Evolução da jurisprudência sobre o novo modelo de controle de ponto por exceção à jornada regular de trabalho instituído pela lei 13.874/19
Demonstram-se os aspectos sobre a constitucionalidade do ponto por exceção regulado pela lei 13.874/2019.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2020
Atualizado às 12:38
Introdução
O controle de ponto por exceção à jornada regular de trabalho é aquele em que há marcação apenas das exceções verificadas, sendo desnecessário, então, a anotação do horário de entrada, saída e intervalos. Logo, nesse sistema de controle serão anotadas, por exemplo, horas extras, ausências, férias, abonos e licenças.
Com a entrada em vigor da lei 13.874/19, que alterou diversos dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho, houve autorização legislativa expressa para adoção do registro de ponto por exceção, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, conforme disposição contida no artigo 74, § 4º, da CLT.
A norma que instituiu o ponto por exceção buscou trazer mais simplicidade e segurança jurídica aos empregadores que desejam adotar essa nova modalidade de controle de jornada de trabalho.
A análise sobre a flexibilização das normas trabalhista é importante para demonstrar a evolução da jurisprudência em relação ao tema, bem como o estudo sobre o posicionamento jurisprudencial em relação a esse novo instituto criado pela norma celetista.
Ademais, também será objeto de abordagem alguns aspectos sobre a constitucionalidade do ponto por exceção após a edição da lei 13.874/19, com o fim de melhor compreender as balizas jurídicas sobre a validade na adoção do sistema de controle de ponto por exceção à jornada regular de trabalho.
1. Registro de Ponto por Exceção à Jornada Regular de Trabalho
1.1. Definição
Define-se o controle de ponto por exceção como aquele em que há marcação apenas do labor extraordinário eventualmente realizado, sendo desnecessário, assim, a anotação pelo empregado de seus horários de entrada, saída e intervalos. Também podem ser anotadas as ausências, atrasos, férias, abonos e licenças.
Entendeu-se ser possível a utilização dessa modalidade de controle diante da regulamentação pela Portaria 1.120/95 do Ministério do Trabalho e Emprego1 que permitiu a adoção de sistemas alternativos para delimitar o horário de trabalho.
Algumas empresas, então, buscaram na utilização do ponto por exceção uma forma de controle de jornada de trabalho que oferecia maior simplicidade e menor custo em comparação ao modelo tradicional, já que para cumprir os procedimentos referentes à anotação de horário de entrada e saída se exige constantes investimentos em recursos materiais, humanos e tecnológicos.
1.2. Flexibilização das Normas Trabalhistas
A CLT ao longo do tempo sofreu muitas mudanças, por óbvio, mas mantendo como princípio norteador máximo a regra fundamental da proteção ao trabalhador.
Ocorre que as evoluções tecnológicas nem sempre são acompanhadas pelas alterações legislativas, permanecendo a CLT estagnada no passado, inclusive, contemplando profissões que nem mais existem.
A dissonância entre a realidade e o mundo legal, se este não permitir a recepção daquela, tende a trazer um engessamento nas relações entre trabalhador e patrão, provocando consequências desagradáveis na própria cadeia produtiva. Daí porque o princípio protetor tende a se deslocar, em certa medida, do trabalhador para a proteção do trabalho, considerando que o empregado de meados do século XX não é o mesmo do século XXI.
Há que ser levado em conta, ainda, as sucessivas crises econômicas com impactos lesivos não somente ao trabalhador, mas à própria sociedade com o aumento considerável do nível de desemprego ou subemprego. Ainda que um dos princípios do direito laboral seja a alteridade (risco do negócio assumido pelo empregador, conforme artigo 2º da CLT), faz-se necessário, na modernidade em que se nota considerável aumento da competitividade e escassez produtiva, a calibragem da preservação do mercado de trabalho e do incentivo a investimentos produtivos geradores de emprego.
Não se pode olvidar que há fundamentos básicos na Constituição da República em relação à proteção do trabalho como valor social, bem como referente à valoração da livre iniciativa, conforme art. 1º, IV, da CF/88. Além disso, existem princípios norteadores de ordem econômico-financeira em relação à busca do pleno emprego (art. 170, VIII, da CF/88)2, da livre iniciativa (art. 170, parágrafo único, da CF/88)3 e redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, VII, da CF/88)4.
A flexibilização trabalhista, portanto, visa garantir a sobrevivência das atividades empresariais e manter os empregos em condições mínimas condizentes com a dignidade do trabalhador, permitindo a realização dos fundamentos da República, garantindo os valões sociais do trabalho e da livre iniciativa, aplicando-se a regra da ponderação entre interesses, ao mesmo tempo garantido a proteção ao trabalhador, harmonizando-a com a necessidade da própria manutenção dos empregos.
É bom destacar a diferença conceitual entre flexibilização e desregulamentação trabalhistas, servindo como exemplo desse último as relações cooperativistas de trabalho.5
A desregulamentação trabalhista assim é definida por Delgado (2019, p. 74):
A desregulamentação trabalhista consiste na retirada, por lei, do manto normativo trabalhista clássico sobre determinada relação socioeconômica ou segmento das relações de trabalho, de maneira a permitir o império de outro tipo de regência normativa. Em contraponto ao conhecido expansionismo do Direito do Trabalho, que preponderou ao longo da história desse ramo jurídico no Ocidente, a desregulamentação trabalhista aponta no sentido de alargar espaços para fórmulas jurídicas novas de contratação do labor na vida econômica e social, naturalmente menos interventivas e protecionistas. Nessa medida, a ideia de desregulamentação
é mais extremada do que a ideia de flexibilização, pretendendo afastar a incidência do Direito do Trabalho sobre certas relações socioeconômicas de prestação de labor.
A desregulamentação (ou desregulação) trabalhista ocorre, regra geral, por meio de iniciativas legais, que abrem exceção ao império genérico da normatização trabalhista clássica.
Como se pode inferir, o processo de desregulamentação é mais abrangente no sentido de afastar ao máximo as regulações estatais, ao passo que na flexibilização o que se busca, em geral, é a ponderação principiológica entre as normas protetivas do trabalho e os fundamentos básicos de incentivo à produção e ao livre mercado.
Esse debate social sobre a flexibilização dos direitos trabalhistas não demorou muito a ser tema principal no âmbito do STF, por meio do RE 590.415/SC (Tema 152, com repercussão geral), julgado em 29/05/2015, e do RE 895.759/PE, julgado em 09/12/16.
É nesse contexto de reformas que, logo após a consolidação firmada pela jurisprudência do STF, surgiu a lei 13.467/17, implementadora de algumas medidas de desregulamentação e de flexibilização trabalhistas, dentre as quais se destaca, em especial, a valorização dos poderes da negociação coletiva trabalhista implementada pelo novo art. 611-A da CLT, norma que deve ser conjugada com o novo art. 611-B da Consolidação das Leis do Trabalho.
Importante dizer que existem dispositivos constitucionais (artigo 7º, incisos VI, XIII, XIV e XXVI, da CF/88)6 e normas internacionais (Convenções OIT 98/1949 e 154/1981)7 que fixam os parâmetros da autonomia negocial coletiva e incentivam o seu prestígio como instrumento de composição de conflitos coletivos de trabalho.
Em relação às normas infraconstitucionais, a lei 13.467/17 fixou parâmetros específicos do que se pode ou não negociar e flexibilizar, conforme regra estabelecida nos artigos 611-A e 611-B da CLT.
Entretanto, é preciso afirmar que, após reforma trabalhista, a matéria constitucional sobre a prevalência do negociado e da autonomia da vontade dos contratantes (empregado e empregador), que ajustam vantagens recíprocas por meio de acordo coletivo, voltou a debate no âmbito do STF.
É o que se extrai do Recurso Extraordinário com Agravo 1.121.633/GO8, com reconhecimento em 03/05/2019 da existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada (Tema 1.406) e que não foi reafirmada a jurisprudência dominante sobre a matéria (RE 590.415-SC e RE 895.759/PE), qual seja, validade de cláusula de acordo coletivo que flexibiliza direitos trabalhistas.
Portanto, a matéria ainda se encontra pendente de julgamento no STF, estando suspensas todas as ações (individuais e coletivas) que versam sobre o tema, uma vez reconhecida a repercussão geral (art. 1.035, § 5º, do CPC/15)9.
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1- O artigo 1º da Portaria nº 1.120/1995 dizia o seguinte: "Os empregadores poderão adotar sistemas alternativos de controle da jornada de trabalho, desde que autorizados por Convenção ou Acordo Coletivo de Trabalho". A referida norma ministerial foi substituída pela Portaria nº 373 de 25/02/2011 que manteve no seu art. 1º idêntico conteúdo da portaria revogada.
2- Art. 170 da CF/88. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VIII - busca do pleno emprego.
3- Art. 170, parágrafo único, da CF/88. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
4- Art. 170 da CF/88. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VII - redução das desigualdades regionais e sociais.
5- O cooperativismo despontou no Brasil por meio da Lei n. 8.949/94, que inseriu o parágrafo único no art. 442 da CLT. Depois, a figura jurídica passou a ser disciplinada de maneira mais minuciosa pela Lei nº 12.690/2012.
6- Art. 7º da CF/88. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; XIV - jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva; XXVI - reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho.
7- A Convenção OIT nº 98 de 1949, que dispõe sobre a aplicação dos princípios do direito de organização e de negociação coletiva, assim dispõe no seu artigo 4º: "Deverão ser tomadas, se necessário for, medidas apropriadas às condições nacionais para fomentar e promover o pleno desenvolvimento e utilização voluntária entre empregadores ou organizações de empregadores e organizações de trabalhadores, com o objetivo de regular, por meio de convenções coletivas, os termos e condições de emprego".
Igual sentido as disposições da Convenção OIT nº 154 de 1981 que trata da negociação coletiva: Art. 5º. 1. Deverão ser adotadas medidas adequadas às condições nacionais no estímulo à negociação coletiva. 2. As medidas a que se refere o parágrafo 1 deste artigo devem prover que: a) a negociação coletiva seja possibilitada a todos os empregadores e a todas as categorias de trabalhadores dos ramos de atividade a que aplique a presente Convenção; b) a negociação coletiva seja progressivamente estendida a todas as matérias a que se referem os anexos a, b e c do artigo 2 da presente Convenção (a - fixar as condições de trabalho e emprego; b - regular as relações entre empregadores e trabalhadores; c - regular as relações entre os empregadores ou suas organizações e uma ou várias organizações de trabalhadores, ou alcançar todos estes objetivos de uma só vez); c) seja estimulado o estabelecimento de normas de procedimentos acordadas entre as organizações de empregadores e as organizações de trabalhadores; d) a negociação coletiva não seja impedida devido à inexistência ou ao caráter impróprio de tais normas; e) os órgãos e procedimentos de resolução dos conflitos trabalhistas sejam concedidos de tal maneira que possam contribuir para o estímulo à negociação coletiva. Art. 6º - As disposições da presente Convenção não obstruirão o funcionamento de sistemas de relações de trabalho, nos quais a negociação coletiva ocorra num quadro de mecanismos ou de instituições de conciliação ou de arbitragem, ou de ambos, nos quais tomem parte voluntariamente as partes na negociação coletiva. Art. 7º - As medidas adotadas pelas autoridades públicas para estimular o desenvolvimento da negociação coletiva deverão ser objeto de consultas prévias e, quando possível, de acordos entre as autoridades públicas e as organizações patronais e as de trabalhadores. Art. 8º - As medidas previstas com o fito de estimular a negociação coletiva não deverão ser concebidas ou aplicadas de modo a obstruir a liberdade de negociação coletiva.
8- O processo ARE 1.121.633/GO, cuja relatoria pertence ao Ministro Gilmar Mendes, possui origem em ação trabalhista que deferiu pagamento de horas extras decorrentes de horas in itinere porque a empresa localiza-se em local de difícil acesso com horário de transporte público incompatível com a jornada de trabalho. A empresa, no entanto, alega a validade de cláusula do acordo coletivo de trabalho que suprime o pagamento do respectivo tempo de percurso, já que houve vantagens recíprocas negociadas em acordo coletivo e que fica distanciada apenas a 3,5 Km da zona urbana.
9- Art. 1.035, § 5º, do CPC/2015. Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional.