolidação da regulação exercida pela Superintendência de Seguros Privados ("SUSEP").

9  O Portal do TCU assim conceitua as Consultas: "O TCU pode ser questionado, por exemplo, sobre o entendimento que possui em relação a um determinado normativo. A consulta deverá ser realizada sempre em tese e nunca poderá versar sobre o caso concreto e a resposta do TCU valerá para toda a Administração Pública". Disponível clicando aqui.

10 CRFB/88 - "Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei".

11 CRFB/88 - "Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado".  

12 A título de exemplo, na história recente, dois foram os principais casos em que se suscitou a possibilidade de exercício das prerrogativas conferidas pelas golden shares pela Administração Pública: o primeiro, na Vale, em decorrência do desastre de Brumadinho; e, o segundo, na Embraer, em razão das tratativas iniciadas pela empresa com a Boeing para a constituição de uma joint venture. No entanto, mesmo diante dessas hipóteses autorizativas, em que o titular desse tipo de participação poderia ter transmutado as decisões tomadas pela companhia, as prerrogativas conferidas a esta ação jamais foram postas em prática, por uma opção do Poder Público.

13 lei 9.491/97 - "Art. 3º  Não se aplicam os dispositivos desta Lei ao Banco do Brasil S.A., à Caixa Econômica Federal, e a empresas públicas ou sociedades de economia mista que exerçam atividades de competência exclusiva da União, de que tratam os incisos XI e XXIII do art. 21 e a alínea "c" do inciso I do art. 159 e o art. 177 da Constituição Federal, não se aplicando a vedação aqui prevista às participações acionárias detidas por essas entidades, desde que não incida restrição legal à alienação das referidas participações".

14 Como é o caso da Eletrobras, que foi excluída do PND a partir da edição da Lei nº 10.848/04, que assim dispõe: "Art. 31 § 1º Ficam excluídas do Programa Nacional de Desestatização - PND a empresa Centrais Elétricas Brasileiras S/A - ELETROBRÁS e suas controladas: Furnas Centrais Elétricas S/A, Companhia Hidro Elétrica do São Francisco - CHESF, Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A - ELETRONORTE e Empresa Transmissora de Energia Elétrica do Sul do Brasil S/A - ELETROSUL e a Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica - CGTEE. (Revogado pela medida provisória 1.031, de 2021)". 

Thiago Cardoso Araújo

Thiago Cardoso Araújo

Professor da EPGE/FGV, procurador do Estado do Rio de Janeiro e sócio do escritório Bocater Advogados. Mestre e doutor em Direito pela UERJ.

Ana Carolina Alhadas

Ana Carolina Alhadas

Advogada do escritório Bocater Advogados e mestranda em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

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