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Uma solução à procura de um problema

O artigo tem por objetivo a análise da existência de vínculo empregatício entre motorista de aplicativo Uber, 99, etc.

sexta-feira, 12 de março de 2021

Atualizado às 14:07

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Os motoristas de aplicativos - uber, 99, etc - integram um tipo de tecnologia conhecida como "disruptiva", isto é, tecnologias que rompem um paradigma e criam uma situação nova. Como toda situação nova, atrai problemas novos que exigem soluções novas. Quando o automóvel foi inventado, os cientistas aconselhavam às pessoas a não embarcarem nele porque a alta velocidade - cerca de 10 quilômetros por hora -  faria com que morressem asfixiadas. Foi preciso "inventar" um vidro à frente dos carros para que o fluxo de ar não matasse o motorista e os passageiros. O "novo" invento era considerado tão perigoso que as leis de então exigiam que um sujeito com uma bandeirola fosse correndo à frente dos carros avisando a todos que atrás dele vinha um engenho diabólico que poderia ser danoso à saúde dos passantes.

Um dia foram disruptivos o fax, o rádio de pilha, o gravador de fita cassete, o fogão a gás, o micro-ondas, o microcomputador, a caneta bic, o relógio de pulso, o celular, o disquete, o pendrive, o ifood, a internet, o spotify, o instagram, o facebook e mais um monte de coisas que ficaram para trás. Quando surgiram, as pessoas perguntaram o que fazer com isso, pra que serve, pra que eu preciso dessa engenhoca?

Com o uber é a mesma coisa. Todo mundo usa e acha ótimo, mas por trás da novidade há um monte de problemas, especialmente jurídicos.

Discute-se nos tribunais trabalhistas brasileiros se os motoristas do aplicativo uber são empregados da plataforma uber ou meros parceiros prestadores de serviço.

Não há nenhum consenso.

Numa mesma turma julgadora composta por cinco desembargadores do trabalho cada um dos cinco tem uma opinião diferente examinando os mesmíssimos fatos.

Na Inglaterra, a Uber recorreu contra uma decisão judicial tomada na corte em novembro de 2017, que reconheceu a existência de vínculo empregatício entre os motoristas e a empresa. O juiz alegou que os motoristas cadastrados no aplicativo não são autônomos e teriam direito a salário mínimo nacional e férias remuneradas. Em recurso, a empresa alegou que os motoristas de táxis são autônomos há bastante tempo e que, segundo um estudo recente da Universidade de Oxford, além de ganharem mais do que o salário mínimo do país, os motoristas queriam manter a liberdade e flexibilidade, benefícios que seriam perdidos caso fossem classificados como trabalhadores da empresa. 

Aqui no Brasil, a 5ª turma do TST (RR-100123-89.2017.5.02.0038) entende pela inexistência de relação de emprego entre os motoristas e o aplicativo de transportes. A decisão tem por base a inexistência de onerosidade e subordinação jurídica da relação. No voto, foi adotada a tese de que o alto percentual sobre os valores pagos pelas viagens, recebidos pelos motoristas, impedia a onerosidade, um dos requisitos exigidos para caracterização do vínculo trabalhista. Por outro lado, a flexibilidade do motorista quanto à determinação de sua rotina de trabalho, escolha de clientes, jornada de trabalho e de itinerário retirariam outro requisito essencial para o reconhecimento do vínculo empregatício: a subordinação.

No mesmo sentido, a 4ª turma do TST (AIRR -10575-88.2019.5.03.003) entendeu que a atividade de motorista de aplicativo de uber mais se aproxima à do transportador autônomo, regida pela lei 11.442/2007.

Para decidir com propriedade sobre se o motorista de uber é ou não empregado da plataforma é preciso considerar certos aspectos comuns aos empregados em sentido estrito. Segundo a CLT, para que uma pessoa seja considerada empregada de outra é preciso que seja (pessoa física), que preste serviços a outra pessoa física ou jurídica pessoalmente (pessoalidade), em caráter habitual (habitualidade), sob subordinação jurídica (subordinação) e mediante salário (onerosidade). Se faltar a essa pessoa um ou mais desses requisitos, não será empregado. Não será empregado, especialmente, se puder se fazer substituir no serviço por outra pessoa (pessoalidade), se não estiver juridicamente subordinada e se não receber salário (onerosidade).

Comparando-se esses requisitos com os requisitos de um motorista de aplicativo uber veremos que os motoristas satisfazem rigorosamente a todos, e podem ser, em tese, considerados empregados.

Tanto quanto o empregado da CLT, o motorista de aplicativo uber tem  pessoalidade. Em princípio, o motorista de aplicativo se inscreve na plataforma e passa a ser titular de uma matrícula, que lhe é exclusiva. Esse motorista não pode ceder a sua matrícula a um terceiro para que passe a trabalhar em seu lugar quando não puder ou não quiser ir. A Uber até aceita a inclusão de um segundo nome na matrícula e no mesmo carro, mas o titular da matrícula não pode alocar seu substituto sem aviso prévio e, principalmente, não pode emprestar o carro a outro motorista que não seja aquele previamente credenciado na mesma matrícula. O motorista de aplicativo é livre para aceitar ou não determinadas corridas segundo o perfil de avaliação que o passageiro tem ou segundo o local de onde partiu a chamada. Mas há limites para isso. Se o motorista recusar frequentemente corridas, ou for mal avaliado pela clientela, a plataforma pode chamá-lo a explicar-se, pode suspendê-lo ou até mesmo desligá-lo do serviço, o que lhe retira de certo modo a autonomia na condução do veículo.

O preço das viagens foge ao controle do motorista e é determinado pela empresa a partir da medição contínua do fluxo de demanda. Prevalece a velha lei de mercado: quanto maior a procura, maior o preço da corrida.

Normalmente, a empresa escolhe o carro e determina a contratação de seguros. O "poder diretivo" da plataforma pode ir da suspensão do motorista ao seu descredenciamento provisório ou definitivo, dependendo da gravidade da falta. Esse "poder diretivo" se vê claramente no controle do tempo "offline" ou do número de corridas recusadas.  

Vejamos, para ilustrar, o seguinte quadro:

Empregado segundo a CLT

Motorista de aplicativo

é pessoa física

é pessoa física

tem subordinação jurídica

tem subordinação jurídica

executa trabalho pessoal

executa trabalho pessoal

executa trabalho oneroso

executa trabalho oneroso

executa trabalho contínuo

executa trabalho contínuo

De se ver, portanto, que o motorista de aplicativo detém todas as características de trabalhador subordinado. Afirmar, sem reflexão profunda, que o motorista de uber não é empregado de ninguém, mas autônomo, parceiro, dono do seu próprio nariz, é ignorar as evidências e admitir a exploração da mão de obra sem qualquer proteção legal. O judiciário não pode acobertar situações antijurídicas.

Na prática, o trabalho do motorista de aplicativo é quase o mesmo dos taxistas, mas com uma diferença fundamental. Os taxistas não estão vinculados a uma plataforma digital que lhes diz o quê fazer, como fazer, quando fazer. Um taxista pode se dar ao luxo de deixar o carro na garagem e ir à praia tomar cerveja com os amigos. O motorista de aplicativo tem de explicar onde estava quando o dia amanheceu e a matrícula dele estava offline.

Mais uma vez, prevalece a antiga máxima de um famoso jurista italiano: quando o direito se esquece da sociedade, a sociedade se esquece do direito.

O que os motoristas de aplicativo precisam para ontem é de uma lei específica que assegure a sobrevivência da profissão sem matar os profissionais.

 

Mônica Gusmão

Mônica Gusmão

Especialista em Direito Empresarial, professora de graduação e pós-graduação, advogada, membro da Comissão de Recuperação de Ativos e da Comissão de Direito Societário, ambas da OAB/RJ.

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