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O direito divorciado dos fatos

Os procuradores do MPT devem se curvar à realidade dos fatos.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Atualizado às 08:03

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

A infraestrutura social está em constante movimentação. Não se submete ao império do direito positivo. Evolui sujeita à força irresistível dos fatos.

A pandemia do coronavírus é fato. Diante dela a sociedade buscou maneiras de se defender e de se adaptar. Os mais sensatos passaram a fazer uso de máscaras e a praticar o isolamento social. Com a retração das atividades econômicas as empresas trataram de readaptar a força de trabalho à queda de produção e de faturamento. Se não o fizessem quebrariam. De mediato o governo reconheceu o estado de calamidade pública e baixou medidas com o objetivo de salvar o maior número possível de empresas.

Dois capítulos da CLT exigem revisão, pela frontal aversão aos fatos. Refiro-me aos capítulos que tratam da proteção à mulher e ao menor. A mulher não dispõe de estatuto próprio; submete-se ao Código Civil. O menor é protegido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, lei 8.069, de 13/7/90. Em situação semelhante está o idoso, com mais de 65 anos, objeto da lei 192, de 3/10/03.

Exemplo cabal de disposição ultrapassada pelos fatos é o parágrafo primeiro do artigo 389, cujo texto diz: "Os estabelecimentos em que trabalharem pelo menos 30 (trinta) mulheres com mais de 16 (dezesseis) anos de idade terão local apropriado onde seja permitido às empregadas guardar sob vigilância e assistência os seus filhos durante o período de amamentação".

O parágrafo contém dois erros óbvios. Entre 16 e 18 anos a pessoa do sexo feminino não é mulher, mas adolescente na definição do artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente. Como adolescente, não poderá ser empregada. Se admitida, o será como aprendiz. Não bastasse, revela-se indiferente à gravidez precoce.

O artigo 392 da CLT, com a redação atualizada pela lei 10.421/02, garante à gestante o direito à licença maternidade de 120 dias, sem prejuízo do emprego e do salário.  A norma está em atrito com o artigo 10, II, letra b, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que lhe impede a demissão, desde a confirmação da gravidez, até cinco meses após o parto.

De alguns anos para cá o Ministério Público do Trabalho (MPT) passou a ajuizar Ações Civis Públicas para exigir de shoppings centers o cumprimento do parágrafo terceiro do artigo 389, sob pena de pesadas multas diárias, ao enquadrá-los como estabelecimentos.

Há, no caso, deplorável confusão entre coisas juridicamente distintas. Empregador é a empresa individual ou coletiva, definida no artigo 981 do Código Civil como associação de pessoas "que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica a partilha, entre si, dos resultados". O mesmo Código define estabelecimento como "todo complexo de bens organizados, para o exercício da empresa, por empresário ou por sociedade empresária" (artigo 1.142).

A velha CLT distingue empresa de estabelecimento. Veja-se o que dizem os artigos 352, 355, 469, § 2º, 902. No interior do shopping center operam empresas e estabelecimentos. Exploram negócios distintos e concorrentes. São lojas de tecidos, roupas, calçados, bijuterias, joias, relógios, bebidas, artigos de decoração, livrarias, óticas, além de lanchonetes, restaurantes, cafés, pizzarias, cinemas. Esquizofrênicos argumentos de super estabelecimento ou de grupo econômico, ignoram o mundo real e as definições legais. O shopping é pessoa jurídica que aluga espaços e administra áreas de uso comum. Não se encaixa na definição do artigo 1.142 do Código Civil.

A Comissão Elaboradora da CLT, integrada por homens, ignorava os assuntos de maternidade e não contou com a ajuda de mulher para orientá-la. Se quisermos proteger a gestante e a infância, dilatemos o prazo de estabilidade para doze meses. Nada de sujeitar a mãe ao vai e vem diário com o bebê, da residência ao shopping, do shopping à residência. A estabilidade existe para permitir que ela permaneça em casa com o filho, dispensando-a da tarefa de carregar a criança até o emprego, sob sol escaldante ou debaixo de chuva torrencial, de ônibus ou metrô, no auge da pandemia.

Os procuradores do MPT devem se curvar à realidade dos fatos. Enquanto o não o fizerem continuarão a usar Ações Civis Públicas para exigir, de quem não deve, o cumprimento de dispositivo legal nocivo à maternidade e à infância, além de duplamente errado.

Almir Pazzianotto Pinto

VIP Almir Pazzianotto Pinto

Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Autor de A Falsa República e 30 Anos de Crise - 1988 - 2018.

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