Precisamos falar mais sobre a LIA
Preocupada com o futuro do combate à corrupção no Brasil, a integrante da Advocacia-geral da União, Priscila Seifert, aponta quatro pontos perigosos no PL 10.887/18 e no seu substitutivo. Ambos têm como principal finalidade modernizar a atual lei de improbidade administrativa (lei 8.429/92).
terça-feira, 16 de março de 2021
Atualizado às 09:52
Enquanto o coronavírus se alastra explícita e descontroladamente pelo país, um outro vírus, que também pode matar e que corrói a nossa sociedade há décadas, continua avançando com força total e de maneira sorrateira: a corrupção. O cenário é propício: as atenções estão voltadas para o combate da COVID-19; nossas instituições, enfraquecidas pelos conflitos de interesse e pelas sucessivas interferências políticas; o acesso à informação pública ainda é deficiente; carecemos da participação ativa dos cidadãos e, por fim, possuímos uma legislação considerada desatualizada.
Esse último aspecto do cenário brasileiro nos interessa em particular. Atualmente, tramitam no Congresso Nacional o projeto de lei 10.887/18 e um substitutivo, ambos com a finalidade de modernizar a lei 8.429/92, atual lei de improbidade administrativa (LIA), principal normativo nacional no combate à corrupção.
Embora consolidem alguns entendimentos jurisprudenciais pró-combate à corrupção, os projetos têm pontos preocupantes. Como veremos a seguir, dentre outras medidas de cunho restritivo, quatro chamam atenção de forma especial: (i) o fim da possibilidade de cometimento de improbidade por violação aos princípios administrativos; (ii) a diminuição e a redução do alcance de algumas penas; (iii) a exclusão da legitimidade ativa da pessoa jurídica interessada; e (iv) o aumento das dificuldades para a concessão de medidas cautelares. Tais restrições, verdadeiramente, são capazes de atualizar a LIA e de incrementar o combate à corrupção no Brasil? Esta é a principal questão do presente artigo.
A LIA, na esteira da Constituição da República, que possibilita o controle judicial da moralidade administrativa (arts 5º, inciso LXXIII e 37), considera ímprobos os atos que atentam contra os princípios da Administração Pública. Assim, a rigor, qualquer violação aos princípios da legalidade, da razoabilidade, da moralidade, do interesse público, da eficiência, da motivação, da publicidade, da impessoalidade ou ainda de qualquer outro que sirva de direcionamento à Administração, pode constituir ato de improbidade administrativa. De fato, essa hipótese, por sua abrangência pode alcançar incontáveis atos.
No entanto, segundo a disciplina atual, a intenção do agente ímprobo sempre será levada em consideração para a configuração da improbidade. Dessa forma, é preciso que haja dolo, ou seja, evidente má-fé ou desonestidade no cumprimento dos deveres administrativos. De outro modo, não ocorrerá o ilícito previsto no art. 11 da LIA. É graças à abrangência do referido artigo que condutas como o nepotismo, a advocacia administrativa e os maus tratos em creches e escolas públicas, por exemplo, são consideradas improbidades administrativas.
Ignorando a sistemática constitucional e a necessidade da presença do dolo para configuração da improbidade administrativa por violação aos princípios administrativos, tanto a versão original, como a do substitutivo, são claras ao estabelecer que a "simples" violação aos princípios não configura improbidade. A violação aos princípios, segundo os reformadores, até pode ensejar outras ações judiciais, como a ação civil pública e a ação popular, mas não a ação de improbidade.
Essa mudança nos parece bastante problemática. Ela está justificada na necessidade de conter eventuais abusos no manejo da ação de improbidade. Ora, essa contenção não pode ser realizada de forma prévia e genérica pelo legislador. Afinal, como vimos, o art. 11 da LIA abrange condutas muito danosas à sociedade. Não obstante, não se pode ignorar que o regime atual prevê uma série de mecanismos processuais para que o juiz possa controlar eventuais abusos de plano, antes mesmo da citação do réu.
De acordo com o §7º, do art. 17, da LIA, antes de receber a petição inicial o juiz ordenará a notificação do requerido, suposto réu, para oferecer manifestação por escrito, no prazo de 15 dias. Recebida a manifestação, o juiz, por meio de decisão fundamentada, poderá rejeitar a ação, se estiver convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita (§8º). Caso a petição inicial seja recebida, o réu será citado para apresentar a contestação (§9º). Ademais, em qualquer fase da ação, o juiz poderá extinguir o processo sem apreciação do mérito, caso reconhecida a sua inadequação (§11º). Assim, na nossa visão, a supressão desse tipo de improbidade não se justifica.
A diminuição e a limitação do alcance de algumas penalidades também representam um grande recuo do reformador. Nessa seara, chamamos atenção à redução dos valores referentes a multa civil, penalidade de forte caráter pedagógico na esfera da improbidade, justamente por atingir diretamente o patrimônio do réu considerado ímprobo. Pela atual LIA, a multa civil no caso de cometimento de improbidade que gera enriquecimento ilícito do agente é de até 3 vezes o valor do acréscimo patrimonial (art.12, I); se o agente cometer uma improbidade que tenha gerado um prejuízo ao erário, a multa pode chegar até 2 vezes o valor do prejuízo (art.12, II); por fim, se se tratar de uma improbidade que viole os princípios da administração, o valor pode chegar até 100 vezes o valor da remuneração do agente (art.12, III).
O projeto original não altera tais penalidades, mas o substitutivo prevê o seguinte: se houver enriquecimento ilícito, a multa fica limitada ao valor do acréscimo; se houver prejuízo ao erário, ao valor do prejuízo; e, se o agente violar os princípios da administração pública, ele sequer será multado, pois, como vimos, tal violação, para o reformador, deixará de ser considerada improbidade.
Os retrocessos não se limitam ao campo material, mas também podem ser vistos no âmbito processual. O regime atual da LIA (art. 17, caput) estabelece que a ação de improbidade será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada. Dessa forma, a legitimidade para a propositura da ação de improbidade é tida como concorrente e disjuntiva. Isto significa que tanto o Ministério Público como a pessoa jurídica interessada podem propor a demanda (legitimidade concorrente), independente da participação concomitante do outro na propositura da ação (legitimidade disjuntiva). Assim, embora possam litigar em conjunto, a lei não faz essa exigência.
É importante esclarecer que a expressão "pessoa jurídica prejudicada", de acordo com o estabelecido no art.1º da LIA, abrange qualquer órgão ou entidade da administração direta ou indireta, federal, estadual, ou municipal, inclusive as que não tem natureza de direito público (empresas públicas e sociedade de economia mista), mas que recebam do Estado subvenções, incentivos ou qualquer forma de transferência de recursos. Segue-se ainda que por força da lei complementar nº 157/2016, foi incluído no art.17 da LIA o §13º, que considera pessoa jurídica interessada o ente tributante que figurar no polo ativo da obrigação tributária de que trata o art.8º-A da lei complementar nº116/2003. Dessa forma, pode-se afirmar que a legitimidade para a propositura da LIA, no atual regime, é significativamente ampla. Essa amplitude, a rigor, nos parece positiva, pois estimula e fortalece o controle e o combate à corrupção.
Não obstante, tanto o projeto original como o substitutivo suprimiram a possibilidade da pessoa jurídica interessada, - a mesma que foi desfalcada, lesada e prejudicada pelo ato ímprobo -, de ajuizar a ação de improbidade administrativa. A supressão, em síntese, também é justificada pela necessidade de contenção de eventuais ajuizamentos abusivos, haja vista que a pessoa jurídica interessada pode valer-se do manejo da ação como estratégia política.
Definitivamente, não pensamos dessa forma. A propositura da ação de improbidade, por si só, não é gravosa. Como já ressaltamos, o Judiciário pode controlar, antes mesmo de citar o réu, eventuais abusos, indeferindo a petição inicial. Segundo porque as penas, - estas sim gravosas - somente são aplicadas após um longo e exaustivo processo, com ampla defesa e contraditório. Enfim, para nós, longe de modernizar e estimular o combate à corrupção, a supressão da legitimidade ativa da pessoa jurídica prejudicada representa um nítido desmanche da capacidade institucional brasileira para o enfrentamento do problema.
Por fim, quanto a possibilidade de deferimento de medida cautelar de indisponibilidade de bens, o substitutivo é de redação desastrosa. Ele desconsidera o projeto inicial que incorporou o entendimento consolidado na jurisprudência do STJ de que a indisponibilidade de bens na ação de improbidade é uma espécie de tutela da evidência1, - e que, dessa forma, pode ser concedida independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo -, e propõe justamente o contrário, ou seja, que a medida somente seja deferida "mediante a demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo". Nessa direção, ao desconsiderar a jurisprudência já consolidada do Superior Tribunal de Justiça, o substitutivo não avança, mas causa insegurança jurídica.
É impossível não pensar que as mudanças parecem revelar um afrouxamento no regime de responsabilização dos agentes ímprobos. Não estamos defendendo que a legislação deva prever penas e medidas mais rigorosas. Não é isso. Mas a questão que não quer calar e que estamos longe de responder conclusivamente é: por que abrandá-las? Onde está o avanço desses abrandamentos? E assim, conscientes de nossa singela provocação e da necessidade de reflexão que o tema demanda, terminamos este artigo retomando o clamor que inspirou o título: precisamos falar mais sobre a LIA.
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1- Nessa direção é o REsp 1809837/SC, DJe 21/10/2019; o AgInt no AREsp 1455101/MT, DJe 03/10/2019; REsp 1805282/SC, DJe 01/07/2019. Disponíveis aqui. Acesso em 7 mar.2021.
Priscila Seifert
Pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. É pesquisadora do laboratório fluminense de processo (LAFEP-UFF). É professora de processo civil, mídia e justiça e exerce o cargo de Advogada da União em Niterói, Rio de Janeiro.