Intervenção estatal: O Estado como inimigo da livre concorrência
Num ambiente de livre mercado, práticas abusivas podem ocorrer. Nessa seara, é autorizada a atuação estatal, o que deve se dar como medida protetiva e, se necessário, cautelar.
terça-feira, 5 de janeiro de 2021
Atualizado às 13:44
A livre iniciativa está contemplada em nossa Constituição como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e possui expresso capítulo referente aos princípios da atividade econômica, nos termos dos artigos 1º, inciso IV, e 170.
Como se sabe, tais dispositivos atribuem à iniciativa privada a liberdade de comércio e constitui a base da ordem econômica, pois, ao Estado, cabe apenas uma função supletiva, nos casos de exploração da atividade econômica quando necessária à segurança nacional ou relevante interesse coletivo.
Também, como princípio fundamental da Ordem Econômica, a livre concorrência se materializa como sendo uma autorização concedida aos agentes econômicos para que estes possam adentrar no mercado e agirem livremente sobre a oferta e demanda.
Num ambiente de livre mercado, práticas abusivas podem ocorrer. Nessa seara, é autorizada a atuação estatal, o que deve se dar como medida protetiva e, se necessário, cautelar.
Partindo dessa premissa, o Ministro Eros Grau1, subdivide as formas de intervenção em (i) intervenção por absorção ou participação, casos em que o Estado venha a atuar no domínio econômico; (ii) intervenção por direção, e (iii) intervenção por indução. Estas duas últimas ocorrem quando a atuação ocorrer sobre o domínio econômico, como nas hipóteses em que estabelece normas de conduta (atuação reguladora) ou políticas de benefícios (atuação mediante incentivos).
Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado acaba por delimitar espaços concorrenciais. No âmbito do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência - SBDC, cabe ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE o papel de preservar a livre concorrência e de reprimir o abuso do poder econômico2, observadas suas atribuições definidas pela lei 12.529 de 2011.
Portanto, no Brasil, o CADE é o principal órgão a cuidar de assuntos relativos à garantia da livre concorrência no mercado.
Ocorre, porém, que, por vezes, a atuação do Estado acaba por gerar prejuízos à concorrência perfeita3.
Ao intervir na atividade econômica, revertido de fundamentos normativos e sociais que justificam sua atuação, o Estado acaba por gerar efeito reverso ao pretendido institucionalmente, gerando concentração de mercado em decorrência de sua presença, que em sua atuação reguladora, por vezes fomenta de maneira incisiva determinada atividade empresarial ou mesmo cria regras demasiadamente complexas e a serem cumpridas por seleto grupo, beneficiando os empresários "amigos do rei".
Conforme definido pelo próprio CADE, em seu sítio eletrônico:
Em um mercado em que há concorrência entre os produtores de um bem ou serviço, os preços praticados tendem a manter-se nos menores níveis possíveis e as empresas precisam buscar constantemente formas de se tornarem mais eficientes para que possam aumentar os seus lucros. À medida que tais ganhos de eficiência são conquistados e difundidos entre os produtores, ocorre uma readequação dos preços, que beneficia o consumidor. Assim, a livre concorrência garante, de um lado, os menores preços para os consumidores e, de outro, o estímulo à criatividade e à inovação das empresas.
Em outras palavras, a atuação do Estado é que muitas vezes gera ato de concentração de mercado, que não fosse a intervenção estatal, naturalmente poderia se autorregular.
Ao comentar sobre monopólio, professor André Luiz Santa Cruz Ramos traz preciosa crítica à atuação do Estado no livre mercado4:
Monopólio é uma concessão de privilégio especial pelo Estado, reservando uma determinada área de produção a um indivíduo ou grupo. A entrada nessa área de produção a um indivíduo ou grupo. A entrada nessa área é proibida aos outros e essa proibição é imposta pelos agentes oficiais do estado.
Não existe o problema do monopólio como um problema especial dos mercados que exige uma ação estatal para ser resolvido. De fato, só quando Estado entra em cena é que surge um problema real, não ilusório, do monopólio e dos preços monopolísticos.
Não há como negar: é o Estado quem cria monopólios, duopólios e oligopólios, porque só ele pode criar barreiras legais à entrada de concorrentes. Sem essas barreiras, a concorrência sempre existirá, mesmo em mercados com alta concentração. Em suma: livre mercado e monopólio são expressões antitéticas, assim com intervenção estatal e concorrência também o são.
Como exemplo de indevidas restrições à concorrência pelo manejo de ações estatais, em prejuízo ao ambiente concorrencial, podemos citar o recente estabelecimento de preço máximo para a revenda de Gás Liquefeito de Petróleo - GLP, popularmente conhecido como o gás de cozinha, no âmbito do Estado de São Paulo.
Atento ao tema, o CADE emitiu nota técnica5 alertando sobre os prejuízos ao ambiente concorrencial com riscos de fechamento temporário ou até mesmo falência de revendedores do gás de cozinha, com possível escassez do produto ao consumidor final, em razão da citada atuação estatal.
Com a devida vênia, não cabe ao Estado estabelecer o preço máximo para a venda de determinado produto, mas, sim, ao próprio mercado e sua mão invisível6.
Ninguém melhor que o próprio mercado para definir suas regras, pois conhecedor da realidade econômica daquele segmento.
Ao fixar o limite do preço, reduzindo a margem de atuação do particular, o Estado acaba por favorecer as grandes empresas, que suportarão eventual perda de faturamento por maior período, enquanto os menores comércios acabarão sendo eliminados um a um, já que não dispõem de igual suporte financeiro.
Diversos são os casos como o mencionado acima, em que a intervenção do Estado na economia via fixação de preços para determinados setores acaba por criar, na prática, redução de fornecedores ou até monopólio.
O poder/dever do Estado à intervenção na economia, em quaisquer de suas modalidades, não pode representar prejuízo maior ao ambiente concorrencial, como o faz ao definir preços de produtos ou serviços privados, sob pena de responsabilização civil objetiva do Ente Público.
Assim, nos parece razoável admitir como regra, a adoção de mercados livres, autorregulados, cabendo ao Estado intervir somente quando indispensável, como em caso de infração concorrencial.
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1 A ordem econômica na Constituição de 1998; 9ª edição. São Paulo: Malheiros. 2015, p. 143.
2 Conselho Administrativo de Defesa Econômica.
3 Concorrência Perfeita: mercado em que nenhum participante tem poder de mercado para definir o preço de um produto homogêneo. Também conhecida como concorrência pura.
4 Os fundamentos Contra o Antitruste, Edição 1, ano 2015, editora Forense.
5 Conselho Administrativo de Defesa Econômica.
6 Mão invisível do mercado: auto-organização.