Petrobrás - Empresa de capital aberto?
A pergunta que não quer se calar.
terça-feira, 2 de março de 2021
Atualizado às 10:33
Em 2017 escrevi um artigo que levava o título acima.
À época o assunto dizia respeito à situação relativo ao direito dos acionistas minoritários a passarem a ter direito a voto após a empresa ficar três anos sem pagar dividendos.
Na mesma época escrevi outro artigo que discutia a questão do controle de preços de combustíveis de modo a conter a inflação.
Em ambos os casos o que se debatia é que a interferência da União na gestão da Petrobrás tornava o seu posicionamento enquanto empresa de capital aberto totalmente contraditório com o sistema de operação de empresas dessa natureza.
Passados quatro anos o assunto volta às manchetes, agora com a decisão da União, por seu Presidente, em impor a substituição da presidência da empresa, o que deflagrou uma forte baixa na cotação das ações da companhia, reduzindo seu valor de mercado em bilhões de dólares e, de quebra, arrastando outras sociedades de economia mista como o Banco do Brasil e a Eletrobrás para o mesmo tipo de perdas.
Em todas essas situações um dos argumentos usados é o de que essa interferência seria possível na medida em que a Petrobrás tem um dever social a cumprir, o que foi até mesmo apontado por advogados (vide Estadão, 23/3/21. B2, coluna do Broadcast, "Genéricos").
Dito tudo isso, tenho que há uma total incompatibilidade jurídica no fato de a Petrobrás ser empresa de capital aberto, mas ao mesmo tempo ficar continuamente sujeita à interferência efetiva da União em seus negócios, tomando a empresa como um braço do governo.
De fato, as observações críticas que fiz nos dois trabalhos acima referidos permanecem inalteradas e merecem ser retomadas:
"a) é compatível com a matriz legal brasileira uma sociedade anônima de capital aberto com as características estruturais da Petrobras?
A legislação que instituiu o monopólio da União não previu que ao ter seu capital aberto estaria a Petrobras isenta de atender às regras da lei das S.A., muito menos havia previsão de que suas ações preferenciais seriam de um novo tipo jurídico, isto é, que jamais adquiririam direito a voto em razão do monopólio.
Não parece ser possível, a partir do ordenamento jurídico conciliar a obrigação de a Petrobras ter que atuar como uma empresa privada e ao mesmo tempo estar sob controle da União, isto porque esse controle não permite que: (i) a função social da Petrobras possa ser a de fazer política econômica pública; (ii) o interesse público que existe na Petrobras inclua ser ela instrumento de política econômica (ser regulador da inflação); (iii) o interesse público da Petrobras seja outro que não o de assegurar o adequado investimento no setor energético no qual ela atua, fomentando desenvolvimento, gerando receitas etc.; (iv) a Petrobras possa ser usada como instrumento político; e (iv) a observância dos princípios que impedem a ocorrência de conflito de interesses, sob pena de gerar responsabilidades para o controlador e até mesmo impedir que os Conselheiros por ele eleitos possam deliberar qualquer matéria que possa incorporar tal conflito.
Uma sociedade de economia mista como a Petrobras é algo que nunca deveria existir, sobretudo quando a sua atividade é baseada no exercício de um monopólio da União sobre determinadas riquezas (o petróleo e o gás). As contradições são insuperáveis, a saber, dentre várias:
a) a União, enquanto agente público, pode realizar políticas públicas, como por exemplo, a condução da economia, a intervenção no câmbio, a definição da matriz energética, as formas de fiscalização da atuação dos setores privados etc. No entanto, a Constituição define que a União só pode exercer diretamente a atividade econômica quando necessário à segurança nacional ou relevante interesse coletivo;
b) como há monopólio sobre o petróleo e o gás, como conciliar o interesse coletivo na exploração dessas riquezas num regime de livre competição?
c) como regular os preços a serem praticados com essas riquezas que são commodities internacionais, isto em razão do seu impacto sobre o custo de vida, a inflação que "aterroriza" o consumidor, e ao mesmo tempo permitir que isso se faça dentro de regras privadas que impelem à maximização do valor e a geração do lucro?
d) como há o monopólio, a exploração do petróleo exige o contínuo fluxo de investimentos, mas como ela se faz via Petrobras, não é possível que isso se dê apenas por capitalização ou por endividamento, mas pela segurança de receitas compatíveis com as necessidades de recursos. Como conciliar isso - essa necessidade por fluxos regulares e adequados de receitas, compatíveis com as regras do mercado privado - se os preços da gasolina não podem subir por causa da inflação? e
e) pode a Petrobras ficar presa ao seu crescente endividamento, já que a chamada de capital nem sempre é possível e sempre depende de uma ginástica porque a União não pode perder o controle societário?
Em outras palavras, seja pelo prisma jurídico, seja pelo prisma macroeconômico, o que se está fazendo não fecha e gera lesão ao direito societário o que deve ser esclarecido, inclusive pela CVM, sob pena de esta não cumprir seu papel de xerife do mercado de ações, cuja obrigação é zelar pela Lei e não por defender a União, ainda que dela seja autarquia. (comentários feitos relativos à questão do direito de voto)
14. Aberrações
Uma sociedade de economia mista como a Petrobras é algo que nunca deveria existir, sobretudo quando a sua atividade é baseada no exercício de um monopólio da União sobre determinadas riquezas (o petróleo e o gás). As contradições são insuperáveis, a saber:
a) a União, enquanto agente público, pode realizar políticas públicas, como por exemplo, a condução da economia, a intervenção no câmbio, a definição da matriz energética, as formas de fiscalização da atuação dos setores privados etc. No entanto, a Constituição define que a União só pode exercer diretamente a atividade econômica quando necessário à segurança nacional ou relevante interesse coletivo;
b) como há monopólio sobre o petróleo e o gás, como conciliar o interesse coletivo na exploração dessas riquezas num regime de livre competição?
c) como regular os preços a serem praticados com essas riquezas que são commodities internacionais, isto em razão do seu impacto sobre o custo de vida, a inflação que "aterroriza" o consumidor, e ao mesmo tempo permitir que isso se faça dentro de regras privadas que impelem à maximização do valor e a geração do lucro?
d) como há o monopólio, a exploração do petróleo exige o contínuo fluxo de investimentos, mas como ela se faz via Petrobras, não é possível que isso se dê apenas por capitalização ou por endividamento, mas pela segurança de receitas compatíveis com as necessidades de recursos. Como conciliar isso - essa necessidade por fluxos regulares e adequados de receitas, compatíveis com as regras do mercado privado - se os preços da gasolina não podem subir por causa da inflação?
e) pode a Petrobras ficar presa ao seu crescente endividamento, já que a chamada de capital nem sempre é possível e sempre depende de uma ginástica porque a União não pode perder o controle societário?
f) como conciliar, também, a necessidade crescente da União de receber juros sobre capital próprio e dividendos, drenando caixa da empresa, porque a União precisa assegurar o déficit primário?
g) que política pública está sendo feita estrangula a capacidade de investimento da empresa que, por força legal, tem o monopólio da exploração do petróleo, mas (i) a União já negociou boa parte do pré-sal (grande parte da produção já está comprometida, ainda que não saiba qual o preço terá que pagar por ele - e, curiosamente, é possível que o preço futuro seja menor do que o gasto pela Petrobras para produzir esse óleo [base dessa afirmação: redução prevista do uso de óleo pela maior produção de óleo a partir de xisto, energia eólica, energia termal, biocombustíveis de diversos matizes, o que deverá gerar aumento da oferta dos países exportadores]); (ii) quer se conter a inflação e ao mesmo tempo quer-se que a companhia pague dividendos cada vez maiores em razão de necessidade de caixa da União, levando até mesmo à adoção de práticas contábeis polêmicas (a contabilização do hedge) e outras medidas fortemente criticáveis em face das boas práticas financeiras e contábeis, uma vez que impedem a transparência das demonstrações financeiras (veja que, neste caso, há, ainda, um "subproduto": como a Petrobras faz, todos vão fazer e, assim, por efeito cascata, o mercado de ações será negativamente afetado, por melhores que sejam as regras de governança corporativa etc., "subproduto" esse pouco debatido, em que pesem os casos Suzano, Votorantim, Sadia e outras)?; e
h) para complicar, o que foi a Petrobras em sua constituição já não é mais a Petrobras de hoje, muito embora o que se queira dela é que haja como a Petrobras do início ("o petróleo é nosso"), em suma, como definir, pelas regras de hoje, um bicho que foi criado na década de 40 do século passado?
Em outras palavras, seja pelo prisma jurídico, seja pelo prisma macroeconômico, o que se está fazendo não fecha e, com isso, o prejuízo que está sendo gerado (basicamente a perda do valor para os acionistas diretos e indiretos - fundos -) impõe a responsabilização: (a) dos Administradores, a menos que eles: (i) deixem expresso a sua discordância com o que ocorre (o que, no caso do Conselho de Administração é impossível uma vez que seis dos nove membros são indicados pela União); e (ii) que eles tomem, enquanto Administradores, as medidas que um administrador prudente tomaria a partir de um "reasonable business judgement", e que seria o de questionar na Justiça essa estatização da Petrobras, tendo-a como submetida a uma intervenção de fato para que seja instrumento de política econômica em contrariedade ao seu objeto social, à Lei e à Constituição (os Administradores devem defender o interesse da sociedade que administram, livres de pressões do controlador e independentemente de conflitos de interesses); e (b) do controlador da empresa, a União, o que depende não mais de debates políticos ou econômicos, mas que o Poder Judiciário diga quais são os limites para que política pública seja feita via sociedades de economia mista, definindo, assim, qual é o limite do Estado.
15. Dúvidas finais
Dito tudo isso, surgem dúvidas finais: (i) o Poder Judiciário brasileiro de hoje está preparado para analisar essa questão? (ii) o Poder Judiciário, sobretudo o Supremo Tribunal Federal, por sua composição atual, tem visão socializante que pode levar à formulação de argumentos para validar o que está sendo feito?; (iii) em isto ocorrendo, os conceitos do que sejam interesse público, iniciativa privada e limites da exploração direta da economia pelo Estado não ficarão seriamente comprometidos; e (iv) e se o caso for levado a Cortes internacionais (públicas ou arbitrais), qual será o resultado disso para a credibilidade do país?."
(comentários feitos relativas ao tema controle de preços).
Enfim, sob pena de continuarmos a discutir a anomalia jurídica que é ser a Petrobrás uma empresa de capital aberto, mas ao mesmo tempo devendo atuar como braço de políticas governamentais, é necessário que o assunto seja analisado em todo o seu contexto mais abrangente e que inclui, sobretudo, a questão do monopólio da exploração do petróleo, a partir do qual se origina todo o problema, pois toda a cadeia econômica ligada aos combustíveis acaba ficando atrelada ao exercício desse monopólio por um acionista controlador que não pode seguir as regras de mercado.