Capitalismo sustentável e a lei 6.404/76
A sustentabilidade agora é parte do cotidiano das empresas, como que a lei se prepara para enfrentar esta nova realidade?
quarta-feira, 20 de janeiro de 2021
Atualizado às 12:53
Um dos mais relevantes debates da atualidade diz respeito ao objetivo a ser perseguido pelas empresas em uma economia capitalista. Por um lado, defende-se que o lucro deve ser o principal objetivo da empresa. Por outro lado, sustenta-se que a empresa não deve apenas maximizar os lucros, mas deve se preocupar com os trabalhadores, credores, clientes e a sociedade como um todo. O debate sobre o papel da empresa na economia capitalista influencia os desenvolvimentos do direito societário, que reflete a tensão havida entre primazia do lucro dos acionistas e o interesse mais amplo da sociedade.
De acordo com Milton Friedman, em um regime capitalista o dever das empresas é gerar lucro. Logo, o único compromisso de qualquer empresa é com a maximização dos retornos financeiros para os seus acionistas. O objetivo das empresas, portanto, está no maior retorno no menor prazo. A empresa deve evitar incorrer em custos que possam reduzir o lucro da empresa. Na visão de Friedman, uma empresa só pode contribuir para o melhoramento da comunidade a sua volta ou para o treinamento dos seus empregados se estas medidas contribuírem para aumentar o lucro. Vale dizer, o bem social é uma consequência de as empresas servirem seus próprios interesses. O direito brasileiro reflete essa perspectiva ao estabelecer no art. 2º da lei 6.404/76 ("LSA") que o objeto de uma companhia é a prática empresarial com fim lucrativo, desde que não contrário à ordem pública e aos bons costumes. A partir de tal artigo, é possível concluir que o lucro seria a principal razão de existência de uma sociedade empresarial.
Por outro lado, em reação às inequívocas externalidades negativas decorrentes da primazia do lucro do acionista, desenvolveu-se uma nova visão de capitalismo sustentável, que busca abarcar outros interesses que vão além do retorno financeiro aos acionistas, incluindo, portanto, os interesses de outros stakeholders, como trabalhadores, clientes e sociedade como um todo. Dessa forma, a empresa buscaria atuar em prol do combate à desigualdade, pobreza e outras mazelas por meio da adoção de práticas sustentáveis e socialmente responsáveis. Um exemplo dessa atuação é a forma pela qual muitas empresas lidaram com a crise do Covid-19, realizando doações e utilizando de suas influências em prol do combate da epidemia e de suas graves consequências.
Na obra 'Capitalismo Consciente: Como libertar o espírito heroico dos negócios', o autor e fundador do Whole Foods, John Mackey, elenca três pilares de fomento a esta ideia. Em primeiro lugar, a empresa deve ter um propósito maior para existir de forma a servir comunidade antes de focar no seu lucro. Em seguida, o líder da empresa deve disseminar tal propósito, para então, finalmente, permitir que os trabalhadores se engajem com esse propósito. Além do mais, parte dessa proposta de servir a um bem maior e ter consciência com os arredores da empresa, envolve o compromisso para com o meio ambiente. Desse modo, surgiu uma sigla com três letras que atualmente estão sendo bastante faladas no meio empresarial, ESG (Environmental, Social, Governance), que resume as ideias do capitalismo consciente.
No Brasil, já é possível identificar uma série de empresas que estão buscando adotar tais práticas, como, por exemplo, o Nubank, que recentemente anunciou ter zerado suas emissões de carbono a partir da compra de créditos de carbono; a XP com iniciativas para possibilitar investimentos ESG em suas plataformas e a JSF que se comprometeu a doar R$ 500 milhões para replantar árvores na Amazônia.
Pode-se, contudo, indagar qual a verdadeira motivação por trás dessas relevantes iniciativas. Será que essas empresas têm genuína preocupação com o meio ambiente e a comunidade ou trata-se somente de ações voltadas à estratégia de imagem das companhias de modo a melhorar a percepção de seus consumidores e investidores?
A resposta é que algumas empresas de fato nascem com essa preocupação como parte de seu propósito maior, como definido por John Mackey. Nos EUA, pode-se citar a TOMS que doava um par de sapatos para crianças desfavorecidas a cada sapato comprado. Ou então, a própria Natura, empresa que nasceu com um DNA de criar boas práticas e cuidar do meio ambiente. Por outro lado, muitas empresas apenas se adaptam minimamente e trazem algumas poucas ações no sentido de se adequar aos requisitos do ESG para atrair mais investidores, notadamente os europeus e americanos que se recusam fazer negócios com empresas que não adotam tais práticas. A não adoção de tais práticas pode gerar perda de oportunidades, como visto no caso do fundo soberano noruguês que excluiu a Vale e a Eletrobrás da sua lista de investimentos em função de problemas ambientais e por violação de direitos humanos, respectivamente.
A LSA também reflete em suas disposições as preocupações com os interesses dos stakeholders. Assim, sintetizando os pilares do capitalismo consciente descritos anteriormente, o art. 116 da LSA determina que o acionista controlador tem um dever para com a função social da empresa, o lucro, seus funcionários e a comunidade em que atua.. Já o art. 154 prevê que o administrador tem um dever para com os interesses da companhia, que inclui a função social da empresa e as exigências do bem público. A legislação brasileira, promulgada em 1976, foi precursora em refletir as preocupações com as recentes práticas ESG.
Portanto, seja genuíno ou não o motivo das empresas na promoção das práticas ESG, a legislação brasileira impõe o dever de se conjugar os deveres de responsabilidade social e com o objetivo de lucro.
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