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A chegada do dispute board na administração pública brasileira

A nova Lei de Licitações, se sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, trará o instituto do dispute board pela primeira vez em uma lei brasileira.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Atualizado às 10:34

No último dia 10, foi aprovada pelo Senado Federal a nova Lei de Licitações (Projeto de Lei 4.253/2020), o texto aguarda agora a sanção do presidente Jair Bolsonaro. A nova lei propõe um novo marco para as contratações públicas ao unificar três legislações que tratam sobre o tema: a de Licitações, de 1993; do Pregão, de 2002; e do Regime Diferenciado de Contratações Públicas, de 20111. Também unifica mais de vinte instruções normativas, além de trazer uma boa abertura para os métodos alternativos de resolução de conflitos.

A lei 8.666/93, que até então regulava as licitações e contratos da administração pública, encontra-se significativamente defasada em diversos aspectos técnicos e jurídicos, não acompanhando a dinâmica da demanda existente de contratações. Nesse sentido, com vistas a modernizar a legislação interna, foi proposto o Projeto de Lei da Nova Lei de Licitações (PL 4.253/2020), aprovado há pouco mais de um ano pela Câmara dos Deputados - após longos 24 anos de tramitação na casa - e que, agora, recebeu a aprovação também do Senado.

O PL 4.253/2020 traz uma proposta de renovação, com mudanças significativas em muitos aspectos da administração pública. Em consonância com o recente desenvolvimento dos Meios Alternativos de Resolução de Disputas no âmbito do direito público, o Projeto de Lei inova ao apresentar o comitê de resolução de disputas, conhecido também como dispute board, que ainda não possuía seu espaço definido:

Art. 149. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente, a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem. [grifo nosso]

O escopo desse comitê consiste na resolução e prevenção de conflitos atinentes a contratos de execução continuada, comuns na construção civil ou em obras de infraestrutura, evitando intercorrências e prejuízos às partes ao longo da execução desse contrato.

Devido à grande quantidade de contratos conexos e derivados, cuja execução ocorre por etapas sucessivas, a aplicação do dispute board justifica-se na medida em que o mecanismo visa mitigar riscos inerentes à construção civil ou à infraestrutura, motivo pelo qual a sua aplicabilidade nesses tipos contratuais é elevada.

No entanto, diferente de outros mecanismos alternativos de resolução de disputa, como a arbitragem, a mediação ou o mini trial, o dispute board proporciona uma espécie de gerenciamento de riscos, vez que previne, desde a origem, o acirramento das divergências e conflitos oriundos do desgaste natural das relações entre as partes envolvidas ou, ainda, provenientes de imprevisibilidades geológicas e geotécnicas, questões extremamente comuns em contratos de construção civil e infraestrutura.

O instituto, formado geralmente no início da relação contratual, é composto por um ou mais profissionais (na maioria dos casos, três) escolhidos pelas partes contratantes, que acompanham de forma periódica o andamento do contrato, formando, desse modo, uma espécie de junta. Além disso, conforme sintetiza Vaz2:

Essa junta emite recomendações e/ou decisões em face de disputas que são a ela submetidas, apresentando-se, com cada modelo de dispute board adotado, uma equação diferenciada de obrigatoriedade para as partes.

Em suma, se ao longo da execução surge uma demanda que padece de expressa previsão contratual, podem as partes recorrer ao dispute board, que recomendará e/ou determinará a parte responsável por suportar os custos e serviços relacionados a essa nova contingência.

A adoção desse método também é aconselhável, além do setor de construção civil e infraestrutura, nas relações oriundas de contratos de franquias, nas questões pertinentes à propriedade intelectual, nos casos de recuperação judicial de empresas ou nas operações societárias - de modo a proteger o interesse dos acionistas3. Devido à grande quantidade de contratos conexos e derivados, cuja execução ocorre por etapas sucessivas, a aplicação do dispute board justifica-se na medida em que o mecanismo visa mitigar riscos inerentes à construção civil ou à infraestrutura, motivo pelo qual a sua aplicabilidade nesses tipos contratuais é elevada.

Considerando que a sua inserção ocorre no âmbito da autonomia da vontade, diferentes modelos de dispute board podem ser compactuados; os mais comumente utilizados são, entretanto, os contidos na  classificação e no regulamento da ICC (International Chamber of Commerce), que apresenta três modalidades: (i) o dispute review board (DRB), que aconselha as partes com sugestões apenas; (ii) o dispute adjudication board (DAB), no qual o comitê desempenha função decisória, impondo as soluções; e (iii) o combined dispute board (CDB), que pode tanto emitir recomendações não vinculantes quanto proferir decisões vinculantes4.

Ademais, a conveniente aplicação de tais modelos de dispute board em contratos de licitação celebrados pela administração pública é explicada por meio do seu desenvolvimento histórico. Nesse contexto, o surgimento desse método se deu por volta de 1975 nos Estados Unidos5, quando utilizado experimentalmente para acompanhar um grandioso projeto de infraestrutura no Estado do Colorado: o segundo furo do Eisenhower Tunnel. A partir de então, veio ganhando espaço e conquistando bons resultados, sobretudo entre os norte-americanos.

Em 1980, na construção da hidrelétrica de El Cajon, em Honduras, ocorreu a primeira experiência de utilização de um dispute board em uma obra financiada pelo Banco Mundial. O caso foi considerado de enorme sucesso, haja vista que, em função do auxílio do comitê, após a conclusão da obra, nenhuma demanda ficou pendente a ser discutida, quer em âmbito arbitral quer em âmbito judicial. Dessa forma, a instituição financeira passou a fortemente recomendar que financiadores de grandes projetos adotassem o mecanismo de resolução de disputas nos contratos cujos empréstimos foram por eles concedidos6.

Destarte, os estudos doutrinários sobre as vantagens do uso de comitês em contratos de execução continuada acentuaram-se, permitindo que o dispute board fosse reconhecido como importante método alternativo de resolução de litígios. Para Arnoldo Wald7:

A grande vantagem desses organismos é o fato de serem os seus membros especialistas na matéria (objeto do contrato) que vão participar do andamento do negócio, desde o início até o fim, conhecendo todos os seus problemas. Assim, convocados a qualquer momento, podem examinar rapidamente as divergências existentes, com independência e neutralidade, dando a solução que mais interessa para o cumprimento do contrato sem prejuízo dos posteriores acertos de contas, que poderão ser objeto de negociação ou arbitragem.

A eficiência do método, tanto na obtenção de soluções quanto na celeridade do processo, tem sido manifestamente comprovada. Segundo o Dispute Resolution Board Foundation8 - organização sem fins lucrativos dedicada à promoção, em âmbito internacional, do método - 99% dos conflitos que usam dispute boards são encerrados em menos de 90 dias e 98% das disputas são resolvidas pelo mecanismo. Além de ser de grande eficácia, os dispute boards constituem também um importante elemento de transparência, tendo em vista que toda a execução do contrato é acompanhada de perto, de forma a garantir o bom andamento dos projetos.

Cumpre salientar que a operacionalização célere do dispute board é essencial para a sua eficiência, pois evita que ocorra a paralisação do objeto contratual por um tempo demasiadamente longo. Em um cenário em que o acordo não estipulasse qualquer mecanismo do gênero, seria necessário que as partes recorressem à jurisdição estatal ou ao juízo arbitral para solucionar o impasse e, apenas então, conseguissem prosseguir com a execução contratual.

Logo, ao evitar a paralisação do objeto do acordo celebrado entre os contratantes, o método garante não apenas de economia de tempo, mas também economia de recursos: estima-se que os custos da implantação do dispute board correspondem a um percentual entre 0,05% e 0,3% do valor total do contrato9 - percentuais baixos quando se observa os elevados gastos suportados por empresas e entes da administração pública em processos judiciais ou arbitrais. Outrossim, corroborando a eficiência do instituto, segundo dados do Dispute Resolution Board Foundation, que classificou mais de 1.200 projetos com utilização de mecanismo, 60% deles não tiveram qualquer disputa e, das disputas levadas ao comitê, 98% das decisões ou recomendações foram seguidas, sem resultar em subsequente arbitragem ou processo judicial.

No Brasil, esse dispositivo ainda impopular vem ganhando estima e tende a ser popularizado após a Nova Lei de Licitações entrar em vigor. No âmbito do judiciário, o primeiro a mencionar o tema do dispute board, ainda que somente no contexto de confirmar sua força contratual, foi o Ministro Marco Aurélio Belizze, do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

Nesse contexto, os contratantes, ainda baseados no princípio da autonomia da vontade, devem estabelecer a natureza conferida à decisão a ser prolatada pelo terceiro ou pelo 'colegiado', se meramente consultiva; se destinada a resolver a contenda imediatamente, sem prejuízo de a questão ser levada à arbitragem ou à Justiça Pública, ou se vinculativa e definitiva, disposição contratual que, em qualquer circunstância - ressalvado, por óbvio, se existente algum vício de consentimento -, deve ser detidamente observada10.

Sob outro prisma, nos projetos concretos de infraestrutura ou de construção civil, a nível nacional, a introdução do dispute board se deu, primeiro, em 2010 na expansão da Linha 4 Amarela do metrô de São Paulo (financiada pelo Banco Mundial, inclusive) e, depois, em 2013 na Parceria Público-Privada voltada à construção do Complexo Criminal Ribeirão das Neves, em Belo Horizonte.

O incentivo para a utilização dos comitês de resolução de disputas na administração pública pode alavancar a utilização do método, até porque parte de sua pequena difusão à nível nacional ocorreu justamente em âmbito administrativo, por meio da aplicação do Regime Diferenciado de Contratações Públicas, instituído pela lei 12.462/2011. Essa lei trouxe abertura para mecanismos privados de resolução de disputas, e foi destinada, em um primeiro momento, apenas a obras relacionadas direta ou indiretamente à Copa do Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016.

De igual maneira, a flexibilidade operacional desse regime normativo fez com que, no entanto, o rol taxativo de suas aplicações fosse ampliado, contemplando também obras de melhoria na mobilidade urbana ou de ampliação de infraestrutura logística. Isso demonstra, em um espectro ampliado, a receptividade da administração pública para com mecanismos como o dispute board, capazes de promover a celeridade e a eficiência da máquina estatal.

Por fim, podemos observar que esse instrumento, assim como outros métodos alternativos de resolução de conflitos já aplicados no Brasil, é promissor. Esses métodos ganharam grande destaque nos últimos anos, principalmente por se tratarem de uma fuga aos métodos tradicionais já defasados e esgotados de mudanças. Aliado à administração pública, o dispute board mostra-se, portanto, valioso tanto na prevenção como na solução de controvérsias, oriundas da execução contratual ou após esta, notadamente quanto aos aspectos técnicos e de difícil compreensão à luz exclusiva de normas jurídicas.

__________

1 O que muda nas compras do setor público com a nova lei de licitações, que vai a votação.

2 VAZ, G. J. Breves considerações sobre os dispute boards no direito brasileiro. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, p. 140-179, v. 3, n. 10, 2006.

3 RANZOLIN, Ricardo. A eficácia dos dispute boards no direito brasileiro. Revista de arbitragem e mediação. v. 52, ano 14, p. 197-219. São Paulo: Ed. RT, jan./mar. 2017.

4 MACHADO, Matheus Oliveira. A Aplicabilidade dos Dispute Boards no Regime Diferenciado de Contratações Públicas. Revista de Doutrina e Jurisprudência/Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, Vol. 110, n. 1, jul./dez, 2018. p. 13.

5 RIBEIRO, A. P. B.; RODRIGUES, I. C. M. Os Dispute Boards no Direito Brasileiro. Revista Direito Mackenzie, v. 9, n. 2, p. 129-159.

6 MARCONDES, A. F. M. Os dispute boards e os contratos de construção. In: MARCONDES, F. (Org.). Direito da construção: estudos sobre as várias áreas do direito aplicadas ao mercado da construção. São Paulo: PINI, 2014.

7 WALD, Arnoldo. A arbitragem contratual e os dispute boards. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, v. 2, n. 6, p. 9-24, jul./set. 2005, p. 14.

8 The Dispute Resolution Board Foundation (DRBF).

9 VELAZCO, M. L.; TURZI, M. L. Dispute board: o panel técnico permanente uma eficaz alternativa para la solución de conflictos durante la construcción. In: MARCONDES, F. (Org.). Direito da construção: estudos sobre as várias áreas do direito aplicadas ao mercado da construção. São Paulo: PINI, 2014.

10 BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. REsp 1569422/RJ. Terceira Turma. Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Julgado em: 26/04/2016. Publicado em: 20/05/2016.

Leonardo Marquezze Pozzebon

Leonardo Marquezze Pozzebon

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Paraná e membro do Grupo de Mediação e Negociação da Universidade Federal do Paraná.

Mariana de La Cruz Faxina

Mariana de La Cruz Faxina

Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná, membro do Grupo de Mediação e Negociação da Universidade Federal do Paraná e colaboradora no setor jurídico da MadeiraMadeira Comércio Eletrônico S/A.

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