Em SP, alíquota de ICMS abaixo de 18% não é benefício fiscal, é direito!
Ficção criada para equiparar alíquota abaixo de 18% a benefício fiscal e autorizar decreto do governador que majora de 12% para 13,3% o ICMS, a partir do dia 15 de janeiro, é inconstitucional.
sexta-feira, 15 de janeiro de 2021
Atualizado às 08:14
Se o consumidor for hoje a uma concessionária em São Paulo comprar um carro novo, sabe que 12% irão para o Estado a título de ICMS. Atento que é, ele jamais diria "Que baita vantagem! Poderiam ser 18%.". O cidadão sabe que ser 12% ou 18% é decisão da Assembleia Legislativa. E seus representantes decidiram pela alíquota de 12%, não só para o carro novo, mas também para tratores agrícolas, alguns combustíveis e diversos insumos da construção civil1 - caso alguém também esteja pensando em renovar a frota da lavoura, abastecer o avião ou reformar a casa.
Vantagem seria se, tendo que recolher 12% de alíquota, o contribuinte recebesse um crédito para abatimento, um prazo diferenciado para pagamento ou pudesse decotar da base de cálculo os itens opcionais que adicionou ao carro. Isso nunca lhe escaparia! Se a Assembleia Legislativa definiu em 12% a alíquota, não há vantagem alguma, há dever (de pagar) e também direito (de assim lhe ser exigido). E não é agora, por ato do governador, que isso vai mudar!
Mas, a partir do dia 15 de janeiro de 2021, passa a vigorar um "complemento de 1,3%" à alíquota de 12% para os próximos 24 meses, como medida para o equilíbrio das contas do estado. A medida encontraria respaldo no Convênio 42 de 3 de maio de 2016 do Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), que autorizou os estados e o Distrito Federal a reduzir os benefícios fiscais em no mínimo 10%, viabilizando a majoração da carga tributária para enfrentar a crise que então assolava o país - e que, por razões outras, ainda não nos deixou. O Convênio foi introjetado no Estado pela lei 17.293 de 15 de outubro de 2020, que podendo majorar de 12% para 13,3% a alíquota, assim não o fez. Criou uma ficção e considerou que todas as alíquotas inferiores a 18% são benefício fiscal2 para, então, outorgar ao governador a faculdade de alterar a alíquota como bem quisesse. Este, por sua vez, editou, no mesmo dia 15 de outubro, o decreto 65.253, aumentando a alíquota para 13,3%, que passa a viger nos próximos dias.
Pode isso? Não, não pode, por três principais razões.
A primeira razão é que equiparar todas as alíquotas abaixo de 18% a benefício fiscal - como pretende a lei 17.293/20 - é pura ficção! O bom português já esclarece: benefício é "vantagem, ganho, proveito"3, conceitos relacionais que só se compreendem por meio de comparação. Isto é, só há vantagem, quando há desvantagem; ganho, quando há perda; proveito, quando há prejuízo. Quando todos os paulistas estão, por lei (Lei 6.374/89), sujeitos à mesma alíquota de 12%, não há benefício fiscal algum!
Benefícios fiscais reduzem o valor a ser pago, já as alíquotas estabelecem exatamente o valor a ser pago. A alíquota é um dos elementos da obrigação tributária, por isso dotada dos atributos de abstração e generalidade, que significam: aplica-se a todos indistintamente (e não a um determinado contribuinte) e a todas as situações previstas na norma (e não a um caso específico). Já os benefícios atuam no montante da obrigação a pagar. Isto é: ocorre o fato (venda do automóvel), incide a norma (na venda de carro, pagar 12%) e nasce a obrigação (pagar 12%), aí vem a benesse que reduz o valor a pagar (mediante concessão de um crédito, redução da base de cálculo, dentre outras técnicas). Aqui reside uma diferença significativa em Direito Tributário entre exonerar a obrigação e reduzir o montante a pagar.
Quando todos os compradores de carro novo estão igualmente sujeitos à alíquota de 12%, não há benefício fiscal algum! É como comparar carro com lancha, para dizer que está em vantagem quem se locomove pela via terrestre (sujeita a 12%4) em comparação com quem opta pela via aquática (sujeita a 25%5). Há princípio basilar6 que orienta para o tratamento isonômico daqueles que estão em igual situação, o que importa em também conferir tratamento diferenciado àqueles que se encontram em posições díspares, como no carro ou na lancha.
E mais: em matéria tributária é absolutamente vedado o uso de ficção para aumentar tributo. A ficção é uma técnica pragmática para atribuir efeitos jurídicos próprios de um instituto a outro. Serve de exemplo o crime continuado, que trata como uma unidade a pluralidade de crimes da mesma espécie. Mas em matéria tributária esse poder é limitado, em proteção ao contribuinte, não podendo servir para ampliar o poder de criar tributos. Por exemplo, se o consumidor desistir de comprar o carro e optar por alugá-lo, não lhe podem exigir o ICMS, sob a ficção de que aluguel é compra, porque venda resulta em transferência definitiva de propriedade e locação, por mais longa que seja, não confere ao locatário nada mais do que a posse.
A segunda razão pela qual o decreto 65.253/20 não pode majorar a alíquota de 12% para 13,3% está no próprio Convênio 42/16, que teria respaldado a lei 17.293/20, pois ele se aplica apenas a benefícios "que resultem em redução do valor do ICMS a ser pago". A alíquota de 12% tanto não é benefício fiscal que dificilmente se adequa às disposições do referido Convênio.
O primeiro inciso da cláusula primeira do Convênio sujeita a fruição do benefício ao depósito, pelo contribuinte, de 10% do seu valor em fundo estadual. Ainda que esta hipótese não tenha sido adotada em São Paulo (foi em outros estados, como no Rio de Janeiro), serve de exemplo para indagar: seria o caso de se depositar 10% de 12%, ou seja, 1,2%? Ou 10% da diferença entre 12% (alíquota "beneficiada") e 18% (alíquota "máxima"), ou seja, 0,6% (18% - 12% = 6%)? O segundo inciso do Convênio prevê que o benefício seja reduzido em, no mínimo, 10% de seu valor. Como então reduzir a alíquota de 12% se não majorando-a? Em quanto: 1,2% ou 0,6%? Cabe interpretar "reduzir" como "aumentar" para se chegar ao efeito pretendido, que é a majoração da carga tributária? Finalmente, o parágrafo primeiro do Convênio prevê a penalidade no caso de descumprimento: "resultará na perda definitiva do respectivo incentivo ou benefício". Isso significa que, se o contribuinte, que teve a alíquota majorada de 12% para 13,3% deixar de pagar 13,3% ele irá "perder o benefício". Qual benefício, o de pagar 12%? E vai pagar quanto, 18%? Revela-se o absurdo!
Por último, a terceira razão: toda essa volta foi necessária porque sabe-se que, em linha constitucional, decreto não pode alterar alíquota para aumentar tributo, só a lei pode. Ainda que o STF7 tenha recentemente permitido a delegação ao Executivo para estabelecer alíquotas, assim o fez desde que sejam definidas as condições, fixados os tetos e esteja presente a função extrafiscal. O Convênio 42/16 só fixa piso - o que é insuficiente -; a lei 17.293 não fixa nem piso nem teto; e a função do ICMS é exclusivamente fiscal, isto é, arrecadatória. Enfim, ao Executivo foi dado um cheque em branco, que lhe permitiu majorar a alíquota de 12% para 13,3%, e com uma nova canetada para a alíquota que lhe aprouver...
Essas três razões são importantes porque elas tornam a situação dos contribuintes que estão sujeitos à alíquota inferior a 18% muito diferente daquela em que estão os contribuintes que têm verdadeiros benefícios fiscais. Ainda que para estes a medida do governador também seja censurável, ela o é por outras razões. O caso que aqui se apresenta é, para nós, ainda mais grave aos princípios constitucionais tributários e merece apreciação adequada.
Se quiser comprar um carro, o melhor que o paulista faz é atravessar a fronteira, já que todos os estados vizinhos aplicam a alíquota de 12%, como há anos convencionaram os secretários de Fazenda em deliberação no Confaz.
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1 Vide art. 34 da lei 6.374/89.
2 Art. 22, §1° da lei 17.293/20.
3 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário Aurélio, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, p. 198.
4 Vide art. 34, §1º, item 12 da lei 6.374/89.
5 Vide art. 55, VIII do RICMS/SP.
6 Vide art. 150, I da CR/88 e art. 163, § 6º, da CE/89.
7 A decisão foi proferida no dia 10 de dezembro de 2020, quando do julgamento do Tema 939/RG.
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