Você pode estar em um contrato internacional sem saber
O ato de estabelecer um contrato não se limita a assinar um instrumento com algumas cláusulas na presença de testemunhas, em três vias, etc.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2020
Atualizado às 08:26
Em uma recente conversa, um amigo empresário relatou muito feliz que teria feito sua primeira venda internacional. Sua empresa já está bem estabelecida no Brasil, mas, pela primeira vez, estava encarregada de entregar cerca de uma tonelada de frutas desidratadas a uma empresa holandesa.
Contagiados pelo entusiasmo daquele jovem empresário cujo negócio acabava de cruzar as fronteiras, perguntamos a ele como estava sendo essa nova experiência de lidar com as peculiaridades de uma transação internacional.
A resposta dele foi pragmática: "Muito fácil. Eu pago um despachante aduaneiro e ele cuida de tudo!".
No entanto, nos referíamos aos aspectos contratuais da transação, que, por sua natureza global, diferem dos contratos nacionais em vários pontos.
Quando esclarecemos a pergunta, ele respondeu atônito: "Como assim contrato? Não existe contrato. Eles me enviaram uma ordem de compra especificando os produtos e eu enviarei a invoice logo após a entrega do carregamento. Simples.".
Esse episódio nos inspirou a trazer alguns alertas no tocante às implicações de uma compra e venda de produtos internacionais, especialmente às empresas recém chegadas ao setor de exportação.
Primeiramente, é necessário lembrar uma premissa mundialmente consolidada: o ato de estabelecer um contrato não se limita a assinar um instrumento com algumas cláusulas na presença de testemunhas, em três vias, etc.
A depender da espécie do negócio, até mesmo contratos verbais são válidos e impõem às partes todos os direitos e responsabilidades de um contrato escrito.
Outro ponto fundamental ignorado por alguns é que, desde 1980, a venda internacional de produtos é regulada pela Convenção das Nações Unidas sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG), mais conhecida como Convenção de Viena.
Pelo menos 70% dos parceiros comerciais mais relevantes do Brasil são aderentes.
Referida convenção foi adotada oficialmente pelo Brasil através do decreto 8.327/14 e seu artigo 1º é muito claro ao dispor que as regras ali previstas se aplicam automaticamente a contratos internacionais de compra e venda de produtos (para fins comerciais) quando ambos os contratantes estiverem situados em países distintos e aderentes da convenção, salvo se o contrato expressamente afastar sua incidência e observadas as exceções feitas pela própria convenção.
Já os artigos 14 e seguintes tratam da formação do contrato no âmbito internacional, e, em linhas gerais, estabelecem que o contrato é formado a partir da aceitação de uma proposta válida.
Portanto, atendidos os requisitos de validade da proposta e da aceitação, basta aceitar uma ordem de compra internacional e, sim, o vendedor estará figurando em um contrato internacional sujeito ao regramento da CISG.
Esclarecidos estes pontos, cabe repetir algumas das perguntas feitas ao nosso amigo recém exportador e que indicam alguns pontos de atenção:
- O que acontece se ocorrer algum problema com sua carga antes de ela sair do porto? Quais as consequências jurídicas?
- O carregamento dos produtos está acompanhado de todos os documentos/licenças necessários? Inclusive de acordo com a lei do país de destino?
- Qual foi o incoterm estabelecido para reger o local de entrega das mercadorias e a responsabilidade pelo frete ou seguro?
- Se a carga foi danificada no caminho, de quem é a responsabilidade?
- Se houver um litígio, qual a lei aplicável? Em que tribunal ou câmara arbitral deverá ser julgado?
- Se você é o comprador, quais são seus direitos de acordo com a CISG?
- Uma pandemia, como a da covid-19, pode ser considerada uma excludente de responsabilidade nessa esfera?
Estas questões, dentre outras, são fundamentais para a estabilidade e a segurança de qualquer transação internacional envolvendo a compra e venda de produtos entre empresas.
Apesar disso, muitos empresários, por pressa ou desconhecimento, terminam valendo-se apenas do despachante aduaneiro, que é sim fundamental para o processo de exportação, mas que não se ocupará dos detalhes jurídicos que antecedem o envio da mercadoria e que, inevitavelmente, influenciam a formação e a execução do contrato.
Lembremos que a execução e as hipóteses de quebra de um contrato internacional tendem a diferir muito da prática nacional, e, por conseguinte, as consequências de eventual conflito e os mecanismos para a solução também são distintos.
Portanto, se sua empresa está ganhando notoriedade em território estrangeiro e realizando suas primeiras vendas internacionais, fique atento porque você pode estar em um contrato internacional, ainda que sem perceber.
Elisa Junqueira Figueiredo
Sócia do escritório Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados.
Renan Freitas Lopes
Advogado do Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados, atua nas áreas de Contencioso Cível e Imobiliário.