Um necessário return to basics
Processo justo e processo célere são altamente perniciosas à consecução do que verdadeira e unissonamente se pretende: construir um sistema de justiça penal democrático e, ao mesmo tempo, eficiente.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021
Atualizado às 10:09
Lembro-me da minha primeira aula de Direito Penal na Faculdade de Alagoas. Era teoria geral. Faz tempo. Naquele dia, tive as primeiras noções introdutórias de presunção de inocência, legalidade, conduta, culpabilidade e pena.
Na fala do professor, havia um sentimento de repugnância a regimes totalitários, a processos kafkianos, a julgamentos parciais e a condenações injustas de um modo geral, o que, aliás, é típico dos ambientes acadêmicos até os dias atuais.
Aprendi, na banca de graduação, que só no Séc. XVIII, com Cesare Beccaria, foram traçadas as primeiras linhas do Princípio da Proporcionalidade, que, modernamente, impõe ao julgador debruçar-se sobre as circunstâncias do crime e a realidade do agente, para então fixar uma pena justa, de acordo com a culpabilidade, os antecedentes e o perfil do réu. Antes de Beccaria, eram trevas.
Não sou tão velho. Na escala da humanidade, muito pouco tempo passou desde aquelas primeiras lições. Entretanto, o aumento dos índices de criminalidade no país aliado à agudeza das recentes disputas partidárias e ideológicas fez soerguer um estranho menosprezo pelos valores fundantes de um Direito Penal democrático e liberal.
Nossos ídolos constitucionalistas, garantistas, defensores da moderação no uso da força e da privação da liberdade foram substituídos por carrascos pseudolegalistas muitas vezes materializados na figura de delegados, militares, promotores ou juízes "durões" que realizam o desejo de linchamento de uma sociedade punitivista recém surgida como subproduto de um debate político pobre que, inadequadamente, antagonizou segurança pública e processo penal justo.
Ao passo em que não se vê resolução para os problemas das ruas, recrudesce-se o Direito Penal. Essa tem sido a tônica das últimas duas décadas, como se o discurso repressor do Direito Penal fosse a solução para os problemas mais graves da sociedade. Mas não é. Ao fim, a criminalidade descampa e o Direito Penal, banalizado, perde prestígio.
Lembro de um livro de Michael Jordan que li há algum tempo. O jogador dizia que, quando tudo ia mal durante uma partida, os Chicago Bulls tomavam a iniciativa de retornar ao modo básico de jogo (return to basics) para revisitar os fundamentos, achar os erros e refazer o caminho.
Creio que, de um modo geral, o ser humano é capaz de discernir o certo do errado, o justo do injusto. Contudo, ao longo de nossas experiências, esses valores sofrem a ação do tempo e, imediatistas, acabamos por sobrepor valores, causando desorganização de ideias, incoerência ideológica e, muitas vezes, sofrimento.
Por isso, nessa altura do desenvolvimento científico do direito penal e da exasperação do debate político, é preciso parar, retornar ao modo básico, refazer mentalmente o caminho percorrido para identificar em que ponto erramos nas nossas eleições de valores ou na estratégia que adotamos para alcançar os nossos anseios imediatos, em prejuízo de valores dos quais, a rigor, nunca estivemos dispostos a abrir mão.
Afinal, as falsas - e tão apregoadas - contraposições entre contraditório e dever de punir, ampla defesa e responsabilidade penal, processo justo e processo célere são altamente perniciosas à consecução do que verdadeira e unissonamente se pretende: construir um sistema de justiça penal democrático e, ao mesmo tempo, eficiente.
Luiz Mário Guerra
Advogado criminalista, sócio do Urbano Vitalino Advogados e procurador do Estado de Pernambuco.