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ANS contraria a lei e diz que rol dos planos de saúde é taxativo

Ao editar a mais recente atualização do Rol de Procedimentos de cobertura obrigatória pelos planos de saúde, ANS extrapola suas atribuições, viola a lei e invade competências.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Atualizado às 10:39

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foi criada como órgão responsável por regulamentar e fiscalizar o mercado de planos de saúde no Brasil.

Entre suas competências, é papel da ANS "articular-se com os órgãos de defesa do consumidor visando a eficácia da proteção e defesa do consumidor de serviços privados de assistência à saúde, observado o disposto no CDC"1.

Contudo, não é o que temos observado ao longo dos últimos anos, pairando sobre a agência não raramente a sombra do corporativismo e da forte influência do lobby das operadoras2.

A mais recente mostra desta postura enviesada e marcada por interesses de ordem política/corporativa se deu com a publicação da resolução 465/213 da ANS que atualizou o rol de procedimentos dos planos de saúde.

Segundo definição da ANS, o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde consiste na lista dos "(...) procedimentos considerados indispensáveis ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento de doenças e eventos em saúde, em cumprimento ao disposto na Lei nº 9.656/98"4.

Conforme aponta a agência, a lista é "(...) definida pela ANS por meio dos sucessivos ciclos de atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, que ocorrem a cada dois anos".

Em resumo, a ANS edita periodicamente uma lista de procedimentos que passam a ser automaticamente de cobertura obrigatória pelos planos de saúde.

O peculiar desta nova resolução 465/21, no entanto, é que se por um lado houve avanços (como a incorporação de diversos fármacos e procedimentos), o texto inovou ao se enveredar a dispor sobre a natureza do rol de procedimentos e até mesmo sobre a definição de tratamentos considerados experimentais, o que evidentemente foge de suas competências legalmente previstas.

Neste sentido, dispõe o artigo 2º da Resolução 465/2021 ANS  que: "Para fins de cobertura, considera-se taxativo o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde disposto nesta RN e seus anexos, podendo as operadoras de planos de assistência à saúde oferecer cobertura maior do que a obrigatória, por sua iniciativa ou mediante expressa previsão no instrumento contratual referente ao plano privado de assistência à saúde" (destacamos).

Como se não bastasse, em seu artigo 17, I, "c", a resolução 465/21 ANS  ANS, se arvora em definir como experimental o "uso off-label de medicamentos, produtos para a saúde ou tecnologia em saúde", salvo se incorporado pelo SUS ou autorizado pela Anvisa.

No atual momento, o avanço da ANS sobre estes temas mostra-se, além de ilegal, totalmente impertinente.

Com efeito, a lei 9.961/00, que criou a ANS, em seu artigo  4º, III, dispõe ser competência da ANS "elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto na lei 9.656/98, e suas excepcionalidades" (destacamos).

Vale dizer que a Lei define o rol de procedimentos editado pela ANS como referência básica de cobertura, ou seja, a listagem de procedimentos de cobertura mínima obrigatória.

Este é o entendimento, inclusive, que predomina de forma eminentemente majoritária nos Tribunais e no STJ, notadamente em sua 3ª turma, que vem sistematicamente reiterando a posição pela natureza meramente exemplificativa do rol de procedimentos da ANS.

Vale pontuar que o tema da natureza do rol da ANS (se taxativo ou exemplificativo), encontra-se em franca discussão pelo Superior Tribunal de Justiça, em razão de precedente aberto pela 4ª turma da Corte por ocasião do julgamento do REsp 1.733.013/PR e que hoje representa posição absolutamente minoritária.

Portanto, a partir do momento em que a ANS, de forma inusual, se posiciona expressamente pela suposta taxatividade do rol, baseada em posição jurisprudencial (minoritária, reitere-se), está a assumir uma perigosa postura política/corporativa que não condiz com suas atribuições e, mais do que isso, contraria texto expresso de lei.

Quanto à classificação de tratamentos off-Label como experimentais, mais uma vez a ANS extrapola suas competências.

Isto porque compete única e exclusivamente ao Conselho Federal de Medicina (CFM), definir tratamentos como experimentais ou não5, nos termos da Lei do Ato Médico.

Além disso, ao pretender se intrometer na pertinência deste ou daquele tratamento, a ANS ultrapassa os limites de sua competência, interferindo na própria autonomia do profissional médico e com um pé na atividade reguladora da Anvisa.

Como se vê, ao expressar uma posição institucional acerca da natureza do rol, a resolução 465/21 ANS representa uma postura perigosa e ilegal adotada pela agência reguladora, que toma partido em uma discussão que não lhe compete e que está em franca discussão pelos Tribunais, apenas contribuindo para o acirramento da discussão e recrudescimento da judicialização da saúde.

Mais conveniente seria o silêncio da agência ou, se fosse o caso de assumir alguma postura, mais correto que fosse "visando a eficácia da proteção e defesa do consumidor", tal como lhe impõe a lei.

Ao se posicionar, a ANS mostra sua face. E ela não é bonita para os pacientes e usuários a quem devia proteger.

___________

1- Art. 3º, XXXVI, lei 9.961/00

2- Disponível aqui acessado em 2/3/21

3- Disponível aqui. acessado em 2/3/21

4- Disponível aqui. acessado em 2/3/21

5- Art. 7º, lei 12.842/13

Luciano Correia Bueno Brandão

Luciano Correia Bueno Brandão

Advogado com atuação exclusiva na área de Saúde. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra/Portugal (UC) e especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito (EPD). Membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/SP e da World Association for Medical Law.

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