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A necessária prova da ligação entre a lavagem e o fato ilícito antecedente

Na dicção legal, lavagem se trata da ocultação ou dissimulação da origem, natureza, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores que proveem, direta ou indiretamente, de infração penal.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Atualizado às 13:04

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O ilícito de lavagem, talvez o mais complexo dentro dos tipos penais existentes no ornamento jurídico brasileiro, traz consigo problemas que cindem a doutrina desde o seu nascedouro.

Intepretações a respeito da natureza do delito, qual o bem jurídico tutelado, prejudicialidade da ação penal que apura o crime antecedente, competências para apuração, e os mais variados temas, não são pacíficos.

Mas afinal, o que é então a lavagem?

Na dicção legal, se trata da ocultação ou dissimulação da origem, natureza, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores que proveem, direta ou indiretamente, de infração penal (art. 1º, da lei 9.613/98).

Nos dizeres da doutrina:

"Em síntese, a lavagem de capitais é o ato ou conjunto de atos praticados por determinado agente com o objetivo de conferir aparência lícita a bens, direitos ou valores provenientes de uma infração penal." (LIMA, 2019, p. 594).

Por isso podemos falar que a mens legis do tipo penal é "punir os processos de atribuição de aparência de licitude a bens, direitos ou valores cuja origem deita raízes em fatos ilícitos anteriores" (OLIVEIRA, 1998, p. 319).

Ao menos nessa esfera conceitual inexistem sérias divergências, mas a complexidade do crime nos leva ao que se discute no seio do direito processual, quando da apuração em contraditório desse ilícito.

Restam ainda dúvidas quanto a essa atribuição, percebemos que além dessas regras materiais, dada a especificidade do tipo, normas especiais sobre direito processual precisaram ser definidas e dedicamos especial atenção ao art. 2º, §1º, da lei 9.613/98.

O texto legal expresso diz:

"§ 1º A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente."  

A preposição "da" (preposição "de" + artigo definido "a") torna o parágrafo mencionado perfeitamente coerente com as regras definidas pelo CPP para a denúncia (art. 41, CPP), isso porque torna obrigatória a individualização do crime antecedente.

Logo, averígua-se através de um procedimento ordenado se, e somente se, o que se aponta como objeto material da lavagem é o produto do fato supostamente típico e ilícito indicado na denúncia, sob pena de violação do princípio da correlação (BADARÓ, 2019a, p. 83) e a consequente anulação de uma eventual sentença por violação da ampla defesa (BONFIM, 2012, p. 887).

Assim como ensina Bottini, não bastaria a constatação de um ilícito prévio, é necessário que esse gere um produto e mais, que esse produto seja exatamente aquele que é objeto material do delito antecedente indicado na denúncia (2016, p. 109).

Nas palavras de Blanco Cordero "no basta solo con la prueba de un delito prévio, sino tambien há que probarse que los bienes prociden del mismo" (2015, p. 428).

Portanto, não é pouco clara essa relação de prejudicialidade entre o ilícito prévio e a lavagem, sendo admitido que o objeto material da lavagem sempre será o produto desse ilícito antecedente (PRADO, 2019, p. 554; NUCCI, 2017, p. 595; LIMA, 2019, p. 635), não de "qualquer ilícito antecedente".

Com louvável acerto Pitombo parece ser o primeiro a apontar um problema que seria enfrentado mais a frente por quem se dedicasse ao estudo do tipo penal de Lavagem, como se expressa no ano de 2001 em palestra na AASP (Informação verbal):

"[...] na verdade o legislador da lei 9.613 buscou quase que separar o processo atinente ao crime anterior do processo que apura o crime de lavagem. E vejam os senhores que o esforço foi tão grande que alguns primeiros que foram escrever sobre a lei de lavagem levaram essas disposições do âmbito processual para o aspecto do direito material sem perceber exatamente o que significa o crime antecedente na estrutura do tipo da lavagem de dinheiro [...]" (2001, 02:35 - 03:30)

Entende-se que o vínculo acessório da lavagem, no que versa sobre o direito material, pode ser conceituado como "acessoriedade material" (PITOMBO, 2003, p. 109-110) e que essa não se confunde com o que representa o art. 2º, inciso II, da lei 9.613/98, no capítulo das "Disposições processuais especiais".

Na verdade, é algo ínsito ao próprio tipo penal ainda que se fale que após a alteração de 2012 (lei 12.683) qualquer fato típico e ilícito prévio pode ser suscetível de gerar valores objetos de lavagem (supressão do rol taxativo).

Toda essa exposição tem um único objetivo: definir então o que será necessário "provar" para viabilizar ou inviabilizar uma condenação. Como ensina Ferrer Beltrán:

"la prueba como actividad tendría la función de comprobar la producción de hechos condicionantes a los que el derecho vincula consecuencias jurídicas o, lo que es lo mismo, determinar el valor de verdad de las proposiciones que describen la ocurrencia de esos hechos condicionanes" (2007, p. 30).

Conclui-se então que, além de reunir indícios suficientes do suposto ilícito antecedente, deverá o autor da ação penal indicar o liame objetivo existente entre esse antecessor e a lavagem, entrelaçando-os em um nexo existencial.

Não seria suficiente demonstrar, ainda que de forma exauriente, a existência de um ilícito prévio e um desacerto patrimonial no presente (início - crime antecedente - e fim - disparidade fiscal p. ex.) sem a demonstração do "meio", ou seja, a ligação entre esses dois fatos, pois pune-se o "processo de ocultação", os atos empregados para esse fim.

Diz-se isso ainda que a narrativa empregada na exordial seja coerente quanto a sua ordem cronológica (um fato antecede o outro) e essas duas circunstâncias mencionadas anteriormente ficassem provadas ("início" e "fim"), faltaria prova essencial de um elemento intermediário.

Seja por insuficiência ou mesmo ausência de provas, ainda que por um descuido do acusador, tal assertiva, em uma concepção analítica da prova, não seria suficiente para concluir pela ocorrência do delito (TARUFFO, 2016, p. 92), também porque os fatos narrados na exordial poderiam ser falsos (decorrentes de outro ilícito prévio p. ex.) e a decisão não seria justa (BADARÓ, 2019b, p. 275) pois não representaria a verdade.

Isso porque a sentença tem também a função de firmar, em um juízo lógico e racional, respeitando as provas constantes dos autos e de maneira motivada, a correlação, em grau elevado, entre o enunciado inicial e a realidade caso o resultado seja a condenação.

Essa "prova" não parece fácil, ainda mais se em fase avançada do processo de lavagem ela for descoberta (WEBER, 2017, p. 21), mas não existem óbices para que a faça.

Um exemplo lembrado pela doutrina é a fraude em licitações (BOTTINI, 2016, p. 110-113). Se há fraude, tudo que dali emerge é produto ilícito e, sabendo que em regra as empresas indicam uma conta corrente para pagamento dos serviços prestados ou produtos entregues, a investigação pode ter por base essa conta, perquirindo o rastro deixado através de eventuais transferências.

Compreende-se que os ilícitos de lavagem geralmente abarcam métodos especiais de investigação (quebras de sigilo bancário e fiscal, buscas e apreensões), como são informações dadas pelo CNJ (BRASIL, 2012). Os dados mostram que 241 (duzentos e quarenta e um) procedimentos tramitavam para assegurar a persecução ou reparo pela prática de delitos de lavagem enquanto 200 (duzentas) foram as denúncias oferecidas.

Se toda escamotagem passar somente pelo sistema financeiro facilmente serão encontrados os valores. Por isso, nos casos em que a lavagem parte de uma antecedência delitiva relacionada aos crimes contra a administração há, aparentemente, uma rastreabilidade mais fácil do que uma organização criminosa dedicada ao tráfico de drogas por exemplo.

Uma análise pormenorizada da origem, meio e destino dos valores empregados em um processo de lavagem pode ser observada no julgamento da AP 863 pelo Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2017), nota-se que às fls. 161 do julgado há uma menção explicita a uma extensa cadeia de contas bancárias utilizadas para dissimulação dos valores.

Como citado no exemplo da fraude, a quebra de sigilo bancário parece ser o único meio propício para coleta de elementos de prova, entendendo-a como justificada na maioria dos casos.

Mas se esses valores fogem ao aspecto bancário em algum momento, valendo-se do uso de moeda em espécie, procedimentos inferenciais válidos também permitem uma continuidade da investigação.

O Banco Central, através da Carta Circular 3.542/12 (BRASIL) elenca uma série de indícios passíveis de observação e que geram suspeitas, ainda mais se relacionados às circunstâncias mencionadas acima.

Transações de dados com os recebidos de operações ficais, p. ex., compras que geram notas fiscais e que foram pagas em espécie podem dar a localização desses valores (se foram utilizados para construção de uma casa etc.).

Em suma, é uma rastreabilidade válida, ainda que para isso for necessário se valer de uma cascade evidence (TARUFFO, 2002, p. 276) dentro de uma argumentação jurídica em que cada elemento indireto verificado primeiro seja provado e, segundo, que se conecte ao outro para finalmente, justificando essa interconexão racionalmente, criar uma ponte segura para um conhecimento aceitavelmente verdadeiro.

Derradeiramente, importa frisar que a prova do caminho percorrido pelos valores ilícitos é o objeto de maior importância dentro do tipo de lavagem e deve ser enfrentado com a cautela e atenção necessária, não sendo dispensável a sua averiguação. A prova, ainda que inconteste, do fato típico e ilícito antecedente de nada valerá se o produto por ele gerado não resulte no objeto material da lavagem averiguada em um processo específico, sob pena de violação do princípio congruência e por faltar com a verdade.

São fatos que se provam de maneiras distintas e, por vezes, independentes. A prova da disparidade financeira pode ser decorrente, por exemplo, de uma falsa declaração de renda, que não influi em uma prova do ilícito antecedente e muito menos do caminho percorrido pelo produto de origem espúria.

De mais a mais, a discussão é válida vez que ainda hoje, esquece-se que o objeto material da lavagem são os bens, direitos ou valores oriundos direta ou indiretamente da prática de uma infração anterior (PRADO, 2019, p. 554).

Logo, a origem deve ser maculada, não bastando que se realizem transações que ocultem a origem dos ativos, sendo atípica a conduta que assim procede se ao início estão eivados de licitude.

Início, meio e fim devem ser demonstrados através do processo de apuração do branqueamento de capitais e todos devem estar relacionados entre si em um nexo de causa e consequência.

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BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença, 4 ed. São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2019a.

BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019b.

BONFIM, Edilson Mougenot. Código de processo penal anotado, 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

BELTRÁN, Jordi Ferrer. La valoración racional de la prueba, Madrid: Marcial Pons, 2007.

BOTTINI, Pierpaolo Cruz; BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012, 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

BRASIL. Banco Central do Brasil. Carta Circular nº 3.524, de 12 de março de 2012. Brasília, DF, 2012. Disponível clicando aqui 

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resultado dos Questionários de Lavagem de Dinheiro, Corrupção e Improbidade Administrativa. Brasília, DF, 2012. Disponível clicando aqui.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 863. Brasília, DF, 2017. Disponível clicando aqui 

CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro, 2 ed. São Paulo: Atlas, 2017.

CERVINI, Raúl; OLIVEIRA, William Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem decapitais: comentários à lei 9.613/98. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.

CORDERO, Isidoro Blanco. El delito de blanqueo de capitales, 4 ed. Navarra: Arazandi, 2015.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único, 7 ed. Salvador: JusPODIVM, 2019.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais comentadas, vol. 2, 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Tipicidade dos Crimes Antecedentes à Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, 2001. Disponível clicando aqui 

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico, 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

TARUFFO, Michele. La pruebra de los hechos, trad. Jordi Ferrer Beltrán, 1. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2002.

TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos, trad. Vitor de Paula Ramos, 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2016.

Paulo Moisés da Silva Gallo

Paulo Moisés da Silva Gallo

Advogado, graduado pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Pós-graduado pela PUC/RS em Direito Penal e Criminologia.

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