O desalinhamento entre o item "c" do TCC do gás e o art. 5º do PL 4.476/21
A inserção de cláusula tão restritiva no edital para a aquisição dos ativos da Petrobrás não encontra sustentação nem no direito econômico nem na interpretação antitruste.
quarta-feira, 3 de março de 2021
Atualizado em 8 de março de 2021 15:21
A alínea "c" do item 5.1. do TCC do gás, que trata do desinvestimento dos ativos de gás da Petrobrás no gasoduto Brasil Bolívia (GásBol), encontra-se em desalinho com o artigo 5º do PL 4.476/21, que dará origem, quando aprovado, a nova lei do gás.
A alínea "c" do item 5.1. do TCC do gás dispõe que somente serão pretendentes aos ativos da Petrobrás as empresas que apresentarem "independência em relação aos agentes que compõe os demais elos da cadeia do gás natural, não possuindo, direta ou indiretamente, participação societária desses agentes (considerando-se a situação após o desinvestimento)".
De outro lado, o §1º do artigo 5º do PL 4.476/21 dispõe que "[é] vedada relação societária direta ou indireta de controle ou de coligação, nos termos da lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, entre transportadores e empresas ou consórcio de empresas que atuem ou exerçam funções nas atividades de exploração, desenvolvimento, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural."
O item que compõe o documento do CADE é mais restritivo que o disposto no §1º do artigo 5º da futura lei do gás, na medida em que não permite que empresas que tenham participação societária em outras empresas dos demais elos da cadeia produtiva do gás natural, independentemente de possuírem ou não controle, se habilitem ao certame para concorrer aos ativos da Petrobrás, enquanto que o PL do gás somente veda a participação de empresas de outros elos da cadeia produtiva acima do percentual de 20%, conforme a Lei das S.As, além de não deterem controle societário.
Tanto o quanto expresso no TCC do gás quanto o disposto no artigo 5º da nova lei do gás representam intervenções do Estado na atividade produtiva privada. A intervenção, via nova lei do gás, tem como fundamento o fato de que estão presentes os incentivos para o abuso de posição dominante quando a integração vertical entre os demais elos da cadeia e o elo do transporte envolver controle acionário em um ou mais elos.
De fato, o elo do transporte, que é o elo da indústria de gás onde reside o monopólio natural (essential facility), pode ser utilizado para elevar os custos dos rivais se a empresa for acionista parcial ou total da empresa de transporte e, também controladora, por exemplo, dos elos de produção, comercialização e carregamento.
Entretanto, o disposto no art. 5º da nova lei do gás permite, em consonância com a lei 6.404/76, que as empresas que detêm participação acionária na empresa de transporte de gás também tenham participação nas empresas dos demais elos da cadeia, desde que esse percentual não ultrapasse os 20% e não garanta qualquer assento nos Conselhos das empresas.
Diferentemente da razoabilidade apresentada no art. 5º da nova lei do gás, o disposto na alínea "c" do item 5.1. não apresenta qualquer argumento antitruste para a sua imposição e representa, antes de tudo, uma intervenção no domínio econômico com clara afronta ao fundamento da livre iniciativa e ao princípio da livre concorrência insculpidos no art. 170 da CF.
Com esse dispositivo o CADE está interpretando a integração vertical como se um ilícito per se fosse, desconsiderando toda uma literatura econômica e de defesa da concorrência que sustenta que a integração vertical é, em geral, uma fonte de eficiências para as empresas e para a economia e que a identificação de comportamento anticoncorrencial deve, antes de tudo, ser realizado por meio regra da razão, com análise acurada das condições de rivalidade e de entrada do mercado, por exemplo.
Na prática, o CADE exorbita a sua competência e passa a praticar um verdadeiro abuso de poder regulatório, conforme previsto no inciso II do art. 4º da lei de Liberdade Econômica, que postula que é dever da administração pública e das demais entidades evitar o abuso do poder regulatório por meio, por exemplo, da redação de enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado.
Dizer que os ativos não poderão ser alienados para empresas que tenham participação societária em outras empresas do elo da cadeia produtiva do gás sem uma análise prévia do verdadeiro impacto concorrencial, é redigir enunciado que impede o ingresso de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado e, portanto, trata-se de um abuso de poder regulatório.
Ademais, a conduta do CADE fere o artigo 10 da sua própria Resolução 2/2012, que postula que toda e qualquer empresa pode submeter operação de aquisição acionária mesmo quando está presente integração vertical e/ou sobreposição horizontal, cabendo ao órgão de defesa da concorrência aprovar total ou parcialmente ou reprovar.
A inserção de cláusula tão restritiva no edital para a aquisição dos ativos da Petrobrás não encontra sustentação nem no direito econômico nem na interpretação antitruste. Na verdade, essa restrição traz prejuízos incomensuráveis para a concorrência pelo mercado de gás, uma vez que impede o ingresso de empresas reconhecidamente eficientes e que, com ou sem posição dominante, possam ser devidamente contestadas tanto pelo CADE quanto por meio da regulação da ANP.
Ana Gabriela Kurtz
Advogada. Pós-graduação em Arbitragem Comercial e Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, PUC-RIO (em curso). Curso em Direito Societário Americano e M&A em Direito Societário, Universidade Vanderbilt, Instituto Internacional de Ciências Sociais - CEU, São Paulo, SP (2016) Pós-Graduação em Propriedade Intelectual, Fundação Getúlio Vargas - FGV (2004). LL.M. em Direito Empresarial, IBMEC (2002).