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Vacinas contra a covid-19 e o "diz que me diz": É preciso entender o que diz a legislação

O presente artigo busca discorrer sobre a legislação relacionada às vacinas contra a covid-19, esmiuçando alguns de seus dispositivos de forma a auxiliar na compreensão deste tema pungente e relevante.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Atualizado em 5 de janeiro de 2021 07:08

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

"Tentamos nos cercar com o máximo de certezas, mas viver é navegar em um mar de incertezas, através de ilhotas e arquipélagos de certezas nos quais nos reabastecemos"1. A cada novo acontecimento, muitas descobertas que, não por poucas vezes, são acompanhadas de inúmeras dúvidas, receios e inseguranças. Com a covid-19 não foi diferente. Até mesmo a Organização Mundial da Saúde (OMS) teve que se retratar quanto à objeção do uso de ibuprofeno e outros anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) por serem eles um fator de agravamento da doença. Segundo a própria OMS, o desencontro de suas decisões foi provocado por uma "tuitada" do Ministro da Saúde francês2.

A comunidade científica enfrentou um grande desafio para definir protocolos de prevenção e tratamento da doença, pois estes tiveram que ser elaborados de forma concomitante à rápida disseminação da covid-19. Os governos, por sua vez, tinham o semelhante desafio de agir de forma célere, não poucas vezes por meio da criação de legislação específica que definisse, enquanto perdurasse a pandemia, medidas diversas de forma a reduzir ao máximo o número de infectados e, consequentemente, o de pessoas acometidas pela doença. No Brasil foi declarada no início de fevereiro a Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN)3 e, a partir de então, muitas ações foram adotadas pelas autoridades públicas, sendo algumas delas motivo de embate no Supremo Tribunal Federal (STF), como no julgamento da ADIn 6.3414

Em âmbito federal foi promulgada a lei 13.979, a qual discorre sobre as medidas para enfrentamento da doença. Depois de sua alteração feita pela lei 14.006, a qual permitiu a autorização5 excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia do coronavírus, desde que registrados por pelo menos uma das autoridades sanitárias estrangeiras elencadas na lei6 e autorizados à distribuição comercial em seus respectivos países (art. 3º, VIII, "a", 1 a 4).

Considerando que medicamento é definido como sendo produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico (art. 4º, II, lei 5.991/73), dúvidas não restam de que vacinas contra a covid-19 foram contempladas pela lei 13.979, a qual também determinou que "[a] autorização de que trata o inciso VIII do caput deste artigo deverá ser concedida pela Anvisa em até 72 (setenta e duas) horas após a submissão do pedido à Agência, dispensada a autorização de qualquer outro órgão da administração pública direta ou indireta para os produtos que especifica, sendo concedida automaticamente caso esgotado o prazo sem manifestação" (art. 3º. § 7º-A).

Embora não seja pretensão nos limitarmos à interpretação literal, é preciso admitir que as palavras possuem significado. Nessa linha, a utilização do verbo "deverá" no excerto acima parece ter retirado da ANVISA a possibilidade de deliberar a respeito, não cabendo outra decisão senão a concessão da autorização excepcional e temporária, desde que cumpridos os demais critérios acima, quais sejam: i) apenas as atividades de importação e distribuição de vacinas podem ser autorizadas; ii) é necessário o registro em uma das quatro autoridades estrangeiras mencionadas na lei 13.979; e iii) a distribuição comercial da vacina deve estar autorizada em seus respectivos países. Atendidos tais requisitos, inútil seria o atendimento do que prevê a recém publicada RDC 445/20 da Anvisa, a qual estabelece a autorização temporária de uso emergencial, em caráter experimental, de vacinas Covid-19 para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do surto do novo coronavírus (SARS-CoV-2). Esta pode ser aplicada somente se não atendidos alguns dos critérios acima transcritos.

De qualquer forma, não se pode negar que à Agência vem sendo necessário atuar de maneira igualmente rápida no sentido de acompanhar a atual crise sanitária mundial7. Sendo delineados na RDC 444/20 os requisitos a serem seguidos pelas empresas para a solicitação de autorização de uso emergencial, ainda que temporária, não se consegue vislumbrar a inércia das empresas em submeter seus pedidos à Anvisa. A falta de um plano nacional claro de imunização por parte do Ministério da Saúde não pode ser justificativa para tal comportamento. Desse modo, algumas indagações são inevitáveis a esse respeito: estariam as empresas aguardando a judicialização do tema para que o STF decida a respeito, de modo que este decida autorizar a importação, distribuição ou fabricação sem que haja uma análise técnica da ANVISA? Que informações técnicas poderiam ser solicitadas às empresas pelo STF que ainda não foram apresentaram à Anvisa? E seria o STF, data vênia, capaz de se debruçar sobre documentos técnicos e científicos para substituir a Agência reguladora em sua análise? Afinal, se para que ela possa autorizar medidas de caráter excepcional e temporário devem se debruçar em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde (art. 3º, § 1º, lei 13.979), por que admitir que pelo STF tais evidências poderiam ser ignoradas? Não estaria o STF, neste caso, extrapolando suas competências definidas pela Constituição, da qual ele próprio deve obedecer e proteger? Ao decidir pela autorização, ainda que temporária, da imunização com qualquer vacina registrada em qualquer país, não estaria o STF negando ao poder legislativo sua competência constitucional? Se o legislativo considerou necessário o registro em apenas quatro autoridades sanitárias estrangeiras, qual seria o critério para que o STF decida de modo diferente? Provavelmente muitas dessas perguntas ainda requerem uma ponderada reflexão antes de que as respostas sejam elaboradas, pois nos parece haver mais dúvidas do que certezas a respeito.

No que diz respeito à quase rotineira judicialização em torno de assuntos envolvendo a covid-19, cabe-nos, respeitosamente, discordar do que foi apontado pela OAB no pedido de liminar feito na ADPF 7708. No documento a OAB pediu a dispensa do referido registro na Anvisa caso o registro seja concedido por autoridades sanitárias de outros países. Veja, se for concedido o registro das vacinas contra a covid-19 pela FDA, EMA, PMDA e NMPA, já previu a lei 13.979 que a Anvisa deve conceder, no prazo máximo de 72 horas, a autorização excepcional e temporária. Porém, não prevê a referida lei que tal autorização seja concedida caso o registro seja deferido por quaisquer outros países. Nesse caso, é o pedido de registro definitivo que deve ser feito, para o qual é exigido o registro prévio do medicamento no país de origem ou no país em que ele é comercializado ou, ainda, por autoridade sanitária internacional9 (ex. OMS, OPAS, entre outros), de acordo com o artigo 18, caput e § 1º, lei 6.360) e cujo prazo a ser observado pela Agência é aquele estabelecido pela lei 13.411/16, que alterou alguns dispositivos da lei 6.360/76. Talvez o equívoco no pedido da OAB fora feito ao confundir "registro" com "autorização excepcional". O primeiro é duradouro (embora não dispense a renovação periódica) e deve estar fundamentado por todas as provas científicas possíveis de que o benefício é superior ao risco, depois de concluídas todas as fases da pesquisa clínica. O segundo, por outro lado, não se confunde com o registro, pois consiste em uma autorização por tempo limitado e excepcional diante do cenário ora enfrentado, embora também deva ser fundamentado em evidências científicas (art. 3º, § 1º, lei 13.979).

Tanto é verdade o entendimento acima que a própria autoridade sanitária do Reino Unido (MHRA), citada pela OAB na inicial10 da ADPF 770, afirmou, ao permitir a imunização dos ingleses com a vacina da Pfizer/BioNTech, que "this authorization is not a marketing authorization"11. E é nesse sentido que a petição inicial também apresentou afirmação equivocada, pois foi afirmado pela OAB, ao mencionar a autorização excepcional concedida pela MHRA, que "há a existência de registro do medicamento em renomada agência de regulação no exterior". Conforme acima delineado, verdade seja dita: não há, até o momento, registro de vacina para a covid-19 tanto no MHRA como nas demais autoridades sanitárias descritas na lei 13.979, não podendo ser exigido da Agência o cumprimento do prazo para análise previsto em seu art. 3º, § 7º-A.

Todavia, nada impede a formulação da pergunta: e se houvesse o registro na FDA, EMA, PMDA e NMPA? Neste caso, cumpridos os demais critérios existentes na própria lei, autorizadas estariam a importação e a distribuição, mas não a fabricação12 ou a produção. E é por isso que vemos com preocupação a decisão do Instituto Butantan ao iniciar, sem a conclusão da fase 3 dos estudos clínicos e sem o devido registro concedido pela Anvisa, a produção da vacina Coronavac13, pois está ele descumprindo o que estabelece o artigo 12 da lei 6.360/76 e, consequentemente, cometendo infração sanitária prevista no artigo 10, IV, da lei 6.437/77, podendo ser aplicada como pena a inutilização dos lotes produzidos durante o período de irregularidade. Se isso será feito não se sabe, mas cabe-nos apontar que há, sim, essa possibilidade.

Concluindo, com a evolução das pesquisas de vacinas e os resultados promissores de algumas delas, é natural que haja o anseio social para que tais vacinas sejam disponibilizadas o quanto antes à população, de forma que a vida retorne ao "normal". Essa vem sendo a causa de discussões acaloradas (e por vezes desarrazoadas e politizadas) e até mesmo ações judiciais para que sejam disponibilizadas vacinas o quanto antes e a qualquer preço. Contudo, é necessário compreender e respeitar a legislação específica a respeito e confiar nas Instituições envolvidas, sobretudo a Anvisa, a qual deve fazer jus ao seu reconhecimento internacional e tomar decisões de forma isenta ter como único foco a preservação da saúde das pessoas, como ela geralmente tem feito.

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1 Excerto da entrevista do filósofo Edgar Morin à Fronteiras do Pensamento, disponível em clicando aqui. Acesso em: 25 abr. 2020.

2 A leitura dessa confusão pode ser consultada em clicando aqui

3 Aos interessados, sugerimos a leitura da Portaria nº 188, de 03 de fevereiro de 2020, do Ministério da Saúde.

4 No julgamento desta ADI foi confirmado o entendimento de que as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória (MP) 926/20 para o enfrentamento do novo coronavírus não afastariam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios. Disponível em: clicando aqui

5 A competência para tal autorização pertence à Anvisa, segundo dispõe o art. 3º, § 7º, IV da mencionada lei.

6 É dizer, FDA, EMA, PMDA e NMPA

7 A ANVISA disponibilizou uma "linha do tempo" com as medidas por ela adotadas para o enfrentamento da pandemia, cuja leitura é possível no endereço eletrônico clicando aqui

8 O documento pode ser acessado clicando aqui

9 Que não se deve confundir com autoridade sanitária estrangeira, como FDA, MHRA, TGA, PMDA, entre outras.

10 Veja o documento completo clicando aqui

11 Sugerimos a leitura do documento original disponível clicando aqui

12 Atividade definida pelo art. 3º, XI, da lei 6.360/76 como sendo "todas as operações que se fazem necessárias para a obtenção dos produtos abrangidos por esta Lei".

13 A leitura da notícia pode ser feita clicando aqui

Camila Alves Areda

Camila Alves Areda

Doutora em Ciências Farmacêutica pela FCFRP-USP; professora do curso de Farmácia da Faculdade de Ceilândia - Universidade de Brasília; Professora do programa de pós-graduação em propriedade intelectual e transferência de tecnologia para inovação.

Adriano Olian Cassano

Adriano Olian Cassano

Acadêmico de Direito na Universidade de Brasília. Farmacêutico-bioquímico graduado pela FCFRP-USP. Especialista em regulação e vigilância sanitária.

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