Afinal, o que é governança?
A governança é tema recorrente, mas, por vezes, o seu conceito não resta claro, o que dificulta a sua real aplicação.
terça-feira, 9 de fevereiro de 2021
Atualizado às 15:01
Muito se fala sobre "governança" em instituições públicas e privadas, especialmente neste momento em que a ideia do compliance vem sendo altamente difundida.
Entretanto, parece-nos que o conceito acaba sendo empregado de forma indeterminada nas mais variadas situações, o que nos leva a indagar: afinal, no que consiste a tão mencionada "governança"?
Segundo o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), organização da sociedade civil que é referência nacional no tema, governança consiste em um sistema por meio do qual instituições são dirigidas, monitoradas e estimuladas, abrangendo os relacionamentos entre sócios, diretorias, órgãos de fiscalização e controle, bem como demais partes interessadas (chamados de stakeholders).
Mas o que isso quer dizer?
Sob um viés mais prático, o Instituto explica que a governança é executada por meio das boas ações que transformam princípios básicos em recomendações objetivas, "alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da organização", o que contribui para o acesso à recursos e ainda, auxilia na qualidade da gestão.
Talvez, a busca pelo alinhamento dos interesses pode ser a maneira mais compreensível de traduzir no que a governança consiste e isso pode ser ainda melhor visualizado quando analisamos a sua origem. Isso porque os primórdios da governança remontam aos conflitos relativos à propriedade dispersa, isto é, ao conjunto de proprietários ou acionistas que passaram a gerir a sociedade empresária, e à falta de consenso entre estes, os executivos e o próprio interesse da companhia.
Justamente por esse motivo, as recomendações objetivas, que derivam dos princípios básicos, são tão relevantes. E quais seriam esses princípios?
De acordo com a IBGC, podemos afirmar que são quatro: transparência, equidade, prestação de contas ("accountability") e responsabilidade corporativa.
De forma bastante sintética, podemos definir a prestação de contas e a responsabilidade corporativa como deveres dos agentes de governança, o primeiro diz respeito a uma atuação regida pela diligência e responsabilidade, atuando de forma clara e transparente; já o segundo vincula-se ao zelo pela viabilidade econômica da organização, bem como à mitigação dos fatores externos negativos e à potencialização dos positivos.
De outro lado, a transparência pode ser compreendida como a disponibilização de toda e qualquer informação a quem possua interesse em acessá-las, independentemente de exigências legais, e a equidade como o respeito à isonomia no tratamento dos sócios, assim como das demais partes interessadas, considerando direitos, deveres, interesses e expectativas.
Inclusive, justamente por considerar a igualdade de tratamento dos sócios e diretores, a governança torna-se um meio de garantir a transparência da organização em todos os níveis, principalmente nos superiores.
Contudo, não é apenas dessa forma que o princípio da transparência pode ser efetivado. A Lei das Sociedades Anônimas (lei 6.404/1976), por exemplo, no seu artigo 157, prevê que o administrador da companhia aberta tem o dever de prestar informação, pois, dessa forma, possibilita o esclarecimento necessário para a tomada de decisões de investidores e acionistas.
Dada a relevância do tema, os administradores das companhias estão igualmente sujeitos às orientações da Comissão de Valores Imobiliários (CVM), a exemplo da Instrução CVM 578/2016, a qual, dentre outras diretrizes, estabelece padrões mínimos de governança corporativa a serem seguidos por Fundos de investimento em Participações.
É preciso esclarecer que, apesar de a governança ter como origem o âmbito empresarial, também pode (e deve!) ser aplicada às organizações não empresariais. Tanto é verdade que o decreto Federal 9.203/2017 regulamentou uma política de governança para a Administração Pública Federal Direta, Autárquica e Fundacional.
Sob a perspectiva da esfera pública, a norma federal, no seu artigo 2º, inciso I, trata governança como "o conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade."
Brevemente, vale destacar que, antes mesmo da publicação do decreto 9.203/2017, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) desenvolveu um extenso guia de "Diretrizes da OCDE sobre Governança Corporativa de Empresas Estatais".
No documento, a OCDE faz recomendações - que constituem um "padrão internacionalmente aceito" - aos governos a fim de assegurar que as empresas estatais operem de forma eficiente, transparente e responsável, evitando as "armadilhas de titularidade passiva e a excessiva intervenção estatal".
Ainda, a fim de afastar qualquer equívoco, é importante mencionar que, mesmo no âmbito da Administração Pública, engana-se quem pensa que governança é sinônimo de mais controle.
Conforme o Referencial Básico de Governança Organizacional elaborado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), as boas práticas de governança estão muito longe disso, uma vez que possuem como finalidade "a melhoria do desempenho da organização para a geração de valor", o que perpassa necessariamente pela remoção de controles desnecessários que dificultam o alcance do resultado esperado.
A governança, assim como o compliance, extrapola a ideia de mera obrigação normativa, a sua implementação, quando efetivada de forma séria, representa verdadeira mudança de cultura dentro de uma organização.
Em tempos de escândalos de corrupção e tentativas incessantes de conter ilícitos, estar em conformidade com as normas e demonstrar, tanto interna quanto externamente, uma "atuação estruturada e ética", é o mínimo que uma instituição pode fazer para atender às expectativas do mercado e da sociedade.
Não é por acaso, portanto, que a (boa) governança encontra especial vinculação aos programas de compliance, uma vez que ambos contribuem para a formação de instituições íntegras e de boa reputação, o que, certamente, favorece a sua longevidade e sua performance, seja ela uma organização pública ou privada.
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BRASIL. SENADO FEDERAL. PL 4253, de 2020 (Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado nº 559, de 2013). Acesso em janeiro de 2021.
_________. Decreto 9.203/2017. Dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Acesso em janeiro de 2021.
__________. Lei 6.404/1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Acesso em janeiro de 2021.
CASA CIVIL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Guia da Política da Governança Pública. Acesso em janeiro de 2021.
COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS (CVM). Instrução CVM 578, de 30 de agosto de 2016, com as alterações introduzidas pelas instruções CVM n. 589/17, 604/18, 609/19 e 615/19. Acesso em janeiro de 2021.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA (IBGC). O que é governança corporativa. Acesso em janeiro de 2021.
LEGAL, ETHICS E COMPLIANCE (LEC). Governança Corporativa e Compliance: entenda as diferenças. Acesso em janeiro de 2021.
MIRANDA, Marina Ferraz de; SOUZA, Tayná Tomaz de. Nova Lei de Licitações reforça a primordialidade do compliance. Acesso em janeiro de 2021.
ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Diretrizes da OCDE sobre Governança Corporativa de Empresas Estatais. Acesso em janeiro de 2021.
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Referencial Básico de Governança Organizacional para organizações públicas e outros entes jurisdicionados ao Tribunal de Contas da União. Acesso em janeiro de 2021.
Marina Ferraz de Miranda
Advogada, graduada em Direito pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina/CESUSC (2016). Administradora de Empresas. Mestre em Finanças e Desenvolvimento Econômico. Especialista em Processo Civil. Pós-graduanda em Compliance e Gestão de Riscos.