STF assegura direito à realização de concurso público em datas e horários diversos por motivos religiosos
A tese foi fixada no julgamento conjunto do RE 611.874 e ARE 1.099.099 e em repercussão geral.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2020
Atualizado às 08:17
A Suprema Corte reconheceu o direito dos candidatos que guardam o sábado a realizarem as etapas do concurso público em datas e horários distintos dos previstos no edital
O Supremo Tribunal Federal decidiu que a Administração Pública tem o dever de franquear a candidatos a cargos públicos a opção de diferenciação de data, local e realização de etapas de concursos públicos em razão de crença religiosa. A tese foi fixada no julgamento conjunto do RE 611.874 e ARE 1.099.099 e em repercussão geral, ou seja, o entendimento deverá ser aplicado aos demais processos em tramitação que tratem da mesma matéria.
Em um dos casos concretos um candidato adventista pleiteava a possibilidade de realizar a etapa de capacidade física em concurso público em dia diverso do previamente designado, já que marcado para o sábado. Já o outro recurso originou-se de um pedido de disponibilização de prestação alternativa a uma servidora que, já aprovada em concurso público para professora municipal, não compareceu durante o estágio probatório às atividades designadas para sextas-feiras a noite e sábado durante o dia, o que impediu sua efetivação ao fim do estágio probatório.
A resolução dos casos concretos passa necessariamente pela análise do que deve prevalecer: o livre exercício do direito de crença ou o bom funcionamento da Administração Pública, que teria, no caso apreciado, como pano de fundo, a laicidade estatal.
Dada a relevância do tema, foi reconhecida a repercussão geral para analisar a amplitude do exercício das liberdades de crença e de culto frente à laicidade do Estado e a observância ao princípio da isonomia. A decisão, como se era de esperar, reacende discussão a respeito da compatibilização entre a garantia ao livre exercício da liberdade religiosa, protegendo o indivíduo de intervenções estatais indevidas, e a ingerência dos dogmas religiosos na atuação do Poder Público.
Como se sabe, a consolidação dos direitos fundamentais é fruto de processo histórico, sendo a crença religiosa fator fundamental em sua maturação. Daí porque, em se tratando do direito à liberdade religiosa, o Estado Laico é o que possui melhores e maiores condições de garanti-lo, seja para reprimir os atos que impeçam seu livre exercício, seja para conter aqueles que excedam o espectro de alcance do direito.
Em outras palavras, se a primeira finalidade da liberdade religiosa é a proteção às confissões religiosas, também há de se reconhecer a liberdade estatal em relação a tais dogmas, não podendo o Estado constranger, tampouco ser constrangido a subestimar ou superestimar qualquer crença.
A convivência harmoniosa entre a laicidade do Estado e a garantia ao livre exercício do direito de crença religiosa é extraída da leitura da Constituição Federal que, ao mesmo tempo que veda aos Entes Federativos o estabelecimento de cultos religiosos ou igrejas, também os impede de embaraçar-lhes o funcionamento, garantindo a liberdade de crença e a proteção aos locais de culto.
Verifica-se, desse modo, a existência de uma disputa entre valores da mesma envergadura, já que não há se falar em hierarquia entre as normas constitucionais, devendo-se analisar, no caso concreto, qual das duas garantias deve prevalecer, sem que para isso se esvazie o conteúdo da outra, valendo-se, portanto, da técnica da ponderação.
A laicidade do Estado garantiria, ao que se possa sustentar, o bom funcionamento da Administração Pública no que toca às etapas de concurso público, haja vista que, sendo neutro em relação à religiosidade, não precisaria mover a máquina estatal para contemplar candidatos impossibilitados de realizar atividades em determinados horários da semana em razão de convicções pessoais.
Ademais, pode-se cogitar que não há motivo razoável que justifique à Administração Pública estabelecer como critério para remarcação de etapas de concurso a crença religiosa individual de cada candidato. É que o princípio da igualdade encontra previsão expressa no caput do art. 5º da Constituição Federal e o tratamento desigual exige motivo justo, razoável e proporcional.
Outro ponto que parece relevante diz respeito a alocação de recursos que se exigiria para alterar o andamento programado do concurso público para atender demandas individuais. O aumento do custo feriria os princípios constitucionais que dizem respeito à Administração Pública, já que provocados por discriminação injustificada.
Justamente por invocarem o texto e os princípios constitucionais implícitos é que os argumentos acima citados, contrários à decisão do STF, são relevantes e merecem ser levados em consideração na discussão sobre o tema. Todavia, com as devidas vênias, nenhum deles apresenta-se firme o suficiente ao ponto de infirmar a tese da Suprema Corte.
No que tange ao bom funcionamento da Administração Pública, é de se lembrar que isso a todos interessa, sendo também uma obrigação imposta pelo constituinte ao dispor no art. 37 da Carta Magna que tanto a Administração quanto os administradores públicos devem obedecer aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
O direito à liberdade de crença é liberdade individual que decorre diretamente da própria dignidade da pessoa humana. Nem mesmo o intocável princípio da isonomia resiste à necessidade de se permitir condições diferenciadoras decorrentes das particularidades de determinados candidatos em concurso público.
O direito de acesso a cargos, empregos e funções públicas é garantido a todos os brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos, assim como aos estrangeiros, na forma legal, sendo que a investidura, de acordo com a Constituição Federal, depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão.
É direito, portanto, de todos que preencham os requisitos legais, o acesso ao cargo público. Tal garantia, todavia, não há de ser considerada em si mesmo como autossuficiente à promoção daquilo que pretende, uma vez que, de nada adianta prever o livre acesso sem observar certas particularidades, tais como o direito à liberdade de crença. Desconsiderar as particularidades dos indivíduos é esvaziar o conteúdo da norma constitucional.
A tese fixada pelo STF, dessa forma, ao contrário de ferir o princípio da igualdade, assegura-lhe a observância, fortalecendo a ideia de que as individualidades não podem ser ignoradas pelo Poder Público, sob pena de compressão das maiorias sobre as minorias, o que obviamente não se pode tolerar num Estado de Direito.
A verificação, em síntese, que se deve fazer a fim de verificar se a discriminação é constitucional passa necessariamente pela análise da razoabilidade e, no caso da crença religiosa e o acesso aos cargos públicos, revela-se claramente razoável designar datas e horários diversos a tais candidatos, desde que isso não implique em obrigação excessivamente onerosa à Administração Pública.
Enfrentando a questão a respeito da alocação de recursos, a solução é ainda mais simples, bastando que a Administração Pública preveja, desde o início do certame, a ampla participação de pessoas das mais variadas crenças, inclusive daquelas que se sentem no dever de guardar determinado dia da semana. Assim, poderá criar, desde logo, alternativas a tais indivíduos.
Com as devidas vênias aos que pensam de forma contrária, a menos que tal obrigação se mostre desproporcionalmente onerosa, não se pode deixar de garantir o exercício integral de direitos por questões financeiras e orçamentárias do Estado. Não possibilitar a submissão às avaliações em datas diversas exige do candidato sacrifício não razoável, ou seja, teria de escolher se exerce livremente o direito de crença, respeitando os dogmas do que acredita, ou se tenta o acesso aos cargos públicos, cujo ingresso muitas vezes passa pela exigência de realização de avaliações em dia considerado sagrado.
A discussão sobre a existência ou não de direito fundamental à prestação de concurso por parte dos indivíduos não parece ser o cerne da discussão, todavia, pode-se cogitar sua caracterização diante do livre acesso aos cargos públicos, mediante concurso de provas ou de provas e títulos, previsto na Constituição Federal.
Se um candidato preenche os demais requisitos, possui direito subjetivo à realização da prova, não podendo ser impedido pela Administração Pública. E nesse ponto, embora o direito à liberdade de crença seja compreendido como de liberdade do cidadão frente à força do Estado, engana-se quem imagina que a efetivação de tal direito se satisfaz com a simples não intervenção estatal.
Não parece razoável que o indivíduo interessado em ocupar cargo público deva abrir mão de valores que lhe são tão caros, tais como os dogmas da religião que segue. Isso, sem dúvida alguma, fere o reconhecimento à dignidade humana, que muitas vezes está intrinsicamente ligada à relação do homem com o sagrado. Inclusive, é interesse do Estado Democrático de Direito que a Administração Pública tenha em seus quadros pessoas das mais variadas origens, classes sociais, orientações sexuais e crenças. A pluralidade enriquece o Poder Público e fortalece as garantias individuais.
Por fim, é de se destacar que a Constituição Federal garante prestação alternativa em caso de recusa a cumprimento de obrigação a todos imposta por motivo de crença religiosa, o que indica a preocupação do constituinte de que, ninguém deixe de cumprir suas obrigações legais e, indo mais a fundo, deixe de participar da vida estatal por razões religiosas.
Por essas razões, sem olvidar da profundidade do tema e das mais variadas convicções que o circula, tem-se que a o Supremo Tribunal Federal mais uma vez cumpriu seu dever de guardião da Constituição Federal, sobretudo sob o ponto de vista da efetivação da liberdade de crença, a qual exige, desde que não se crie obrigações desproporcionais e excessivamente onerosas, atuação do Poder Público para permitir a candidatos que guardem como sagrado um dia da semana, a participação em concursos públicos.
Alan da Silva dos Santos
Sócio do escritório Santos Perego & Nunes da Cunha Advogados Associados.