Pagamento de serviços ao exterior - mais um capítulo
Não houve alteração da jurisprudência do STJ, mas a adequação ao caso concreto.
quarta-feira, 6 de janeiro de 2021
Atualizado às 10:02
Recentemente foi publicada uma notícia cuja manchete é "STJ muda de entendimento e aceita tributação de remessas ao exterior". Como é assunto que estudo há alguns anos e já tive oportunidade de manifestar minha opinião1, fui surpreendida pela suposta - e infelizmente usual - mudança de entendimento do Superior Tribunal de Justiça. No entanto, o título não refletiu a conclusão do julgamento. Ainda não motivos para a Procuradoria da Fazenda Nacional comemorar.
A matéria refere-se ao REsp 1.759.081/SP, julgado em 15 de dezembro de 2020 pela 2ª turma do STJ, no qual foi tratada a tributação de serviços técnicos à luz do tratado para evitar dupla tributação - TDT entre o Brasil e a Espanha.
A controvérsia não é nova e já havia sido apreciada pelo STJ em 2015 e 2020 nos REsp 1618897/RJ e 1272897/PE, ambos relatados pelo Ministro Napoleão Nunes Maia Filho2.
Aliás, a jurisprudência da 1ª turma do é firme no sentido de que os tratados para evitar dupla tributação impedem a incidência de imposto de renda na fonte sobre serviços sem transferência de tecnologia. Confira-se a decisão da I. Ministra Regina Helena Costa, de outubro de 2020:
"TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. APLICABILIDADE. AGRAVO INTERNO QUE NÃO IMPUGNA TODOS OS FUNDAMENTOS DO DECISUM. CONCORDÂNCIA EXPRESSA DA PARTE RECORRENTE COM O CAPÍTULO AUTÔNOMO NÃO IMPUGNADO. POSSIBILIDADE DE EXAME DO MÉRITO DA IRRESIGNAÇÃO. NÃO APLICAÇÃO DA SÚMULA N. 182/STJ. TRATADO INTERNACIONAL. IRRF. NÃO INCIDÊNCIA. REMESSAS AO EXTERIOR. PAGAMENTO POR SERVIÇOS SEM TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA. NATUREZA DO VALORES REMETIDOS AO EXTERIOR. ACÓRDÃO EMBASADO EM PREMISSAS FÁTICAS. REVISÃO SÚMULA N. 7/STJ. APLICAÇÃO DE MULTA. ART. 1.021, § 4º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. DESCABIMENTO.
(...)
III - Este Superior Tribunal de Justiça tem firme posicionamento segundo o qual não incide IRRF sobre remessas ao exterior decorrentes de contratos de prestação de assistência e de serviços técnicos, sem transferência de tecnologia, quando existente tratado para evitar a dupla tributação, devendo o termo "lucro da empresa estrangeira" ser interpretado como lucro operacional previsto nos arts. 6º, 11 e 12 do Decreto-lei n. 1.598/1977, compreendido como "o resultado das atividades, principais ou acessórias, que constituam objeto da pessoa jurídica", aí incluído o rendimento pago como contrapartida de serviços prestados.
(...)"
(STJ, AgInt no REsp 1890708 / SP, Relatora Min. Regina Helena Costa, 1t, J. 26.10.2020, Dje 29.10.2020)
A decisão do REsp 1.759.081/SP, no qual foi relator o I. Ministro Mauro Campbell Marques, não representa uma mudança na jurisprudência do STJ.
Primeiro, porque sequer houve julgamento de mérito por esse Tribunal. A conclusão da 2ª turma foi que de dar provimento ao Recurso Especial da Fazenda Nacional, para que seja suprida a omissão do Acórdão recorrido. Assim, os autos retornaram à Corte de origem para que sejam analisados dois pontos:
"(17.1.) a natureza do contrato que enseja a remessa (se há ou não pagamento de "royalties" embutidos, se há enquadramento no protocolo do tratado estendendo o conceito de "royalties", se a prestação de serviços se dá por profissionais independentes se há enquadramento no protocolo do tratado estendendo o conceito de "profissões independentes"); e
(17.2.) a ausência de hibridismo em relação à classificação dos rendimentos que possa levar à dupla não tributação internacional (se o enquadramento do rendimento é idêntico no país da fonte e no da residência)."
Por enquanto, o precedente da 2ª Turma do STJ que efetivamente apreciou o mérito é o REsp 1.161.467/RS, no qual foi relator o ministro Castro Meira e que aplicou o artigo 7 dos TDTs com a Alemanha e o Canadá3:
"No caso, o art. VII das Convenções Brasil-Alemanha e Brasil-Canadá deve prevalecer sobre a regra inserta no art. 7º da lei 9.779/99, já que a norma internacional é especial e se aplica, exclusivamente, para evitar a bitributação entre o Brasil e os dois outros países signatários. Às demais relações jurídicas não abarcadas pelas Convenções, aplica-se, integralmente e sem ressalvas, a norma interna, que determina a tributação pela fonte pagadora a ser realizada no Brasil."
Segundo, porque a distinção verificada nos Protocolos dos TDTs deve ser observada em seu contexto e de acordo com a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados - CVDT (incorporada pelo Decreto 7030/09).
Embora todos os TDTs celebrados pelo Brasil sigam o modelo da OCDE, em seus respectivos Protocolos, alguns equiparam a royalties os pagamentos por prestação de serviços técnicos e assistência técnica, por exemplo África do Sul, Bélgica, Canadá, Chile, China, Portugal e outros. Por outro lado, os TDTs com Áustria, Finlândia, França, Japão e Suécia não admitem tal equiparação4.
O art. 26 da CVLT determina que "todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé" e seu art. 27 estabelece que "uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.". Por isso, a principal regra de interpretação dos tratados (art. 31) é "um tratado deve ser interpretado de boa-fé segundo o sentido comum atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo e finalidade."
A finalidade dos TDTs é evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal e para tanto, é necessário observar a qualificação do rendimento em cada um dos Estados envolvidos. Se o Brasil classifica "serviços técnicos" como "royaties" e cobra IRRF, mas a Espanha os classifica como "lucros das empresas", o imposto pago aqui não será dedutível lá. Haverá, portanto, dupla tributação o que frustra o objetivo do TDT.
Nesse sentido, os comentários ao modelo da OCDE (que são vinculantes aos países membros), devem ser levados em consideração5. O artigo 12 do modelo contem uma definição de royalties, que no TDT Brasil - Espanha inclui: "as remunerações de qualquer natureza pagas pelo uso ou pela concessão do uso de direitos de autor sobre obras literárias, artísticas ou científicas (inclusive os filmes cinematográficos, filmes ou fitas de gravação de programas de televisão ou radiodifusão) , de patentes, marcas de indústria ou de comércio, desenhos ou modelos, planos, fórmulas ou processos secretos, bem como pelo uso ou concessão do uso de equipamentos industriais, comerciais ou científicos e por informações correspondentes à experiência adquirida no setor industrial, comercial ou científico. Tudo gira em torno de ativos intangíveis relacionados a tecnologia, know how e inovação. Esse é o critério que distingue o pagamento de royalties do pagamento lucros.
Os comentários da OCDE ao artigo 12, o parágrafo 11 afirma que royalties são vinculados ao know how, a informações confidenciais industriais, comerciais e cientificas que tem aplicação prática na empresa e trazem beneficio econômico. E, a seguir, afirma que não são royalties novas informações obtidas em decorrência da prestação de serviços solicitada pelo contratante6.
No contato de know-how o contratante usa seu conhecimento especial e experiencia, mas não executa nada em favor do contratante.
Por outro lado, no contrato de prestação de serviços, o prestador usa seu conhecimento usual e executa o serviço diretamente para o contratante. O parágrafo 11.2. dos comentários da OCDE reconhecem que os pagamentos de prestação de serviços estão qualificados no artigo 7 (lucros das empresas) e não são royalties7.
A seguir, o parágrafo 11.4 dos referidos comentários exemplifica pagamentos que não são royalties, mas simples prestação de serviços:
- Pagamentos de serviços pós vendas;
- Pagamentos de serviços prestados pelo vendedor para o comprador, decorrentes de garantia;
- Pagamentos de assistência técnica pura;
- Pagamentos por uma lista de potenciais consumidores feita especificamente para o adquirente;
- Pagamentos pela opinião de um engenheiro, advogado ou contador;
- Pagamento por serviços prestados de modo eletrônico (por acesso remoto).
A simples assistência técnica e serviços de engenharia, advocacia, ou contabilidade não são considerados royalties pelos comentários da OCDE e tampouco devem ser tratados como tal pelos países membros, i.e., Austrália, Áustria, Bélgica, Canada, Chile, Colômbia, República Tcheca, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Hungria, Islândia, Irlanda, Israel, Itália, Japão, Coreia, Latvia, Lituânia, Luxemburgo, México, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Polônia, Portugal, República Eslovaca, Espanha, Suécia, Suíça, Turquia, Reino Unido e Estados Unidos.
Como se depreende, deve ser analisado o contrato. Uma coisa é contratar serviços técnicos ou assistência técnica diretamente relacionada aos royalties8, por exemplo, adquirir direitos de uso de um equipamento industrial e e contratar a assistência técnica. Outra coisa e contratar serviços técnicos sem qualquer vinculação aos direitos subjacentes ao royalty, por exemplo, contratar serviços de segurança de dados não relacionados ao referido equipamento industrial. Deve-se observar a causa jurídica do pagamento.
Essa é a razão pela qual o C. STJ deu provimento ao recurso especial da Fazenda Nacional e determinou que o Tribunal de origem analise a natureza do contrato que enseja a remessa, para identificar se há ou não pagamento de "royalties" embutidos. Uma simples prestação de serviços sem know how não pode ser considerada royalties e deve ser tratada como lucro das empresas do art. 7 do TDT.
Como adiantamos, não houve alteração da jurisprudência do STJ, mas a adequação ao caso concreto. E se for identificado que houve uma simples prestação de serviços de engenharia pela empresa residente na Espanha, deve ser afastada a incidência do IRRF pela aplicação do art. 7 do TDT Brasil - Espanha.
___________
1- OKUMA, Alessandra. A importação de serviços técnicos. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-importacao-de-servicos-tecnicos-17092020
2- "TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. PREVALÊNCIA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS TRIBUTÁRIOS SOBRE A NORMA DE DIREITO INTERNO. CONCEITO DE LUCRO. INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA. EMPRESA COM SEDE NA ESPANHA E SEM ESTABELECIMENTO PERMANENTE INSTALADO NO BRASIL. TRATADO TRIBUTÁRIO CELEBRADO ENTRE A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E O REINO DA ESPANHA. Decreto 76.975/76. COBRANÇA DE TRIBUTO QUE DEVE SER EFETUADA NO PAÍS DE ORIGEM (ESPANHA). RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A jurisprudência desta Corte Superior orienta que as disposições dos Tratados Internacionais Tributários prevalecem sobre as normas jurídicas de Direito Interno, em razão da sua especificidade, ressalvada a supremacia da Carta Magna. Inteligência do art. 98 do CTN. Precedentes: Resp 1.161.467/Rs, Rel. Min. Castro Meira, Dje 1.6.2012; Resp 1.325.709/Rj, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Dje 20.5.2014.
2. O Tratado Brasil-Espanha, objeto do Decreto 76.975/76, dispõe que os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só são tributáveis neste mesmo Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro Estado por meio de um estabelecimento permanente aí situado.
3. O termo lucro da empresa estrangeira deve ser interpretado não como lucro real, mas como lucro operacional, como o resultado das atividades, principais ou acessórias, que constituam objeto da pessoa jurídica, incluído, o rendimento pago como contrapartida de serviços prestados.
4. Parecer do MPF pelo conhecimento e provimento do recurso.
5. Recurso Especial da IBERDROLA ENERGIA S/A provido para assegurar o direito da recorrente de não sofrer a retenção de imposto de renda sobre a remuneração por ela percebida, nos termos que dispõe o Tratado Tributário firmado entre a República Federativa do Brasil e o Reino da Espanha."
(STJ, REsp 1272897-PE, Rel Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, j. 19.11.2015, DJe 09.12.2015)
3- STJ, REsp 1161467 / RS, Rel. Min. Castro Meira, 2T, j. 17.05.2012 e DJe 01.06.2012.
4- A Receita Federal do Brasil aceitou que o pagamento de serviços técnicos ou de assistência técnica não devem sofrer a incidência do IRRF no Brasil, o que foi refletido nas Soluções de Consulta COSIT 109/16 (Finlândia), 153/15 e 501/17 (França) e 65/18 (Suécia).
5- Também por força do art. 31, §2, 'b' da CVDT: Art. 31(...) 2. Para os fins de interpretação de um tratado, o contexto compreenderá, além do texto, seu preâmbulo e anexos:
a)qualquer acordo relativo ao tratado e feito entre todas as partes em conexão com a conclusão do tratado;
b)qualquer instrumento estabelecido por uma ou várias partes em conexão com a conclusão do tratado e aceito pelas outras partes como instrumento relativo ao tratado.
6- It generally corresponds to undivulged information of an industrial, commercial or scientific nature arising from previous experience, which has practical application in the operation of an enterprise and from the disclosure of which an economic benefit can be derived. Since the definition relates to information concerning previous experience, the Article does not apply to payments for new information obtained as a result of performing services at the request of the payer.
7- 11.1 In the know-how contract, one of the parties agrees to impart to the other, so that he can use them for his own account, his special knowledge and experience which remain unrevealed to the public. It is recognised that the grantor is not required to play any part himself in the application of the formulas granted to the licensee and that he does not guarantee the result thereof.
11.2 This type of contract thus differs from contracts for the provision of services, in which one of the parties undertakes to use the customary skills of his calling to execute work himself for the other party. Payments made under the latter contracts generally fall under Article 7
8- Remunerações de qualquer natureza pagas pelo uso ou pela concessão do uso de um direito de autor sobre uma obra literária, artística ou científica, inclusive os filmes cinematográficos, de uma patente, de uma marca de fábrica ou de comércio, de um desenho ou de um modelo, de um plano, de uma fórmula ou processo secreto, bem como pelo uso ou pela concessão do uso de um equipamento industrial, comercial ou científico e por informações concernentes à experiência adquirida no setor industrial, comercial ou científico, conforme o modelo da OCDE.