As terras devolutas e a necessidade de que o Estado e a União comprovem o seu domínio sobre o imóvel
Em faixas de fronteira há tratamento diferenciado em relação às terras devolutas da União, ainda que tenham sido concedidas pelo Estado, contudo, ainda assim, a União precisará comprovar que se tratam de terras devolutas que estão em seu domínio, e não de terras particulares.
segunda-feira, 8 de março de 2021
Atualizado às 12:56
As terras devolutas são aquelas que, ainda na época do Império de Portugal, na época da colonização, havendo a doação de terras para particulares, estas foram devolvidas ao Poder Público, pois estes não cumpriram suas obrigações legais de cultivar e de povoar os aludidos imóveis do Brasil-Colônia, além daquelas não aproveitadas por não terem sido distribuídas a quem quer que seja.
Até 1850, predominavam as sesmarias na colônia portuguesa, cuja centralidade era a posse das terras:
"[...] Uma vez abolida a escravatura, nada mais de relevante economicamente, no campo proprietário, restaria aos detentores das estruturas de produção, quer no campo, quer nas cidades, que já estavam dotadas de razoável infraestrutura de comércio e de mercado" (SILVA, 2018, p. 76).
Dizia o artigo 3º da lei 601/50, quanto às terras devolutas:
Art. 3º São terras devolutas:
§ 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal.
§ 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.
§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei.
§ 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei (BRASIL, 1850)
Nesta vertente:
"[...] A posse já conquistara um certo reconhecimento por parte das autoridades, principalmente a partir da resolução do príncipe regente que lhe dava prevalência sobre as sesmarias. O entendimento que se teve da resolução do príncipe regente suspendendo as concessões de sesmarias foi de que ela não se aplicava às posses. No período entre 1822 a 1850 a posse tornou-se a única forma de aquisição de domínio sobre as terras, ainda que apenas de fato, e é por isso que a história da apropriação territorial desse período ficou conhecido como a 'fase áurea do posse'" (SILVA, 1996, p. 81)
Com a independência do Brasil em 1889, todas as terras devolutas passaram ao domínio do Estado Brasileiro, no caso, a República Federativa, o qual dispõe de ação discriminatória para sua identificação e regularização. Atualmente, após a Constituição Federal de 1988, em regra, as terras devolutas pertencem aos Estados-membros.
Portanto, todas as terras que não sejam particulares, em tese, se houver comprovação de domínio pelo Estado, são devolutas.
No artigo 20, inciso II, a Constituição Federal assegura que são de domínio da União as seguintes terras devolutas:
Art. 20. São bens da União:
(...)
II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei;
Portanto, são da União apenas as indispensáveis à defesa das fronteiras, fortificações e construções militares, vias federais de comunicação e à preservação ambiental, sendo que as demais terras devolutas são dos Estados:
Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:
(...)
IV - as terras devolutas não compreendidas entre as da União.
No artigo 188, caput a CF assegura que há possibilidade de destinação de terras devolutas para reforma agrária:
Art. 188. A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária.
De outro giro, o artigo 225, § 5º da CF determina que as terras devolutas que protejam os ecossistemas naturais são indisponíveis:
§ 5º São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.
Neste prisma:
"[...] podemos conceituar como terras devolutas: a) as terras que não são aplicadas a algum uso público nacional, estadual ou municipal; b) as que não estavam na posse de algum particular, com ou sem título, em 1850; c) as que não estão no domínio de um particular, em virtude de um título legítimo" (BALBINO FILHO, 1982, p. 8)
Ocorre que para se verificar se uma terra é ou não devoluta, há necessidade de abertura de um processo discriminatório, que pode ser administrativo ou judicial, conforme a Lei 6.383/76, que em seus artigos 18 e 19 dispõe acerca da atribuição efetivada ao INCRA para o ajuizamento de tais ações:
Art. 18 - O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA fica investido de poderes de representação da União, para promover a discriminação judicial das terras devolutas da União.
Art. 19 - O processo discriminatório judicial será promovido:
I - quando o processo discriminatório administrativo for dispensado ou interrompido por presumida ineficácia;
II - contra aqueles que não atenderem ao edital de convocação ou à notificação (artigos 4º e 10 da presente lei); e
III - quando configurada a hipótese do art. 25 desta Lei.
Parágrafo único. Compete à Justiça Federal processar e julgar o processo discriminatório judicial regulado nesta lei (BRASIL, 1976)
Portanto, uma vez concluído o processo discriminatório, este será registrado junto à Secretaria de Patrimônio da União - SPU ou do Estado, na forma dos artigos 2º e 3º da lei 9.636/98:
Art. 2o Concluído, na forma da legislação vigente, o processo de identificação e demarcação das terras de domínio da União, a SPU lavrará, em livro próprio, com força de escritura pública, o termo competente, incorporando a área ao patrimônio da União.
Parágrafo único. O termo a que se refere este artigo, mediante certidão de inteiro teor, acompanhado de plantas e outros documentos técnicos que permitam a correta caracterização do imóvel, será registrado no Cartório de Registro de Imóveis competente.
Art. 3o A regularização dos imóveis de que trata esta Lei, junto aos órgãos municipais e aos Cartórios de Registro de Imóveis, será promovida pela SPU e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional - PGFN, com o concurso, sempre que necessário, da Caixa Econômica Federal - CEF.
Parágrafo único. Os órgãos públicos federais, estaduais e municipais e os Cartórios de Registro de Imóveis darão preferência ao atendimento dos serviços de regularização de que trata este artigo (BRASIL, 1998).
Neste viés, cabe ao Estado ou à União, se for o caso, comprovarem o domínio em terras devolutas, inclusive comprovando a nulidade dos títulos de propriedade registrados na serventia extrajudicial do Registro de Imóveis do local em que situado o imóvel.
Veja-se que a presunção da veracidade dos títulos inscritos no registro de imóveis é relativa, e não absoluta, portanto, caberá à União ou ao Estado comprovarem tal nulidade.
Importante, neste ínterim, verificar-se o artigo 1245, § 2º do CC:
Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
§ 1 o Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.
§ 2 o Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel (BRASIL, 2002)
Neste viés, diferentemente do sistema registral alemão, que traz uma presunção de veracidade absoluta, o sistema brasileiro possui presunção relativa (juris tantum) dos atos inscritos nos registros de imóveis, com exceção do registro Torrens.
Serra alude:
Já no Brasil, o registro traz em si apenas uma presunção relativa (juris tantum) de veracidade do direito real que materializa. Nesse sentido, temos o § 2º do art. 1.245, que estabelece que "enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel". Deste modo, no Brasil, se houver qualquer tipo de invalidade no título obrigacional originário do direito real, pode o prejudicado procurar a esfera jurisdicional para declarar a consequente invalidação do registro dele decorrente. Então, no sistema brasileiro, defeitos do contrato contaminam o registro, podendo gerar sua invalidação, e mesmo que o adquirente estivesse de boa-fé estaria sujeito à perda do direito real, resolvendo-se a questão para ele no âmbito indenizatório. No sistema alemão, por sua vez, a mesma situação seria resolvida de forma diversa. Aquele que tivesse inscrito o direito real com ele permaneceria, sendo o prejudicado pela invalidade existente no contrato obrigacional quem deveria se contentar com a esfera indenizatória (SERRA, 2020, p. 67)
Temos que o Superior Tribunal de Justiça há algum tempo já solidificou a temática, no sentido de que cabe ao Estado ou à União comprovarem a nulidade do título do particular, comprovando seu domínio sobre a porção de terra, seja através de documentos cartorários, seja comprovando a nulidade dos títulos existentes:
[...] 5."O registro do título translativo no cartório de imóveis não gera
presunção absoluta do direito real de propriedade, mas relativa,
vale dizer, admite prova em sentido contrário (CC/1916, art. 527;
CC/2002, art. 1.231)." REsp 466.500/RS, relatora Ministra DENISE
ARRUDA, Órgão Julgador T1 - PRIMEIRA TURMA, Data da Publicação/Fonte
DJ 03/04/2006).
6. A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o
EREsp 617.428/SP (DJe 17/06/2014), firmou o entendimento de que, "se
as terras devolutas são definidas pelo critério de exclusão, cabe ao
Estado na ação discriminatória demonstrar que a terra não se
encontra no domínio de particular, podendo fazê-lo por meio de
certidão cartorária" ou outros meios em direito permitidos (ex vi
dos arts. 333, I, e 390 do CPC/1973).
7. Relativamente à posse, concluiu o Órgão especial deste Tribunal
que "se tratar de prova negativa, de difícil ou impossível produção
pelo Poder Público", pois "corriqueiramente essa situação jurídica
não se encontra documentada ou não é levada ao conhecimento do Poder
Público" e, em observância aos preceitos da Lei n. 6.383/1976,
entendeu que a comprovação deve ser feita pelo particular ocupante.
8. Hipótese em que o Estado alegou a falsidade/nulidade dos títulos
de domínio privado registrados no cartório imobiliário em nome de
alguns dos recorrentes, competindo ao autor da demanda, nesse
aspecto, o ônus da prova do fato alegado.
9. De outro lado, cabe a quem alega a existência de sentença
transitada em julgado em que se reconhece o domínio privado fazer
tal prova, competindo também ao réu interessado em obter a
legitimação da posse a prova da ocupação lícita das terras públicas.
10. Aqueles que não possuem título hábil para buscar a propriedade,
mas detêm legitimidade para reivindicar o seu direito possessório,
notadamente se reconhecida a ocupação lícita e a existência de
benfeitorias sobre as áreas, devem ser considerados habilitados na
ação discriminatória [...]
(STJ, AREsp 888195/PI, Relator Min. Gurgel de Faria, 1ª Turma, julgado em 18.02.2020)
De outro giro, caberá ao particular a comprovação de posse lícita sobre as terras tidas como devolutas, eis que não se pode alegar usucapião sobre terras públicas, desde o Código Civil de 1916, conforme a Súmula 340 do STF:
Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião
Destarte, o próprio Supremo Tribunal Federal, ainda em 1976, já julgou que cabe ao Estado ou União comprovarem que se tratam de terras devolutas, inexistindo presunção de que terras não particulares sejam públicas:
USUCAPIAO. ALEGAÇÃO DE ESTADO MEMBRO DE QUE CABE AO USUCAPIENTE O ONUS DA PROVA DE QUE O GLEBA EM CAUSA NÃO E TERRA DEVOLUTA, NÃO BASTANDO, PARA COMPROVA-LO, O DEPOIMENTO DE TESTEMUNHAS E A EXISTÊNCIA DE INDICIOS. INEXISTE EM FAVOR DO ESTADO A PRESUNÇÃO IURISTANTUM QUE ELE PRETENDE EXTRAIR DO ART. 3 DA LEI 601, DE 18 DE SETEMBRO DE 1850. ESSE TEXTO LEGAL DEFINIU, POR EXCLUSAO, AS TERRAS PUBLICAS QUE DEVERIAM SER CONSIDERADAS DEVOLUTAS, O QUE E DIFERENTE DE DECLARAE QUE TODA GLEBA QUE NÃO SEJA PARTICULAR E PÚBLICA, HAVENDO PRESUNÇÃO IURIS TANTUM DE QUE AS TERRAS SÃO PUBLICAS. CABIA, POIS, AO ESTADO O ONUS DA PROVA DE QUE, NO CASO, SE TRATAVA DE TERRENO DEVOLUTO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO.
(STF, RE 86234, 2ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, julgado em 12.11.1976)
Ocorre em faixas de fronteiras do Brasil com outros Países, existe a Súmula 477 do Supremo Tribunal Federal:
AS CONCESSÕES DE TERRAS DEVOLUTAS SITUADAS NA FAIXA DE FRONTEIRA, FEITAS PELOS ESTADOS, AUTORIZAM, APENAS, O USO, PERMANECENDO O DOMÍNIO COM A UNIÃO, AINDA QUE SE MANTENHA INERTE OU TOLERANTE, EM RELAÇÃO AOS POSSUIDORES.
Neste vértice, em faixas de fronteira há tratamento diferenciado em relação às terras devolutas da União, ainda que tenham sido concedidas pelo Estado, contudo, ainda assim, a União precisará comprovar que se tratam de terras devolutas que estão em seu domínio, e não de terras particulares.
Resumindo: 1) o ônus de comprovação de que a terra é devoluta é da União ou do Estado-membro, mediante a respectiva ação discriminatória, inexistindo presunção de que terras que não sejam de particulares sejam devolutas; 2) o ônus de comprovação de que os documentos registrados em serventias extrajudiciais, em nome de particulares, são nulos ou anuláveis, também é da União ou dos Estados; 3) o ônus de comprovação de posse lícita é do particular, salientando que desde o Código Civil de 1916 os bens públicos, inclusive as terras devolutas (bens dominicais), não podem ser usucapidos; 4) em faixa de fronteira as terras devolutas são da União, ainda que o Estado tenha concedido o uso para particulares.
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BALBINO FILHO, Nicolau. Registro de Imóveis. São Paulo: Saraiva, 1982.
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