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A atuação do Judiciário em tempos de pandemia

Uma análise das decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e de seus impactos.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Atualizado às 13:55

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

O ano de 2020 marcou a sociedade de uma forma que não era vista há quase um século, quando houve o surto da gripe espanhola. A pandemia do coronavírus causou repercussões em quase todas as áreas do saber, e o Direito não poderia ser diferente; os impactos que esta doença inesperada trouxe para o ordenamento jurídico foram tremendos. Neste sentido, trataremos neste artigo da análise da atuação do Judiciário, por meio de algumas das decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro neste contexto pandêmico, frente ao Princípio da Separação dos Poderes e as competências próprias de cada Poder. 

Muito embora assuntos de saúde pública e estratégias de combate à pandemia não sejam, a rigor, da competência decisória do Poder Judiciário, é incontestável a consolidação de uma atuação mais proativa de seus órgãos, os quais, sob o pretexto de exercer sua função judicante, têm produzido, cada vez mais, decisões que impactam diretamente a atuação do Executivo e do Legislativo ou, de forma mais alarmante, que poderiam e deveriam ter sido tomadas por eles - em um fenômeno que vem sendo denominado de ativismo judicial. 

Em que pese essa nova abordagem jurídica, importada do common law, esteja sendo amplamente criticada sob a justificativa de que feriria a separação entre os poderes inerente ao Estado Democrático de Direito e reduziria a soberania popular calcada na escolha dos seus representantes eleitos para governar, também existem diversos aspectos a seu favor que devem ser evidenciados e levados em consideração. Dentre eles, é possível mencionar que o caráter abstrato dos direitos assegurados em nossa Constituição, somado ao papel que a mesma também atribui ao órgão, corrobora com o entendimento de que ele deve atuar diante de eventual inércia. Não por outro motivo, a dignidade da pessoa humana foi elevada à condição de princípio basilar, norteando todo o ordenamento constitucional, em artigo que, topograficamente, antecede a própria separação de poderes.

Outro ponto que corrobora com o supramencionado entendimento diz respeito ao próprio princípio da vedação ao retrocesso, que possui uma de suas faces no art. 60, §4º, inciso IV da Constituição Federal, segundo o qual não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias fundamentais. Nesta linha, é nítido o anseio da Carta Magna pela ampliação e evolução constante dos direitos de todos os seus cidadãos.

Importante frisar também que, considerando os ideais conservadores ainda muito presentes no Brasil e refletidos na composição parlamentar, o Judiciário acabou assumindo a responsabilidade de levar adiante pautas mais polêmicas, que são diversas vezes sendo deixadas de lado nos debates políticos, impedindo que os grupos minoritários da população se sintam contemplados e possam obter seus direitos. Nesse sentido, a atuação transversa do Judiciário é uma maneira de assegurar a igualdade material que, para essa parte da população, nunca seria obtida no plenário do Congresso. 

Todavia, é irrefutável que a liberdade conferida pelo ativismo judicial pode reverberar em decisões arbitrárias que estão muito aquém dos intuitos do ordenamento jurídico. Por conseguinte, o ideal é que a doutrina e a jurisprudência atuem em conjunto com a finalidade de fixação de alguns limites à ingerência do judiciário nas deliberações de outros poderes, conferindo assim maior segurança jurídica a toda população.

Perpassado essas considerações iniciais e adentrando o objeto de análise do presente artigo, urge sinalizar que, seja nas instâncias comuns ou nas superiores, houve um movimento para garantir que as medidas de segurança e de combate à quarentena fossem seguidas, bem como que o tratamento fosse providenciado à população. Nas palavras do ministro Dias Toffoli, o Judiciário atua de forma a pacificar "os conflitos oriundos da emergência sanitária" e garantir "o mínimo de previsibilidade, confiança e estabilidade".

Inicialmente, importante mencionar a decisão do Supremo Tribunal Federal no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.341, dispondo que a competência legislativa sobre medidas de isolamento deve respeitar a autonomia dos entes federativos. Desta forma, o órgão de cúpula conferiu aos Estados e Municípios o poder de decidir sobre a adoção de medidas de combate à pandemia, de forma concorrente ao Legislativo Federal, permitindo que cada região possa decidir sobre quais são as medidas mais adequadas ao momento de combate ao coronavírus no qual se encontra. 

Outra importante decisão da Suprema Corte Pátria é aquela que diz respeito à vacinação obrigatória. A lei 13.979/20, por vezes chamada de Lei Nacional da Quarentena, traz a previsão, em seu art. 3º, inciso I, alínea "d", que as autoridades públicas podem adotar medidas de vacinação2 para combater a disseminação da pandemia. Neste âmbito, foi levada ao Supremo Tribunal Federal a questão de esta vacina contra o coronavírus ser obrigatória ou não. 

No julgamento conjunto das ações diretas de inconstitucionalidade 6.586 e 6.587 e do recurso extraordinário 1.267.879, os ministros firmaram a tese de que não há qualquer óbice constitucional a esta situação. Inclusive, o direito à saúde, tanto no âmbito individual como no coletivo, seria parte fundamental do porquê da vacinação compulsória. O ministro Luís Roberto Barroso consignou que "caracteriza como ilegítimo que, em nome de um direito individual, frustre-se o direito da coletividade."3

Não obstante o Supremo Tribunal Federal tenha se sobressaído como precursor do ativismo judicial no Estado Brasileiro, as instâncias inferiores não estão imunes a isso. Em âmbito local, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro também tem adotado algumas posturas polêmicas no âmbito acadêmico, sobretudo durante a pandemia do coronavírus. Dentre elas, destacamos a suspensão da execução de nº 0036361-16.2020.8.19.0000, bem como as decisões de 1ª instância nos processos de 0014993-82.2020.8.19.0021 e 0016635-90.2020.19.8.0021 e de 2º instância no agravo de instrumento de 0032981-82.2020.8.19.0000. 

No caso do agravo de instrumento 0032981-82.2020.8.19.0000, o Tribunal, ao analisar o caso, decidiu pela impossibilidade do Município de Duque de Caxias deixar aplicar ou relaxar as medidas de distanciamento social e de combate a pandemia, frente à piora dos números da pandemia na localidade. Mesmo reconhecendo que a atribuição de controle das políticas públicas pertence ao Poder Executivo, na decisão foi suscitado que se trata de situação excepcional, justificável pela crise do sistema de saúde. Foi determinada, ainda, a implementação de leitos hospitalares públicos, com base na necessidade apresentada pela população. 

O relator justifica a possibilidade de intervenção refletindo que "não obstante a Constituição tenha assegurado o direito à saúde, muitas vezes esse direito não é concretizado de forma efetiva, seja por precariedade do sistema, por falta de recursos, de profissionais habilitados ou mesmo outros motivos." Pode-se depreender que, portanto, o desembargador considera que a intervenção do Judiciário é válida desde que seja necessária, frente à inatividade ou incapacidade do Executivo de realizar as medidas devidas. 

Apesar das ingerências supramencionadas, impende asseverar que em diversos momentos durante a pandemia o até então presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, desembargador Claudio de Mello Tavares, ponderou pela impossibilidade da atuação do judiciário. Em decisão datada em novembro de 2020, nos autos do processo 0082838-97.2020.8.19.00004, o desembargador acatou o pedido apresentado pelo município de Niterói em face de decisão proferida nos autos de ação civil pública (Processo 0051880-25.2020.8.19.0002), com a consequente suspensão de uma decisão de 1ª instância que havia determinado o retorno às aulas em Niterói. Em sua fundamentação, asseverou o Presidente do TJ/RJ que:

"Em um Estado Democrático de Direito, a atuação do Poder Judiciário deve respeitar os limites impostos pela Constituição e pelas demais leis do país. A sociedade precisa de tranquilidade e segurança jurídica. Cumpre ao Poder Judiciário, com serenidade e responsabilidade, se desincumbir desse mister. A preocupação com saúde, educação e segurança incumbe ao Estado, cujas políticas nacionais estão a cargo do Estado-Administrador (Poder Executivo). Não cabe ao Estado-Juiz (Poder Judiciário) a elaboração de políticas públicas nessas áreas, menos ainda atuar como ordenador de despesas. (...) o controle judicial de políticas públicas constitui medida de caráter excepcional em prestígio ao princípio da separação dos poderes. O que prevalece é o respeito aos critérios utilizados pelo Poder Executivo, a quem cabe definir seus planos de ação no combate à pandemia, porquanto promanados de governantes escolhidos pelo povo, que é o titular originário do poder, e que legitima o atuar político da Administração Pública (...)."

Segundo o excelentíssimo desembargador, portanto, a intervenção do judiciário encontraria restrições na presença de análise técnica acerca das condutas adotadas pelo executivo. Em outras palavras, entende que o judiciário é incapaz de adotar um papel protagonista e intervir no mérito das decisões tomadas pelos Estados e Municípios, sobretudo se estas estiveram baseadas em pareceres de órgãos especializados competentes, haja vista que não foi esse o papel que lhe foi designado pelo constituinte originário e considerando que não possui a devida expertise e legitimidade para definir quais as melhores condutas a serem adotadas durante o período de pandemia.

Portanto, embora o ativismo judicial possa servir de atalho para a concretização de direitos sociais que comumente são negligenciados pelos demais órgãos, entende o desembargador que os juízes devem encontrar limites na própria Carta Magna a qual procuram efetivar. Sob esse viés, embora a judicialização e a pressão por parte da população de uma postura proativa do judiciário tenha se acirrado durante a pandemia, o jurista deve buscar se despir dos seus medos, abandonar suas opiniões pessoais e atuar com a devida imparcialidade exigida pela carreira da magistratura.  

Compartilham desse entendimento o  ministro Gilmar Mendes e Georges Abboud, para os quais o ativismo judicial seria "um atalho pernicioso para fazer valer um determinado ponto de vista político, sem que se percorra o imprevisível e necessário caminho do dissenso."5

Assim sendo, restou demonstrado como a admissibilidade do ativismo judicial ainda é bastante controvertida na própria jurisprudência pátria. Da mesma forma, é possível ponderar que todos os aspectos positivos e negativos do fenômeno que foram elencados nas decisões acima são pertinentes, motivo pelo qual essa discussão é infinitamente mais complexa do que inicialmente aparenta ser. 

Entretanto, no caso da pandemia do Coronavírus, parece-nos que o clamor público pela diminuição no número de mortes dá azo à aceitabilidade do ativismo judicial. Afinal, a negligência por parte do Executivo é, sob outro viés, a do próprio Estado Democrático de Direito, sendo que esse sistema institucional adotado se encontra limitado pelos direitos dos cidadãos que pretende assegurar, dentre os quais temos o direito à vida e à saúde.

Desse modo, sob a perspectiva de que medidas que venham a frear a contenção da Sars-CoV-2 são atentatórias ao direito à vida, correlato à dignidade da pessoa humana que norteia nosso ordenamento, entendemos que a atuação proativa judiciária se faz necessária para assegurar à população a garantia dos seus direitos. 

Esse entendimento também se justifica pelo fato de que, além de ser o terceiro maior país em número de mortos no mundo, o Brasil é a nação que conta com a pior gestão da pandemia, entre noventa e oito dos países analisados em um estudo conduzido pelo Lowy Institute publicado em 28 de janeiro de 20216.

Portanto, a alegação de Separação de Poderes é medíocre em comparação à necessidade de conter a violação indireta a um dos mais basilares direitos fundamentais. Ainda, mesmo que fosse meritória, os três poderes não podem ser enxergados como absolutamente independentes, eis que, em verdade, há uma harmonia entre eles que se perfaz essencial para a concretização dos ideais constitucionais.

No entanto, em concordância com algumas das ponderações do brilhantíssimo desembargador Claudio de Mello Tavares, entendemos que o ativismo judicial, sobretudo nos casos de pandemia, encontra seus limites na esfera técnica. Em outras palavras, é de se reconhecer que o judiciário não tem a legitimidade ou conhecimentos necessários para substituir decisões executivas devidamente embasadas em laudos emitidos por órgãos técnicos respeitáveis. Por conseguinte, pela própria lógica da fundamentação de suas decisões, ele apenas deve ter maior ingerência quanto às decisões que nitidamente contrastam as análises dos profissionais e órgãos de saúde. 

Conclui-se, assim, que o ativismo judicial, embora dotado de aspectos positivos e negativos, é uma ferramenta que pode e deve ser empregada pelo Poder Judiciário, sobretudo durante esse momento de crise na saúde pública que estamos vivenciando, em que há maior necessidade de atuação conjunta dos poderes para salvaguardar a sociedade brasileira. No entanto, é de se fixar que esse fenômeno jurídico deve ser empregado com a devida cautela e apreço pelos laudos especializados, a fim de que não sejam cometidas arbitrariedades injustificadas, mas apenas proteção à saúde e bem-estar da população.

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1 Poder Judiciário e segurança jurídica em tempos de pandemia.

2 Disponível em clique aqui. Acesso em 25/1/20.

3 Vacinação obrigatória é constitucional. Acesso em 25/1/20.

4 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Agravo Interno 0082838-97.2020.8.19.0000. Relator Desembargador Claudio de Mello Tavares. Julgado em 25/11/20.

5 MENDES, Gilmar. ABBOUD, Georges. Ativismo Judicial: Notas Introdutórias a uma Polêmica Contemporânea. Revista dos Tribunais. Volume 1008/2019. P. 43-54.

6 Disponível em interactives.lowyinstitute.org/features/covid-performance/#rankings. Acesso em 29/01/2020.

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Maria Eduarda Figueira Borges

Maria Eduarda Figueira Borges

Advogada, pós-graduanda da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Lucas Cavalcanti de Albuquerque Prado

Lucas Cavalcanti de Albuquerque Prado

Advogado, pós-graduando da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) e Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

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