O Direito Inglês e um bom sistema de precedentes
Algumas notas de aprendizado sobre a cultura jurídica inglesa, para o desenvolvimento de um bom sistema de precedentes judiciais
quinta-feira, 17 de dezembro de 2020
Atualizado às 08:09
A civil law encontrou na civilística romana (como o próprio nome já sugere) modelos e categorias pré-estabelecidos para forjar as regras de condutas previstas na lei positivada e, assim, regular a vida em vida em sociedade, em prol do bem comum e da paz social.
Assim, nestas culturas presentes em nações de descendência latina ou germânica, o Direito nasce da lei posta, e o Poder Judiciário não possui o poder de criar o Direito, nem de exarar decisão judicial contra legem. Em suma, a civil law se caracteriza pelo primado do processo legislativo como fonte principal de Direito, com uma consequente atribuição de valor secundário às demais fontes de Direito.1
Enquanto os povos da Europa continental desenvolveram seu Direito com base no primado da lei, a experiência jurídica na Inglaterra se deu sob uma perspectiva distinta: ignorando os modelos jurídicos de Direito Romano, o povo anglo-saxão erigiu seu Direito com base na aplicação de costumes pelas Cortes Reais que, através de remédios processuais moldados de acordo com casos concretos, objetivaram as regras jurídicas consuetudinárias em um sistema jurisprudencial de precedentes judiciais. Assim, apesar de nascer da subjetividade dos casos concretos, este sistema de precedentes formou objetivamente o que se chamou de Direito comum a todos, isto é, a common law.2
Dito isto, se formos analisar a cultura jurídica ocidental, podemos dividir as nações entre aquelas cujo Direito foi herdado dos povos latinos e germânicos da Europa continental (que adotam modelo de civil law) e as possuem como ascendentes o povo anglo-saxão (que adotam o modelo da common law).
Apesar desse traço cultural distintivo, o que vem ocorrendo desde a passada centúria, com a globalização e com o intercâmbio cultural de ideias e valores, é que ordenamentos jurídicos de common law e civil law têm sofrido influências recíprocas. Assim, ao passo que as normas legais se tornam mais relevantes nos países de common law, os precedentes judiciais passam a desempenhar um papel mais ativo, e cada vez menos secundário, nos sistemas de tradição romana3.
No Brasil, com o advento do Código de Processo Civil (CPC) no ano de 2015, pretendeu-se estabelecer um sistema de precedentes vinculativos. É que um sistema pressupõe coerência e sinergia entre todos os seus componentes, de modo que um sistema de precedentes deve prezar pela construção de uma jurisprudência coerente através da obediência dos magistrados e Tribunais a determinadas espécies de precedentes vinculativos.4
Tal mens legis, de sistematizar a aplicação de precedentes de forma imperativa pelos jurisdicionados brasileiros fica clara se nos atentarmos à letra do artigo 926 do CPC, que determina que os tribunais "devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente."
Já, no artigo 927, a Lei adjetiva estabelece as espécies de precedentes vinculativos, dotados de força imperativa, cuja obediência e aplicação pelos magistrados será inescusável. São eles: (I) as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) em controle concentrado de constitucionalidade; (II) os enunciados de súmula vinculante do STF; (III) os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; (IV) os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em matéria infraconstitucional, e (V) a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Diante destes valores por detrás do novel codex de processo civil (que preza pela segurança jurídica mediante a coerência e integridade no exercício do jurisdicere, através de um sistema de precedentes), o que os operadores do Direito brasileiro têm a aprender com o Direito Inglês (o berço da doutrina dos precedentes judiciais)? É o que pretendemos expor, brevemente, por meio de algumas notas sobre esta cultura jurídica.
Com efeito, a Inglaterra já foi descrita pelo poeta Alfred Tennyson como "A land of just and old renown, where freedom slowly broadens down from precedent to precedent"5, o que denota o elevado valor deste instituto jurídico para aquela sociedade.
Através de um processo histórico e cultural, a nação britânica desenvolveu uma metodologia jurídica própria, que hoje consiste na doutrina do stare decisis, um termo latino que designa que o veredicto deverá preservar-se fiel exato ao veredicto anterior.6
Grosso modo, tal doutrina se cinge na ideia de que, ao exercer a sua atividade judicante, o juiz representa um elemento de validação teórica do sistema jurídico como um todo, quando, ao decidir determinado caso concreto, cria também uma norma objetiva que deverá ser respeitada pelos outros magistrados, em litígios semelhantes que futuramente se apresentem perante a Justiça. Esta regra criada sobre o julgamento de um caso concreto é o que se entende por precedente judicial constituído.
Como um método apurado, há na common law uma técnica desenvolvida para que o operador do Direito identifique a regra jurídica cristalizada no precedente judicial firmado, para aplicação em seu caso concreto. Tal método consiste na identificação da ratio decidendi (a parte vinculativa do precedente judicial - em suma, a Rule of Law que deverá ser acatada), e na sua distinção da obiter dictum (a parte da argumentação explanada no precedente judicial que não cria nenhuma regra).
No Brasil, a necessidade de identificação da ratio decidendi pela decisão judicial que acate um precedente está normatizada no artigo 489, inciso V, do CPC, que diz que, ao invocar súmula, citar jurisprudência ou adotar determinado precedente judicial, a decisão deverá identificar seus fundamentos determinantes (a rationale), demonstrando que o caso em julgamento se ajusta àqueles fundamentos.
Para facilitar a identificação da ratio decidendi, o artigo 926, § 2º do CPC determina que os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação"
Apesar de normatizada tal regra, ainda assim se revela uma grande dificuldade à cultura jurídica brasileira (que não possui raízes no Direito jurisprudencial da common law) a correta identificação de uma ratio decidendi de um precedente, para a sua justa aplicação ao caso concreto.
Aliás, tal exercício metodológico é uma problemática enfrentada há muito pela doutrina inglesa. Neste sentido, empenhado em estabelecer uma técnica objetiva para a identificação das razões de decidir de um precedente judicial vinculativo, como fruto das aulas de jurisprudência que ministrou na Inglaterra, o jurista norte-americano Arthur L. Goodhart publicou famoso artigo científico intitulado "Determining a Ratio Decidendi of a Case", pelo qual ensina em como identificar o que chamou de principle of a case.7
Segundo o método postulado pelo insigne professor, a identificação da ratio decidendi a ser obedecida se dá pela análise do contexto fático tratado pelo juiz, como elemento essencial à conclusão galgada na decisão, prestigiando assim a igualdade de tratamento de todos perante a Justiça, isonomia tal que garante previsibilidade e segurança jurídica ao sistema de precedentes.
Para visualizarmos este método, podemos pegar, como exemplo, um caso paradigmático, notório no Direito inglês, que ilustra muito bem a distinção entre ratio decidendi e obiter dictum e que é utilizado pelas universidades inglesas, através do método do case study, para ajudar os estudantes de Direito a identificarem as razões de decidir de um precedente.
Nos referimos ao caso Donoghue v. Stevenson (1932)8. O litígio teve origem quando a Sra. Donoghue ficou doente depois de beber uma cerveja de gengibre estragada, que foi envasada junto a um caracol morto. Diante dos danos de ordem moral que tal experiência lhe impingiu, a Sra. Donoghue processou o fabricante da cerveja de gengibre, pleiteando uma indenização reparatória, que foi concedida pelo Poder Judiciário inglês, através de uma decisão judicial que condenou a fabricante de cerveja. Tal processo foi julgado pela House of Lords, mediante decisão colegiada proferida por cinco Lords, encabeçada pelo respeitável Lord Aktin.
O que importa para o presente estudo é que houve uma série de regras de precedentes judiciais suscitadas pela Ré, que haviam sido constituídos em contextos não tão similares ao ali analisado, mas que, em tese, se aplicariam processualmente e poderiam obstaculizar a tutela do direito de indenização da Sra. Donoghue pelo Poder Judiciário. Apesar disso, Lord Atkin foi perspicaz em notar a mencionada distância de contexto, entre os casos invocados pela Ré e o caso em análise.
Assim, o magistrado afastou as considerações jurídicas dos precedentes citados que tinham sido constituídas em outro contexto e, em paralelo, identificou um princípio geral, naquele conjunto de precedentes judiciais, que se aplicariam para garantir o dever de cuidado naquela relação contratual de consumo.
Destarte, ao analisar os cinco precedentes judiciais em matéria de indenização e responsabilidade invocados no debate, Lord Aktin procedeu um exercício metódico de distinção entre o que seria a regra de direito aplicável àquele caso (ratio decidendi) e o que seria o conteúdo meramente retórico ou persuasivo (porquanto concebido sob circunstâncias fáticas distintas daquela em apreço) e, portanto, descartável (obter dictum). Este raciocínio se baseou na ideia de que uma regra de precedente deve oferecer soluções justas e coerentes para os conflitos verificados em sociedade, principalmente aqueles mais óbvios, como era o caso sub judice.
A ratio decidendi que fundamentou a referida decisão e constituiu um precedente judicial (enquanto regra de Direito aplicável) para futuros casos de reparação de danos por negligência foi proferida pelo julgador Lord Atkin, da seguinte maneira: "uma pessoa tem o princípio de responsabilidade e de cuidado para com os quais razoavelmente, possa prever que serão afetados pelos seus atos". Veja-se que a regra constituída abre uma linha de corte sobre uma circunstância fática, lhe atribuindo efeitos jurídicos (no caso, uma regra de responsabilidade). A partir de então, tal raciocínio jurídico se cristalizou como Rule of Law, imperativa e vinculativa a outros magistrados que porventura viessem a julgar casos semelhantes, tutelando causas de pedir decorrentes de responsabilidade por negligência.
É claro que, no Brasil, a figura do precedente judicial possui um papel secundário, se limitando à interpretação da Lei posta (que é fonte primária de Direito), não possuindo o protagonismo criador que exerce na common law.
Entretanto, compreendendo culturalmente o fenômeno jurídico do Direito inglês (que busca, na coerência sistêmica, uma harmonia entre as regras jurídicas tiradas dos precedentes vinculativos), acreditamos que tal espírito possa inspirar os operadores do Direito brasileiro, quando do manuseio dos precedentes judiciais, com vista a garantir à sociedade a previsibilidade, estabilidade, consistência e igualdade de tratamento pelo Poder Judiciário, axiomas estes vislumbrados pelo CPC de 2015.
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1 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Saraiva. São Paulo. 2001. 25ª Ed. p. 132
2 Sobre o tema: MALPIGHI, Caio Cezar Soares. Noções Gerais sobre Precedentes Judiciais. JUSBRASIL. Disponível clicando aqui. Acesso em: 15 de dezembro de 2020
3 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Saraiva. São Paulo. 2001. 25ª Ed. p. 132
4 DOMINGUES JÚNIOR, Willian. O Sistema de Precedentes Brasileiro Entendido como Sistema. Jota.
5 TENNYSON, Lord Alfred (1809-1892) "You Ask Me, Why". English Poetry III: From Tennyson to Whitman. The Harvard Classics. 1909-14. Clique aqui - Tradução: "Uma terra de governo estabelecido, uma terra de justa e antiga fama, onde a liberdade se alarga lentamente de precedente para precedente."
6 "Stare decisis et non quieta movere". Em sua tradução livre: respeitar as coisas decididas e não mexer no que já foi decidido.
7 GOODHART. Arthur L. Determining the Ratio Decidendi of a Case. Yale Law Journal. Vol. XL, nº 2. 1930. Disponível clicando aqui. Acessado em: 15 de dezembro de 2020
8 UK. House of Lords. HP258.2 Donoghue v. Stevenson. Disponível clicando aqui. Acesso em: 16 de dezembro de 2020.
Alexandra da Silva
Advogada-Trainee na DLA Piper, em Lisboa, integrando a equipe de Societário e Financeiro. Graduada em Direito pela University of London, Birbeck College. Mestre em Direito pela University of London, The City Law School.