Por uma nova arquitetura tributária
Que tal abolir a taxação da moradia (hoje atingida pelo IPTU) e começar a taxação de aeronaves e embarcações, até hoje isentas? Que tal uma análise sobre a tributação diferenciada de fundos exclusivos, onde está maior parte das grandes fortunas?
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021
Atualizado às 07:45
Muito vem se discutindo sobre a necessidade de uma reforma tributária no país, havendo consenso sobre a necessidade de mudanças, mas muita controvérsia sobre quais sejam as mudanças necessárias.
O fato é que, ao contrário do que sustentam alguns, a reforma, se aprovada sem a devida análise, poderá provocar uma gritante ampliação da desigualdade econômica no Brasil. Sim, é possível piorar o que já é ruim.
O ordenamento jurídico possui evidente relação com a estrutura social configurada; nesse sentido, a forma pela qual o sistema tributário opera contribui sobremaneira para o estabelecimento de uma diretriz de encaminhamento (ou redistribuição) de riquezas. No Brasil e no mundo a situação da desigualdade econômica impõem a adoção de medidas tributárias capazes de reduzir a distanciamento excessivo entre as classes, que vem piorando, como mostram os dados, sobretudo neste cenário pós-pandemia.
Analisando a economia global, por exemplo, verifica-se que menos de 1% da população possui mais de 45% da riqueza do planeta. No tocante ao consumo, tem-se que "os 20% mais ricos da população mundial consomem 90% dos bens produzidos, enquanto os 20% mais pobres consomem 1%", conforme Bauman já havia alertado.
Thomas Piketty, em seu afamado estudo, indica que no ano de 2010, nos Estados Unidos, os 10% mais ricos possuíam 70% do capital total do país. Na outra ponta, metade da população (50% mais pobres) detinha apenas 5% do capital. Já na pesquisa mais recente, a metade inferior tinha apenas 2%, indicando acentuação dos níveis de desigualdade. Elizabeth Warren demonstrou que a partir de 1980 o crescimento das novas rendas vai todo para os 10% mais ricos, o que certamente não é fenômeno exclusivo dos EUA.
O quadro brasileiro é de uma brutalidade ainda maior: os seis brasileiros mais ricos possuem o patrimônio equivalente ao da metade da população mais pobre. A proporção 6:100.000.000 é brutalmente assustadora.
Mas e como a reforma pode piorar este cenário? Simples: a proposta de criação de uma alíquota única ("flat") para os diversos tipos de bens e serviços impõe uma taxação que é proporcionalmente muito mais onerosa à parcela de menor renda. Como justificar que um perfume tenha a mesma alíquota de um saco de feijão? Por haver a mesma alíquota, não se tributa pela capacidade contributiva real do consumidor, tampouco pela essencialidade do produto (caráter extrafiscal da tributação, que se perde). O mesmo raciocínio aplica-se a ideia de reinserção de uma CPMF, com nova roupagem e maior alíquota. A quem esta lógica de tributação "flat" (portanto regressiva) interessa?
O foco de uma reforma tributária responsável deve estar na construção de um parâmetro mais justo de tributação: maior participação dos ricos e menor participação dos pobres - justamente o contrário do que se vê na atual discussão.
Nesse sentido, ponto fulcral de uma reforma adequada seria a forte redução da tributação sobre o consumo e sobre a renda do trabalho, com redistribuição da carga tributária para a tributação do patrimônio e das rendas do capital, o que por certo contribuiria para a construção de uma sistemática tributária mais justa. O insuspeito Adam Smith já advertia que "a renda da terra e os lucros do capital são, em todo lugar, as fontes principais das quais as mãos improdutivas derivam sua subsistência".
Ainda, atenção deve ser dada à tributação da herança, visto que o principal mecanismo potencialmente eficaz para minoração dos níveis de desigualdade a longo prazo atinge necessariamente a transmissão intergeracional da riqueza familiar. O que justifica que alguém pague 27,5% de imposto de renda pelo dinheiro que recebe do trabalho e algo entre 4 e 8% pelo que ganha de herança? Uma alternativa, a propósito, seria a abolição da tributação sobre a herança, bastando, para isso, que o ganho patrimonial advindo da herança seja tributado como o restante da renda: herança passaria a ser renda tributável pelo IRPF, submetendo-se à sua tabela de progressividade.
A propósito, que tal abolir a taxação da moradia (hoje atingida pelo IPTU) e começar a taxação de aeronaves e embarcações, até hoje isentas? Que tal uma análise sobre a tributação diferenciada de fundos exclusivos, onde está maior parte das grandes fortunas?