Violação infravermelha a privacidade
O período pandêmico provoca uma necessidade de ações públicas para contenção ao avanço da doença, o que proporciona a relativização de direitos fundamentais.
quarta-feira, 30 de dezembro de 2020
Atualizado às 15:40
A humanidade foi surpreendida por uma catástrofe em saúde pública com dimensões globais provocada pelo novo coronavírus, que intensificou o uso dos meios telemáticos como ferramenta de controle da pandemia, buscando inibir seu avanço. Como um dos mecanismos utilizados temos a geolocalização realizada através dos smartphones, para contenção de aglomerações, bem como, a aferição de temperatura como requisito de entrada em estabelecimentos públicos e privados. É essa dicotomia entre política de saúde, direito coletivo e o direito à privacidade, assim como sua violação, que pretendemos abordar.1
O período pandêmico provoca uma necessidade de ações públicas para contenção ao avanço da doença, o que proporciona a relativização de direitos fundamentais, como o direito de ir e vir, por exemplo, na proibição de circulação de pessoas e aglomeração, que culminou no intenso monitoramento ao indivíduo. Essa medida restritiva é uma demonstração de como a tecnologia pode ser aliada no controle da pandemia, quando utilizada com critérios bem definidos, como o respeito ao anonimato dos geolocalizados.
Relativizar um direito individual ou flexibiliza-lo em prol da coletividade, só se justifica quando estamos falando de esforço na preservação da vida, porém, o que se pretende na aferição da temperatura, não é o controle da pandemia, mas a demonstração falsa de proteção e confiança na circulação do local, o que veremos, não existir.2
No tocante a aferição da temperatura do indivíduo realizado através de termômetro infravermelho, esse é tido como mecanismo de pretenso controle profilático. Esse procedimento, trata-se da coleta de um dado pessoal, especificamente um dado de saúde, sendo esse considerado, nos termos da Lei Geral de Proteção de Dados, lei 13.709/18, em seus artigos 11 a 13, como dado sensível. Dados pessoais sensíveis, para melhor compreensão do texto, são aqueles relacionados às características próprias do indivíduo, e que possam indicar suas escolhas no tocante a sua origem, convicção religiosa, opinião política, referente a sua saúde ou vida íntima.3 Destacamos que o tratamento de um dado sensível deve ser realizado com cautela, especialmente diante da necessidade de sua anonimização. Entretanto, a forma como se dá a coleta de temperatura, muitas vezes realizada em ambiente público, sem restrição a terceiros, proporciona uma exposição equivocada e desnecessária do cidadão, e quer nos parecer esbarrar em algumas premissas que trazem insegurança jurídica quanto a sua validade e eficiência.
Afora a questão destacada, a coleta de dados sensíveis deve ser realizada por profissionais de saúde qualificados, especialmente pelo que dispõe os artigos 5º da Lei 13.979/2020, fato que não se verifica na maioria dos casos, o que reforça o afastamento da regularidade do ato. Além disso, o fato de um indivíduo contar com hipertermia, segundo os critérios aqui dispostos, não representa que ele está contaminado com o novo Corona vírus. O contrário também é verdadeiro, já que o fato de uma pessoa não apresentar febre, não retira dela a possibilidade de estar assintomática para a doença.
Dessa maneira, fica evidente que referido procedimento não traz a possibilidade de atingir a finalidade específica que é controlar o avanço da doença. Essa coleta realizada por um profissional que não seja da área de saúde, sem a privacidade necessária, afora não ser possível confirmar a contaminação, faz cair por terra o pressuposto precípuo deste método que é a contenção da disseminação da pandemia. Esse método realizado de forma equivocada revela nítida vulnerabilidade, bem como, passível de discriminação àquele que será impedido de entrar no ambiente escolhido, seja porque se recusou a medir sua temperatura, seja porque foi constatada temperatura acima do limite permitido causando, muitas vezes, uma segregação natural e perversa, como o fato ocorrido no México, em que a Uber, plataforma digital de transporte, enviou as autoridades de saúde, dados de um passageiro infectado com a Covid-19 a fim de que esse fosse rastreado e banido do sistema dos motoristas.4
Concordamos que deva existir um esforço comunitário na tentativa de contenção da doença o que aumenta na medida em que a contaminação cresce, porém, aferir a temperatura de forma pública, sem precisão do equipamento manipulado, sem o acompanhamento de um profissional da saúde, não acompanha critérios eficientes para esse fim, bem como, não demonstra efetividade ou argumentos fundamentados para tanto. Ao redor do mundo, muitas práticas estão sendo adotadas com métodos eficazes de contenção do avanço da Covid-19, como por exemplo, coleta através de sistema de medição de índices de deslocamento das pessoas, por cidades. Essas técnicas têm como fundamento o privacy by design and by default, por pautarem uma estreita preocupação com o respeito a privacidade do cidadão, especialmente no tocante a anonimização dos dados. Ocorre que, ao pensarmos que a coleta da temperatura é realizada sem essa preocupação e até mesmo sem a possibilidade de anonimização do dado, só reforça a posição de que tal procedimento é uma violação de privacidade do indivíduo e que serve apenas para aumentar a falsa ideia de boa reputação daquele que o utiliza e que não pode ser sustentado.5
Dessa maneira, esse procedimento revela um mecanismo de exposição de dados sensíveis do cidadão, inapto a elidir qualquer possibilidade de contágio em virtude a sua ineficiência, representando autêntica invasão à vida privada e desrespeito a um direito fundamental. Sendo certo que o Estado democrático, ainda como justificativa de sobreposição ao interesse publico em relação ao privado, não pode violar de forma desarrazoada o direito a personalidade do cidadão, sob a pretensa justificativa de controle de qualquer doença, principalmente por essa metodologia ser entendida por isolada, sem critérios e vulnerável, e ao contrário de transmitir um conforto social, passa a ser provocador de insegurança ao titular do dado e a sociedade.
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1 LUCA, Cristiana de. A Geolocalização e reconhecimento facial: vilãs ou aliadas a saúde pública.
2 MOURA, Raissa. Meios de Controle a Covid 19 e a Inviolabilidade Privacidade. Acesso 30.07.2020.
3 PINHEIRO, Patricia Peck. Proteção de Dados Pessoais. Comentários a Lei 13.709/2018. Ed. Saraiva. 2019. 1ª. ed. pag.26
4 BIDLE, Sam. Coronavirus traz novos riscos de abuso de vigilância digital sobre a população. Acesso em 30.07.2020 . Disponível em clique aqui.
Alessandra Patrícia Martins Félix de Sousa
Advogada, pós-graduada em Direito Público, Direto do Trabalho e Direito e Processo Civil. Mestranda de Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa.