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A legalidade na venda de ingressos online no Brasil e no mundo

Breves comentários jurídicos após as recentes decisões do STJ.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Atualizado às 10:06

Não só no Brasil, mas em diversos outros países, a venda online de ingressos para eventos culturais contém o valor do ingresso, seus impostos e a taxa de intermediação dos portais que realizam a comercialização dos eventos, chamada em nossas terras de taxa de conveniência. O termo, introduzido há mais de duas décadas no país, originário dos EUA e Europa, representa a comissão dos portais de vendas de ingressos. 

Esse valor adicional foi adotado na venda de ingressos online com o intuito de garantir a remuneração pelos serviços prestados aos consumidores pelas empresas que realizam a venda dos ingressos, as quais não se confundem com as que produzem e promovem os espetáculos. A sua legalidade, contudo, é questionada no Brasil, ainda que, em análise mais detida, haja diversos modelos de negócios similares na economia digital do país. Na verdade, o pioneirismo do modelo de negócios para a venda de ingressos se tornou o padrão na economia digital não só no Brasil, mas em todo o mundo civilizado. 

O cenário envolvendo a compra de ingressos para os mais diversos tipos de eventos culturais (teatros, cinemas, museus, shows e tantos outros) usualmente se divide entre a aquisição dos ingressos presencialmente na bilheteria do evento ou através da aquisição em portais e websites na Internet. A polêmica que aqui se comenta se dá no ambiente online, já que neste há a cobrança da taxa de conveniência, ocasionando um acréscimo no valor do ingresso, diferente do que ocorre na aquisição presencial. 

É necessário considerar, antes de mais nada, a imensa estrutura por trás dos portais de venda de ingressos, tanto para atender a altíssima demanda por ingressos nos grandes eventos, como para impedir os diversos tipos de fraudes, garantindo que cada ingresso vendido esteja de acordo com a capacidade de segurança na ocupação dos locais dos eventos, impedindo sua superlotação. Mas não só isto. A venda online propicia a todos os consumidores uma enorme economia de tempo - principalmente na relação entre tempo dispendido e distância física das grandes cidades - e por isto há todo um esforço para que as ofertas online sejam as mais fluidas possíveis, ofertando opções de ingressos nos mais variados preços, desde os mais populares aos mais exclusivos.

Após 20 anos da internet comercial no Brasil, a movimentação dos portais de venda de ingressos na economia é extremamente relevante. Atualmente há cerca de 330 empresas diretamente envolvidas na venda de ingressos online no Brasil, as quais comercializavam - até a pandemia - eventos de grande porte, como shows e exibições em cinemas, até eventos menores ligados à educação, prática de esportes, empreendedorismo e outros temas. Atualmente é possível afirmar que quase a totalidade dos eventos realizados no país em áreas urbanas são comercializados de alguma maneira em ambientes online, haja vista a popularização da internet no país. Com a pandemia de COVID-19, a venda online passou a ser essencial para a aquisição de eventos realizados no ambiente virtual da internet. Especialistas já preveem que este é um movimento sem volta, um mundo no qual o entretenimento online será a principal forma de entretenimento na vida em sociedade.

A existência da taxa de conveniência se justifica, portanto na economia de tempo dos consumidores, que podem evitar os longos deslocamentos até os pontos de venda físicos dos ingressos; na transparência na formação de custos; na correta tributação de cada entre da cadeia de serviços e na manutenção da evolução tecnológica e do atendimento aos clientes.

Igualmente, essa ferramenta proporciona uma economia de escala bastante expressiva, ao permitir a especialização de atividades no setor cultural, garantindo que produtores culturais ou organizadores de eventos não tenham que arcar com os custos de aquisição, instalação, treinamento e operação de plataformas de comercialização de ingressos por si próprios; na alocação de investimento em ferramentas de proteção contra fraudes e o atendimento e adequação as novas normas (como a Lei Geral de Proteção de Dados, por exemplo), estando tais obrigações atreladas diretamente com os serviços das empresas responsáveis pela venda de ingressos online, remuneradas pelas taxas de conveniência.

É importante destacar que, longe de ser uma iniciativa exclusiva do Brasil, a venda de ingressos online com a cobrança de taxa de conveniência é praticada por outros países da América Latina, Europa e nos Estados Unidos, sendo que, nos dois últimos o controle exercido pelo Estado refere-se apenas às práticas abusivas de mercado, respeitada a livre iniciativa inerente as relações de oferta e de demanda, além da óbvia necessidade de transparência nos preços ofertados ao consumidor.

É nesse sentido que, em outros setores da economia no Brasil, tem-se adotado a orientação de que a cobrança de valores adicionais correspondentes a serviços prestados aos consumidores, desde que devidamente informados a esse respeito, representa estratégia comercial lícita e regular das empresas fornecedoras de serviços.

A discussão a respeito da legitimidade da cobrança da taxa de conveniência parte, portanto, dos princípios constitucionais da livre iniciativa e liberdade econômica, introduzindo a temática da democratização economicamente sustentável dos meios de acesso à cultura, notadamente nas cidades. Não se pode mais separar os meios privados de acesso à cultura e o uso da tecnologia e da inovação.

A Constituição Federal Brasileira, em seu artigo 23, define como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: "V -proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação". Na sequência, o artigo. 24, inciso IX, dispõe que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: "IX -educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação".

O que se defende é que a taxa de conveniência transita no plano da Ordem Econômica e a distribuição online de ingressos, em plataformas seguras e eficientes, traduz o exercício da mais básica liberdade econômica, qual seja, a liberdade de iniciativa de quem decide fazer da oferta de uma ou de outra comodidade material um específico ramo de negócio. 

No plano infraconstitucional, para o estabelecimento de uma discussão acerca do uso da tecnologia e da inovação para o fomento da cultura por meio de mecanismos como a taxa de conveniência, outras fontes normativas dialogam com a matéria e são de extrema importância para o seu entendimento.

A lei 12.965/14, o Marco Civil da Internet, estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Dessa forma, o artigo 2º, inciso V determina que "a disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento (...): V -a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor".

Adiante, o inciso VIII do artigo do Marco dispõe que a disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: "VIII -liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei".

Por sua vez, o Código de Defesa do Consumidor não impede a cobrança de taxas adicionais ao consumidor por serviços a eles adicionalmente prestados, estabelecendo o dever de manter "a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço".

Repise-se, não há ilicitude se há transparência. Não há ilegalidade, se há opção e não obrigação de compra de ingressos com a taxa.

Vale destacar ainda que as Leis Estaduais 6103/11 do Estado do Rio de Janeiro e 7.686/15 do Estado de Alagoas legitimam a cobrança de taxas de conveniência. No mesmo sentido, a Lei Federal 11.771/08, que dispõe sobre a Política Nacional de Turismo, destaca que empresas de turismo poderiam cobrar taxas e comissões sobre a intermediação de, dentre outros tipos de serviços, a comercialização de ingressos para os mais diversos tipos de eventos.

A despeito da legalidade da cobrança da taxa de conveniência, existem diversos questionamentos a respeito de sua ilegalidade, acusando a cobrança como prática abusiva, em afronta ao Código de Defesa do Consumidor.

Diante da polêmica, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), através da análise do Recurso Especial de 1737428/RS, de relatoria da Exma. Sra. Ministra Nancy Andrighi (DJe 15/3/19) considerou que a taxa de conveniência não poderia ser cobrada dos consumidores pela mera disponibilização de ingressos em meio virtual, constatando que a prática configuraria venda casada e transferência indevida do risco da atividade comercial do fornecedor ao consumidor, pois o custo operacional da venda pela internet seria ônus apenas do fornecedor de produtos e serviços.

O Colegiado da Terceira Turma do STJ decidiu inicialmente que tal argumento seria válido. Através do julgamento do referido REsp., originário da ação coletiva de 2013 movida pela Associação de Defesa dos Consumidores do Rio Grande do Sul (AdeconRS), pela ilegalidade da taxa de conveniência cobrada pelo site Ingresso Rápido na venda online de ingressos para shows e outros eventos. De acordo com a Ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso "a venda do ingresso para um determinado espetáculo cultural é parte típica e essencial do negócio, risco da própria atividade empresarial que visa o lucro e integrante do investimento do fornecedor, compondo, portanto, o custo embutido no preço".

Diante da decisão do STJ, houve a provocação de diversos setores da sociedade civil e do Governo para o necessário esclarecimento dos fatos. Afinal, o modelo de negócios, amadurecido em todo o mundo, estaria errado em trabalhar desta maneira?

A professora e advogada Claudia Lima Marques apresentou parecer ao Superior Tribunal de Justiça, considerando a alegada existência de imposição aos consumidores:

"No caso em exame, parece-nos que se o consumidor tem a possibilidade de adquirir ingressos para eventos e espetáculos pela internet, há uma comodidade ou vantagem, que é a economia de tempo e mesmo de eventuais custos de deslocamento em relação à sua aquisição na bilheteria física. Tomando-se em consideração uma grande metrópole brasileira, ou mesmo consumidores que vivam em local distinto daquele no qual se ocorrerá o evento e se situa o estabelecimento físico de venda, esta vantagem para o consumidor pode ser, inclusive, tomada em maior consideração. É inovação que se faz pela internet e para a qual supõe custos como os relatados pela consulente. Neste caso, a liberdade de formação do preço, distinguindo o que é parcela atinente à utilização de uma plataforma para aquisição dos ingressos, desde que mantenha a possibilidade de escolha, pelo consumidor, de sua aquisição por outro meio, não revela, a nosso ver, a conduta de "condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço", que caracteriza a venda casada (art. 39, inciso I, do CDC)."

O referido parecer conclui no sentido de que a cobrança da taxa de conveniência não representa prática abusiva de venda casada, desde que reste assegurado: (i) a liberdade de escolha do consumidor em contratar ou não o serviço, mediante oferta da possibilidade de aquisição de ingressos em bilheteria oficial, fora da internet, sem a exigência de taxa de conveniência; (ii) haja esclarecimento prévio e expresso em relação a estas opções e as condições nas quais serão cobradas as taxas de conveniência; (iii) não sejam criados ou impostos pelo fornecedor restrições com o propósito de desestimular o consumidor a optar pela aquisição do ingresso em bilheteria oficial, sem a cobrança da taxa de conveniência.

Seguindo esse mesmo entendimento, em 12 de julho de 2019 a Secretaria Nacional do Consumidor emitiu a Nota Técnica nº 9/2019, concluindo igualmente que "a contratação de taxa de conveniência em conjunto com ingressos para eventos culturais, shows, cinemas, espetáculos etc., inclui-se no espectro da liberdade contratual entre fornecedores e consumidores - não podendo ser considerada prática ilícita ou abusiva por si só".

Em seguida, em fevereiro de 2020 o Tribunal de Justiça do Distrito Federal suspendeu a decisão interlocutória da 9ª Vara Cível de Brasília que acolheu inicialmente o pedido liminar da Ação Civil Pública proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil, que argumentou pela violação dos direitos dos consumidores pela empresa Futebolcard ao cobrar taxa de conveniência na venda online de ingressos para uma partida de futebol.

O desembargador do TJ/DF enfatizou que: 

"Se não há qualquer dúvida de que a comissão pela venda eletrônica será cobrada, não há ilegalidade no negócio, posto que o objeto é lícito, as partes são capazes e a liberdade de contratar foi preservada. Alterar essa relação é alterar cláusulas pré-contratuais válidas e impedir a formação do contrato".

O Magistrado destacou ainda em sua decisão que devem ser respeitadas as decisões autônomas, não se podendo limitar o direito das pessoas autônomas celebrarem contratos entre si.

Comprovado em diligência solicitada pelo Magistrado que os postos de venda indicados no Agravo de Instrumento estavam funcionando em conformidade com a lei específica, neste caso o Estatuto do Torcedor, restou evidente que não havia qualquer conduta abusiva por parte da empresa de ingressos, tampouco conduta contrária ao entendimento exarado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp. 1737428/RS, de relatoria da Exma. Sra. Ministra Nancy Andrighi, pois foi concedida aos consumidores a opção de arcar (ou não) com a chamada taxa de conveniência, podendo adquirir os ingressos em postos de venda físicos, sem qualquer custo extra, caso assim o desejassem. A cobrança da taxa era opcional para aqueles que desejassem maior conveniência.

Nessa esteira, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça readequou o entendimento proferido anteriormente, concluindo no julgamento realizado em 06 de outubro de 2020 que a cobrança da taxa de conveniência só será considerada abusiva quando verificado o descumprimento do dever de informação na fase pré-contratual.

Isso porque, a empresa Ingresso Rápido defendeu, em sede de embargos de declaração apresentados à Terceira Turma que, no julgamento de 2019, o colegiado teria extrapolado os limites do pedido, pois a associação autora da ação, nas razões do seu recurso especial, teria admitido que seu objetivo não era proibir a cobrança da taxa de conveniência, mas apenas inibir práticas abusivas.

O ministro Paulo de Tarso Sanseverino acolheu os novos embargos com efeitos infringentes para readequar os efeitos do acórdão anterior, mantendo a condenação da empresa de venda online de ingressos apenas no tocante à obrigação de incluir em seus anúncios o preço total da compra, com destaque para o valor da taxa de conveniência, sob pena de ser obrigada a restituir tal quantia ao consumidor, sem prejuízo de eventual fixação de multa.

Na reforma do entendimento, o Colegiado acompanhou o relatório do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, para quem a venda de ingressos online se integra à cadeia de fornecimento da produção de eventos, sendo um custo repassado, e não um serviço independente oferecido ao consumidor.

O dever de informação pré-contratual foi trazido para o caso envolvendo a taxa de conveniência à partir de duas outras controvérsias analisadas pelo STJ, relacionadas com a transferência de custos de intermediação - comissão de corretagem (Tema 938) e comissão do correspondente bancário (Tema 958) -, em que se entendeu que o enfoque nesses casos passa a ser o dever de informação na fase pré-contratual.

Para o Ministro Sanseverino, sendo a taxa de conveniência um repasse de custos de intermediação, "torna-se irrelevante perscrutar acerca de efetiva vantagem ao consumidor". Para ele, basta "que o consumidor seja informado prévia e adequadamente acerca dessa transferência de custos".

Esse dever de informação ao consumidor deve ser cumprido desde a frase pré-contratual, de forma clara e ostensiva, para que seja possível para o consumidor tomar decisões de forma ponderada a respeito dos custos e benefícios atrelados ao bem em questão.

"Assim como no caso da corretagem, merece ser repelida com vigor a prática abusiva e desleal de ofertar produto/serviço por um preço artificialmente menor para, depois de capturar a preferência do consumidor no mercado de consumo, exigir a diferença de preço sob a roupagem de um falso serviço 'adicional', aumentando indevidamente o valor a ser desembolsado pelo consumidor"

Conclui-se, portanto, que se o custo da distribuição online de ingressos é realidade econômica inexorável, a taxa de conveniência é a fórmula que mais adequadamente a representa, inclusive e sobretudo no interesse dos próprios consumidores. Assim, desde que respeitados os deveres de informação ao consumidor, tal prática não fere direitos consumeristas.

Ao contrário, ocasiona os ganhos de eficiência quando comparada às alternativas existentes, além de proporcionar a almejada transparência nas relações de consumo.

O desenvolvimento tecnológico, a mudança exponencial nos hábitos e comportamentos da sociedade impõe exercícios diários de adaptação das leis, da forma de prestação de serviços, da compreensão como um todo sobre o caminho trilhado pela sociedade, em frenética expansão e desenvolvimento. Nas palavras de George Bernard Shaw: "É impossível haver progresso sem mudanças, e aqueles que não conseguem mudar suas mentes nada mudam."[1] 

Diante de toda a análise realizada pelo Superior Tribunal de Justiça, pelo Governo Federal e pelos Tribunais dos Estados, trazemos luz ao tema para que reste claro, finalmente, que a cobrança da taxa de conveniência é salutar à economia digital do país, tendo se tornado ainda mais relevante para proporcionar o amadurecimento e transição do setor de entretenimento de eventos puramente físicos para o novo normal que se anuncia neste início de década, diante da pandemia em que vivemos.

Sendo o setor que mais sofreu economicamente com os efeitos da calamidade global, já que foi o primeiro a fechar suas portas, pois dependia extremamente da aglomeração e do calor do público, sendo provavelmente o último a retornar, justamente por esta premissa, restam a todos os envolvidos se reinventarem no mundo online, utilizando para isto as ferramentas mais evoluídas a sua disposição.

É de extrema relevância que a orientação jurisprudencial esteja em conformidade com o entendimento sobre os impactos extremamente positivos do serviço remunerado pela taxa de conveniência com relação a dinâmica negocial, permitindo aos consumidores ter conhecimento e informação sobre os custos na compra online de ingressos, alinhando o país com as melhores práticas globais da economia digital do século XXI.

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1 Progress is impossible without change, and those who cannot change their minds cannot change anything. Everybody's political what's what - página 330, Bernard Shaw - Dodd, Mead, 1944.

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Rafael Pellon

Rafael Pellon

Advogado e diretor jurídico da ABREVIN - Associação Brasileira das Empresas de Venda de Ingressos.

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