Recuperação judicial de grupos econômicos conforme as novas regras estabelecidas pela lei 14.112/20
A lei 14.112/20 traz maior segurança jurídica e previsibilidade decisória para o sistema de insolvência brasileiro, uniformizando a atuação dos magistrados e reduzindo a discricionariedade.
quarta-feira, 17 de março de 2021
Atualizado às 14:28
A lei 14.112/20 inclui a seção IV-B (arts. 69-G a 69-L) na lei 11.101/05, para disciplinar a recuperação judicial e falência de empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico, de fato ou de direito. Essa seção aborda a consolidação processual e a consolidação substancial, que foram uma construção jurisprudencial no Brasil e que agora restaram normatizadas pela reforma da legislação falimentar.
Com origem no direito falimentar norte-americano, a consolidação processual é denominada procedural consolidation ou joint administration, e tem como objetivos a economia processual e a celeridade.
A consolidação processual reúne as empresas de um mesmo grupo econômico no polo ativo de um único processo, mas permite que cada empresa seja tratada separadamente, respeitando as suas personalidades jurídicas.
Portanto, cada pessoa jurídica devedora deve preencher os requisitos legais e apresentar individualmente a documentação exigida pela Lei, conforme seus ativos e passivos, e apresentar planos de recuperação autônomos, formulados conforme as circunstâncias de cada uma, ou, um plano único, mas subdividido, de forma que seja possível identificar as medidas previstas para cada devedora.
Os atos processuais, entretanto, são coordenados para evitar uma multiplicidade de processos que oneraria excessivamente o Poder Judiciário e dos quais poderiam resultar decisões conflitantes ou desencontradas. Um único feito envolvendo as empresas integrantes de um mesmo grupo econômico também aprimora a atuação do magistrado, que pode compreender a crise em todas as suas nuances.
Enquanto não havia previsão na lei 11.101/05, a consolidação processual se baseava somente nas regras do litisconsórcio ativo previstas no Código de Processo Civil, tendo como critérios a comunhão de direitos ou de obrigações relativamente à lide, a conexão pelo pedido ou pela causa de pedir ou a afinidade de questões por ponto comum de fato ou de direito, que ensejam a postulação em conjunto.
Agora, com a Lei reformada, garante-se a independência dos devedores, deixando claro que a consolidação processual não impede que alguns devedores obtenham a concessão da recuperação judicial enquanto outros possam ter a falência decretada, considerando a realidade econômico-financeira de cada um. Se isso ocorrer, o processo será desmembrado em tantos autos quantos forem necessários, visto que há diferenças entre os procedimentos recuperacional e falimentar.
Apenas um administrador judicial será nomeado, efetivando a economia processual, a redução dos custos para os devedores e a harmonia dos atos praticados. Trata-se de uma medida eficiente, pois o administrador judicial terá conhecimento detalhado da situação patrimonial de todo o grupo. Entretanto, a remuneração do administrador judicial deve ser correspondente com a complexidade do trabalho para uma pluralidade de devedores.
Na consolidação processual, os credores de cada devedor deliberarão em AGC independentes, considerando que o plano de recuperação e as medidas a serem discutidas são específicas para cada devedor, visto que cada um possui suas próprias demonstrações financeiras, créditos e débitos, colaboradores e negócios jurídicos.
A consolidação processual não implica na reunião de ativos e passivos, ab initio, mas esta reunião poderá ocorrer em algumas situações, quando configurada a consolidação substancial - de inspiração na substantive consolidation do direito norte-americano1.
A consolidação substancial tem origens na evolução jurisprudencial do sistema norte-americano. Embora sem previsão expressa no Código de Insolvências dos Estados Unidos, sua aplicação encontra fundamento nos equitable powers conferidos aos magistrados pelo art. 105(a) do US Bankruptcy Code.
O Enunciado nº 98 da 3ª Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal, ocorrida em junho de 2019, já previa que: "A admissão pelo juízo competente do processamento da recuperação judicial em consolidação processual (litisconsórcio ativo) não acarreta automática aceitação da consolidação substancial". Isso porque, por interferir na autonomia patrimonial das pessoas jurídicas que compõem o grupo, a consolidação substancial é medida excepcional, que somente se admite quando o contexto fático assim exigir.
Antes da reforma legislativa da lei 11.101/05, os requisitos para a consolidação substancial consistiam naqueles previstos pelo artigo 50 do Código Civil, ou seja, da desconsideração por abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Ora, se as próprias empresas já se desviaram de sua autonomia patrimonial, é coerente que o Poder Judiciário também o faça.
A jurisprudência brasileira adequou esses critérios ao sistema de insolvência. Pormenorizadamente, os tribunais pátrios já averiguavam, antes da reforma legislativa, se o grupo econômico se apresenta como um bloco único de atuação conjunta, a interconexão das empresas do grupo, a existência de garantias cruzadas, a confusão de patrimônio e de responsabilidade, a coincidência de diretores ou de composição societária, a relação de controle e/ou dependência entre as empresas, e se são constatados desvios de ativos através das pessoas jurídicas integrantes do grupo. Para isso, faz-se necessário analisar a atuação do grupo econômico perante o mercado e a sua organização interna.
Vale destacar a influência do direito norte-americano na definição dos requisitos escolhidos pelo legislador brasileiro para autorizar a consolidação substancial. Os Tribunais dos EUA exigem a presente de alguns standarts autorizativos da consolidação substancial, como, por exemplo, a interconexão entre as empresas, a confusão patrimonial, a unidade de comando e de direção, a unidade financeira do grupo, a existência de garantias cruzadas entre as empresas do grupo, a descapitalização grosseira de uma das empresas do grupo em favor de outras empresas do grupo, dentre outros.
Ao verificar o preenchimento desses requisitos, o magistrado deve determinar a consolidação substancial, independentemente da vontade das recuperandas e dos credores, e independentemente da realização de AGC. No sistema norte-americano, esta decisão cabe aos credores reunidos em AGC, e não ao magistrado. No Brasil, o plano de recuperação unitário, que deverá ser apresentado pelo grupo, é que será submetido à votação em AGC.
Com a alteração da lei 11.101/05, foi mantida a consolidação substancial como ultima ratio, estando a Lei, portanto, de acordo com a construção jurisprudencial. Isso porque, além de interferir na autonomia patrimonial e desnaturar os negócios jurídicos originários, o plano unitário será submetido a uma única AGC, à qual serão convocados todos os credores do grupo consolidado, de forma que ocorre uma alteração no poder de voto de cada credor - em comparação ao que ocorreria se os planos de recuperação fossem individualizados -, pois os débitos estarão inseridos no passivo total do grupo. O mesmo ocorre com o ativo a ser liquidado. Se o plano unitário vier a ser rejeitado pela AGC ou descumprido, a recuperação judicial será convolada em falência para todo o grupo consolidado.
O PL 10.220/18, do qual decorre a seção IV-B da lei 11.101/05, já previa: "No caso de consolidação substancial, ativos e passivos de devedores deverão ser tratados como se pertencessem a um único agente econômico e os devedores apresentarão um plano unitário, que será submetido a uma assembleia-geral de credores à qual serão convocados os credores de todos os devedores. A rejeição do plano implica a convolação da recuperação judicial em falência de todos os devedores sob consolidação substancial. Trata-se de instrumento que visa induzir a proposição de planos consistentes e inibir o uso de fraudes."
Agora, a previsão legal vigente determina que será autorizada a consolidação substancial quando for verificada a confusão entre ativos e passivos das devedoras, de modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou recursos, cumulativamente com a ocorrência de, no mínimo, duas das seguintes hipóteses: (i) existência de garantias cruzadas; (ii) relação de controle ou dependência; (iii) identidade total ou parcial do quadro societário; (iv) atuação conjunta no mercado entre as postulantes2.
Para além dos requisitos objetivos acima descritos, é imprescindível que sejam verificados potenciais benefícios econômicos e sociais decorrentes da consolidação substancial para respaldar a sua aplicação, em respeito aos princípios que regem o sistema de insolvência brasileiro, bem como a interpretação teleológica e sistemática da lei 11.101/05. Portanto, caberá ao magistrado analisar se, no caso concreto, haverá maior prejuízo com a ausência ou com a configuração da consolidação substancial.
A liberal trend dos EUA propõe que sejam sopesados os benefícios ou prejuízos econômicos e sociais decorrentes da consolidação substancial na recuperação de um grupo empresarial como critério definidor de sua excepcional admissão.
Considerando que até recentemente não havia previsão legal quanto aos critérios para o deferimento e os procedimentos das consolidações processual e substancial, a lei 14.112/20 traz maior segurança jurídica e previsibilidade decisória para o sistema de insolvência brasileiro, uniformizando a atuação dos magistrados e reduzindo a discricionariedade.
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1 Nos EUA, o leading case da consolidação substancial foi Sampsell v. Imperial Paper & Color Corp., cuja decisão final ocorreu no ano de 1941, consolidando e unificando o patrimônio das empresas em decorrência da utilização de pessoa jurídica para ocultação patrimonial e fraude contra credores.
2 COSTA, Daniel Carnio. MELO, Alexandre Correa Nasser de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Curitiba: Ed. Juruá, 2021, p. 197-198.
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Daniel Carnio Costa
Juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law.