Maus tratos de animais e proporcionalidade: um novo capítulo
Aumento de pena para o crime de maus tratos de animais, quando este for praticado contra cão ou gato, afronta o princípio da proporcionalidade.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2020
Atualizado às 09:08
Recentemente, muito se comemorou por parte de ativistas e integrantes de organizações de proteção animal, a introdução no art. 32 da lei 9.605/98, que trata do crime de maus tratos de animais, de um parágrafo específico, prevendo uma pena substancialmente mais alta caso o crime tenha sido praticado contra um cão ou gato. Pela redação do dispositivo, a partir de agora, a pena será de 2 a 6 anos, multa e proibição da guarda.
Muito embora festejada, tal alteração, em termos técnicos, gera preocupação, considerando-se especialmente o princípio da proporcionalidade penal. Em face disso, o que se pretende aqui é traçar algumas considerações a respeito, demonstrando os riscos que esse precedente, nitidamente eivado de simbolismo, pode trazer para o direito penal como um todo. Como se sabe, o princípio da proporcionalidade penal se constitui como um dos mais elementares do direito penal, sendo já apontado por BECCARIA a necessidade de que delitos e penas sejam proporcionais1, levando em conta as diferentes gradações entre diferentes crimes. Ou seja, no momento de definição dos crimes, é dever do legislador valorar de forma diversa as condutas lesivas ou perigosas2. Contudo, gera espanto a forma como o direito penal brasileiro afronta tal princípio, a ponto de não se utilizar de nenhum critério limitativo entre o tempo mínimo e o máximo de pena.3
Ao se analisar as penas estabelecidas para os crimes ambientais, o abandono à proporcionalidade é latente, verificando-se um sancionamento de condutas com penas elevadas em alguns casos e inferiores em outros. A pena prevista para o crime de maus tratos de animais, tipificado no art. 32 da lei 9.605/98, já era motivo de críticas por parte da doutrina, especialmente se comparada com a reprimenda do crime de maus tratos contra pessoa.4
Todavia, o que já era considerado uma aberração em termos de proporcionalidade, ganhou um novo incremento. Com a introdução do §1º- A ao art. 32, passou-se a estabelecer que: "Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda." Tal alteração, além de injustificável sob qualquer pretexto, pois não existe sequer fundamento para diferenciação de tratamento entre animais5, aprofunda ainda mais a desproporcionalidade já característica do crime de maus tratos de animais.
Levando-se em conta a proporcionalidade stricto sensu, conforme exposto acima, a quantidade de pena deve ser mensurada com base na intensidade do ataque ao bem jurídico6. Nesse ponto, há que se mencionar que continua um amplo debate acerca da existência ou não de bem jurídico no crime de maus tratos de animais, e por conseguinte, sobre a legitimidade material do tipo penal em comento7. Alguns autores, inclusive, têm considerado o abandono da teoria do bem jurídico nesse caso. Claus ROXIN, por exemplo, admite que, especificamente nessa hipótese, há uma necessidade excepcional de sancionamento do comportamento, embora não implique em nenhum prejuízo aos seres humanos8.
Em que pese tal discussão, sem dúvida muito relevante, causa espanto constatar que a pena mínima para esse crime, quando o animal se tratar de cão ou gato, será de dois anos de reclusão, mormente se considerarmos que na hipótese do crime de homicídio culposo, por exemplo, tem-se uma pena mínima de um ano. Isto é, a partir dessa alteração legislativa, o desvalor da conduta daquele que maltratar um cão ou gato é maior que o daquele que comete um homicídio culposo, o que revela uma afronta direta à proporcionalidade, uma vez que não consta da própria justificativa do projeto de lei qual seria o fundamento para se punir de forma mais intensa nesta hipótese.
Além disso, a simples leitura da justificativa constante do projeto de lei 1.095/19, no qual se apresentou a proposta de recrudescimento de pena em comento, se verifica que o objetivo da norma que se pretendia introduzir na lei dos crimes ambientais era dar uma resposta ao clamor social. Inclusive, cita-se o evento ocorrido nas dependências do Supermercado Carrefour, onde um cachorro foi brutalmente morto, fato este que gerou enorme comoção na sociedade.
Não se questiona que é necessário que haja a responsabilização daqueles que cometem os atos aqui descritos. Aqui, aliás, talvez seja o caso de se optar por outros meios que sejam menos atentatórios à liberdade e mais efetivos9. O que preocupa é o apego a um direito penal essencialmente simbólico, entendendo-se aqui como simbolismo, na linha do que propõe HASSEMER, uma oposição entre a realidade e a aparência, ou seja, um direito que está associado ao engano10. Desse modo, ao contrário do que se pensa, esse tipo de norma penal somente contribui para uma falsa sensação de que o problema foi resolvido, quando na realidade, foi apenas camuflado.
Desta feita, abrir mão de um dos mais importantes parâmetros dogmáticos limitativos do direito penal, qual seja, a proporcionalidade, como ocorreu neste caso concreto, cria um precedente extremamente danoso e que abre caminho para futuras inovações legislativas com previsões semelhantes, o que poderá agravar ainda mais outros problemas já existentes, vide a superlotação do sistema carcerário nacional.
Referências:
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. 4ª ed. São Paulo: WMF Martins fontes, 2019.
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014.
COSTA, Helena Regina Lobo da. Proteção penal ambiental: viabilidade, efetividade, tutela por outros ramos do direito. São Paulo: Saraiva, 2010.
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
HASSEMER, Winfried. Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos. Pena y Estado: revista hispanolatinoamericana, Buenos Aires, n. 1, set./dez.1991, p. 23-36.
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.
REALE JÚNIOR, Miguel. Meio ambiente e direito penal brasileiro. Revista Ciências Penais, n. 2, v. 2, jan./jun. 2005, p. 67-83.
SOUZA, Luciano Anderson de. Direito penal: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.1.
__________
1 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. 4ª ed. São Paulo: WMF Martins fontes, 2019, p. 50.
2 TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 79.
3 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 167.
4 REALE JÚNIOR, Miguel. Meio ambiente e direito penal brasileiro. Revista Ciências Penais, n. 2, v. 2, jan./jun. 2005, p. 78.
5 REALE JÚNIOR, Miguel. Meio ambiente...Op. cit., p. 78.
6 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito penal: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.1, p. 73.
7 A esse respeito, confira-se: BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 312-323; SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Fundamentos da adequação social em direito penal. São Paulo: Quartir Latin, 2010, p. 371-380.
8 BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal...Op. cit., p. 318.
9 COSTA, Helena Regina Lobo. Proteção penal ambiental: viabilidade, efetividade, tutela por outros ramos do direito. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 160.
10 HASSEMER, Winfried. Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos. Pena y Estado: revista hispanolatinoamericana, Buenos Aires, n. 1, set./dez.1991, p. 28.