A necessária distinção entre "questão" e "fundamento"
O julgador deve enfrentar todas as questões apresentadas pelas partes, sob pena de se dar guarida a uma decisão incompleta, que deixou de se pronunciar sobre pontos controvertidos relevantes para o deslinde da demanda.
quinta-feira, 21 de janeiro de 2021
Atualizado às 15:16
O artigo 489, inciso II, do CPC, dispõe que são elementos essenciais da sentença os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito.
Sobre o tema, José Rogério Cruz e Tucci explica que: "Findo o relatório, o juiz passará a externar a justificação de seu convencimento na motivação do decisum. É precisamente na fundamentação da sentença que o juiz examinará as questões de fato e de direito, fixando com tais premissas, a conclusão de se projetará na parte dispositiva1".
E, de acordo com as lições de Teresa Arruda Alvim: "[...] De fato, na linguagem muito comumente utilizada e tecnicamente correta, "questão" é sinônimo de "ponto controvertido"2.
Considerando, assim, que questão é sinônimo de ponto controvertido, conclui-se que para uma questão pode existir mais de um fundamento. Daí porque, consoante entendimento do C. STJ, o julgador não está obrigado a enfrentar todos os fundamentos (leia-se: argumentos) invocados pelas partes, quando já analisadas e apreciadas as questões (leia-se: pontos controvertidos) da demanda.
Neste sentido:
"[...] IV - Tem-se, ainda, que o julgador não está obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos invocados pelas partes quando, por outros meios que lhes sirvam de convicção, tenha encontrado motivação satisfatória para dirimir o litígio. [...]."
(AgInt no AREsp 1392964/RJ (2018/0290983-9). STJ/Segunda Turma, Min. Rel. Francisco Falcão, j. 21/09/2020).
Por outro lado, no entanto, é absolutamente necessária a apreciação de todas as questões de fato e de direito suscitadas pelas partes, para a prolação da decisão de forma adequada e exauriente, em consonância com o dever de motivação. Desta forma, com o devido respeito, parece-nos equivocado o entendimento adotado por algumas decisões no sentido de que o julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão3.
Veja-se, por exemplo, o caso de uma ação reivindicatória de bem imóvel em que o autor fundamenta o seu pedido em duas questões: a primeira questão fundamentada no direito de propriedade com base no título de domínio; e a segunda questão, em ordem sucessiva, baseada na usucapião.
Suponhamos que a primeira questão posta na inicial possui dois fundamentos: o primeiro fundamento amparado numa escritura pública de compra e venda do imóvel reivindicado, cujo valor é 50 vezes superior ao salário mínimo, que, entretanto, ainda não foi levada ao cartório de registro de imóveis; e o segundo fundamento alicerçado numa anterior escritura particular de compra e venda do mesmo imóvel.
A segunda questão alegada - baseada na usucapião do imóvel - se escora na posse exercida pelo autor da ação sobre o referido imóvel, como se dono fosse, por mais de vinte anos, sem qualquer oposição.
Pois bem. Convencendo-se a sentença, a respeito da primeira questão, de que o autor da ação não tem o direito de propriedade baseado na escritura pública de compra e venda, a qual não foi levada ao cartório de registro de imóveis, ela não estará obrigada a analisar o segundo fundamento dessa primeira questão, com base na escritura de compra e venda por instrumento particular.
O julgador, contudo, não estará dispensado de examinar a segunda questão posta na inicial - relativa ao direito de propriedade fundamentado na usucapião -, sendo necessário o seu pronunciamento a respeito desse ponto controvertido, seja para acolhê-la ou para rejeitá-la.
Observa-se, por meio desses exemplos, a diferença entre "questão" e "fundamento".
Deste modo, se o julgador não enfrentar todas as questões (leia-se: pontos controvertidos) do caso, a decisão estará carreada de vício por ausência de fundamentação, conforme dispõe o § 1º do artigo 489 do CPC, que pode ensejar, inclusive, seu decreto de nulidade.
Diante disso, embora não esteja obrigado a analisar todos os fundamentos de cada questão, se já se convencido da sua procedência ou improcedência, parece-nos que o julgador deve, sim, enfrentar todas as questões de fato e de direito apresentadas pelas partes, sob pena de se dar guarida a uma decisão incompleta e capaz de caracterizar, inclusive, negativa do direito constitucional à jurisdição.
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1 TUCCI, José Rogério Cruz e. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 485 a 538 / José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 102 (Coleção Comentários ao Código de Processo Civil; v.8 / coordenação Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero).
2 ALVIM, Teresa Arruda. Comentários ao código de processo civil - volume 2 (arts. 318 a 538) / Cassio Scarpinella Bueno (coordenador). - São Paulo: Saraiva, 2017.
3 Nesta linha: " [..] 2. O julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão. A prescrição trazida pelo art. 489 do CPC/2015 veio confirmar a jurisprudência já sedimentada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, sendo dever do julgador apenas enfrentar as questões capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão recorrida. (EDcl no MANDADO DE SEGURANÇA Nº 21.315 - DF, STJ/Primeira Seção, Rel. Min. Diva Malerbi (Desembargadora Convocada TRF 3ª Região), j. 08/06/2016).
Jesus de Oliveira Sobrinho
Desembargador aposentado pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Sócio do escritório Advocacia Oliveira Sobrinho.
Octávio Augusto de Oliveira Costa
Graduado em Direito pela PUC/SP. Pós-Graduado em Processo Civil pela FGV DIREITO/SP. Mestrando em Direito Civil pela PUC/SP. Sócio do escritório Advocacia Oliveira Sobrinho.