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Juridicidade administrativa conglobante, no limiar de uma nova legislatura municipal

Juridicidade administrativa conglobante significa dizer que a conduta administrativa será legítima quando praticada em respeito a princípios, regras e atos de vontade legitimamente expressos.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Atualizado às 09:50

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O jurista argentino Eugênio Raul Zaffaroni propôs, para o Direito Penal, a ideia da tipicidade conglobante, que, em apertada síntese, significa dizer que o estado não pode considerar como típica conduta por ele tolerada ou fomentada. Transpassada para o direito administrativo, a proposta impulsiona a releitura das formas de intervenção do estado na sociedade, mediante o exercício de poderes harmônicos e independentes entre si, com suas respectivas funções típicas e atípicas.

Não basta, porém, que os poderes clássicos de executar, legislar e julgar sejam exercidos. Igualmente insuficiente, embora relevante, seria submeter a tutela da administração pública apenas ao controle de princípios, normas e regras positivadas. A gestão do estado deve estar jungida ao fiel cumprimento dos instrumentos de manifestação volitiva, de modo a permitir que o seu efeito irradiante dê corpo a uma cultura de concertação.

Em outras palavras: juridicidade administrativa conglobante significa dizer que a conduta administrativa será legítima quando praticada em respeito a princípios, regras e atos de vontade legitimamente expressos. A lógica da discricionariedade deve estar em consonância com o respeito às manifestações de vontade legitimamente exercidas e o respeito dos efeitos delas decorrentes.

No limiar, em 2021, de nova legislatura municipal, é preciso ter essa ideia como tônica de governança: as escolhas legitimamente eleitas pela maioria não podem sucumbir ou serem acolhidas sem o prévio, amplo e efetivo exercício do contraditório.

Intervenções públicas estruturais são o resultado de anos de planejamento e de outros anos de execução. Mudanças abruptas, imotivadas e sem respaldo da análise consequencialista, positivada pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), podem dar ensejo a desastrosas desestruturações.

De bom alvitre o acompanhamento, pelos Tribunais de Contas, da governação de obras1. A descontinuidade de projetos de longo prazo distorce a lógica PDCA de governança (planejamento, desenvolvimento, controle e avaliação), que deve orientar a gestão pública. O ônus argumentativo que cumpre ao gestor exercer, para motivar a paralisação de uma intervenção pública, deve ser majorado, levando em conta, como mínimo argumentativo a ser obedecido: (I) existência de funcionalidade, ainda que parcial, das estruturas, em caso de obras já construídas; (II) inexistência de prejuízo para a prestação do serviço público, que não possa ser suportado por medida alternativa a tempo e modo plausíveis; (III) prévio e efetivo contraditório da parte eventualmente contratada, além da sociedade em geral, de modo a franquear a ponderação das consequências que poderão advir.

Ultrapassados tais requisitos, não basta a opção pela paralisação do serviço/obra, mantendo o custo e a trava de desenvolvimento. É preciso auditar para perquirir eventuais prejuízos, com o respeito inerente ao direito administrativo sancionador.

É comum, na experiência gerencial brasileira, a síntese de que "passamos pouco tempo planejando e muito tempo executando". Há que se inverter a lógica. Um planejamento adequado, colocado em prol de uma discussão pública com amplo debate com a sociedade, tem muito mais chances de alcançar os fins de interesse público. O controle social deve ser primordialmente prévio, assim como todos os demais controles internos e externos da Administração. E não apenas para o Poder Executivo. Vale também para o Legislativo. Debate franco de ideias mitiga os efeitos deletérios da assimetria informacional.

A experiência legislativa brasileira não nos anima a concluir que leis, da maneira como são elaboradas, transformam a realidade. E amiúde a revisão de leis se faz de maneira volúvel e não reflexiva, sem o necessário debate sobre as razões de ordem pública. Aqui, não se está a falar de cumprimento burocrático de formalidades. Muito menos da realização de plebiscitos ou referendos sem o necessário fomento ao debate público. Está a se desenhar a concepção essencial de democracia, enquanto processo coletivo e contínuo de construção.

Apenas a prática comezinha, que perpassa desde pequenos gestos até as chamadas escolhas trágicas - aquelas que devem ser feitas em face de problemas igualmente desafiadores -, balizam a qualidade administrativa. E apenas através de práticas educacionais transformadoras do cotidiano será possível avançar na busca por uma sociedade emancipada. A realidade faz exsurgir a necessidade de um novo processo legislativo, de uma nova juridicidade administrativa conglobante, para, aí, sim, impulsionar o primeiro passo em busca da mudança cultural tão almejada pela sociedade brasileira.

A complexa sociedade contemporânea vem percebendo a insuficiência dos objetivos2 que embasaram a teoria da tripartição dos poderes, pois: (a) hospeda uma vasta variedade de visões críticas sobre as funções e os papéis do estado; (b) não hierarquiza valores, nem fixa indicadores, com o fim de estabelecer prioridades em caso de conflito entre os objetivos e os poderes.

A tripartição de poderes padece de ambiguidades quando aplicada aos casos concretos levados aos tribunais ou às situações que lei nova pretenda vir a tutelar: tanto pode ser invocada para negar quanto para justificar a intervenção judicial ou legislativa, dependendo do compromisso que se tenha com a natureza das respectivas funções e os objetivos da separação de poderes que se tenham como prioritários.

Os tribunais e as casas legislativas tendem a fazer uso do modelo teórico como um valor ou fim em si mesmo, ao mesmo tempo em que dá suporte a concepções contrastantes do estado e suas estruturas, gerando contradições quando a teoria é posta em operação, conforme se tenha tal ou qual compromisso ideológico.

O estado do século XXI tende a ser "dirigista, discricionário e disperso". Uma multiplicidade de diferentes organizações e atores participa dos assuntos governamentais - "business of government" -, dentro e fora da estrutura administrativa estatal, mas dela recebendo repasses de recursos de toda ordem, inclusive financeiros. E vice-versa, ou seja, organizações privadas assumem encargos de gestão de atividades ditas de interesse público.

Os conflitos continuam sendo, basicamente, os que opõem o interesse coletivo ao interesse individual. Para precatá-los ou resolvê-los, a tripartição dos poderes de Montesquieu foi produto de uma época em que o poder era exercido de forma unilateral: o poder do soberano manifestado por meio de normas gerais, veiculadas por processo político "estatutário", como se fosse, para fazer-se concessão ao contratualismo rousseauniano, um contrato de adesão irrecusável: o soberano estabelecia as cláusulas e o povo a elas aderia incondicionalmente.

O exercício do poder, agora entendido como exercício de "governabilidade", é complexo e intrincado. Não se amolda ao figurino dos séculos XVII a XIX e boa parte do século XX. Do debate que por toda parte hoje se desenvolve, sobre a teoria da separação dos poderes, vêm resultando premissas e propostas ajustadas aos novos tempos, destacando-se:

  • O estado é uma construção colaborativa, cuja utilidade é a de permitir avanços mais efetivos e universalistas dos interesses individuais e coletivos, em regime de mútuo respeito e consideração;
  • Os cidadãos são sujeitos de direitos e obrigações políticas em face do estado porque este deve prover um conjunto de bens que aqueles não seriam capazes de obter individualmente;
  • A separação de poderes deve conduzir à organização de instituições estatais que atuem para assegurar que as decisões governamentais levem em conta tanto os interesses coletivos quanto os individuais; não se trata de propor que a "separação de poderes" exprima uma soberania bipolar, dualista, quase esquizofrênica, porém de considerar que o interesse público encerra noção que, embora monolítica, deve admitir a coexistência real de perspectivas divergentes acerca de qualquer ação estatal, por isto que as instituições devem estar predispostas a sopesar essas divergências e a admitir que nenhum dos poderes tem o monopólio do que é, ou não, de interesse público;
  • O novo modelo da "separação de poderes" busca extrair a unidade da divergência, visando obter resultados que a todos beneficiem, a partir de uma conjunção racional das finalidades de cada qual;
  • O interesse público constitucionalizado nas políticas públicas exige administração responsiva às necessidades e aspirações coletivas e individuais, cujos efeitos decorrerão de uma cooperação institucional coordenada, apta a inibir ações unilaterais insuscetíveis de verificação e controle, verificação e controle que correspondem ao ideário republicano e democrático;
  • O novo perfil da "separação de poderes" reclama um processo de coordenação participativa que os aproxime entre si, de forma transparente, organizada e permanente, afastadas rivalidades e disputas personalistas por lideranças, carismáticas ou não, e vedados expedientes - sigilosos ou ostensivos - de cooptação (sempre canais de desvios de recursos públicos para atender a projetos pessoais);
  • No estado democrático, administrador do interesse público constitucionalizado, o exercício do poder político é um processo permanente, interminável, de colaboração coordenada ente as instituições, cujo núcleo deve ser a governabilidade comprometida com resultados que a sociedade e os cidadãos reconheçam como benéficos para todos; vale dizer que maioria e minoria têm direitos iguais na audiência das instituições estatais e que estas, todas, têm iguais responsabilidades, no âmbito de suas respectivas competências constitucionais, na identificação e na consecução do que se deva considerar como de interesse público.

Qualquer semelhança com as medidas e contramedidas protagonizadas por Executivo, Legislativo e Judiciário, em aparente disputa pela primazia do poder, ultimamente veiculadas pelo noticiário brasileiro, não é mera coincidência e desafia, em escala planetária, estados e sociedades nas escolhas de seus destinos. Que as façam com sabedoria e prudência, esperam os cidadãos na dupla qualidade de eleitores e jurisdicionados.

Que se fomente o "neoadministrativismo"3, consistente na necessidade de  relação intra e interestatal pautada na consensualidade e no diálogo, com vistas a obter o resultado mais eficiente para a concretização de direitos fundamentais, de modo sustentável, pautado na prática educativa, preventiva e inclusiva.

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1 Confira-se o interessante estudo constante clicando aqui

2 Historicamente, podem ser citados os seguintes objetivos: (I) evitar a tirania; (II) estabelecer equilíbrio; (III) assegurar que toda lei sirva ao interesse público; (IV) estimular a eficiência governamental; (V) prevenir a prevalência da parcialidade; (VI) elevar o teor de objetividade e generalidade das lei; e (VII) impor a prestação de contas. Apud Eoin Carolan, The New Separation of Powers - A Theory for the Modern State. Oxford University Press, 2009.

3 A respeito do tema, confira-se: PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; MARÇAL, Thaís. Neoadministrativismo: limites e possibilidades. In: OLIVEIRA, Gilberto (Org.) A Boa Gestão Pública e o Novo Direito Administrativo: dos conflitos às melhores soluções práticas, no prelo.

Jessé Torres Pereira Junior

Jessé Torres Pereira Junior

Desembargador do TJ/RJ. Professor convidado da Escola de Direito Rio, da Fundação Getúlio Vargas, e da Escola Superior de Advocacia OAB/RJ.

Thaís Marçal

Thaís Marçal

Mestre em Direito pela UERJ. Advogada e árbitra listada no CBMA, CAMES e CAMESC. Coordenadora acadêmica da ESA OAB/RJ.

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