A defesa do culpado
O culpado não perde a condição de sujeito de direitos no processo penal, gostem, ou não, os tiranos do bem.
terça-feira, 1 de dezembro de 2020
Atualizado às 07:37
Quem não tem formação jurídica acredita que o culpado não teria o mesmo direito de defesa dos demais acusados. Também, existem advogados que veem o culpado como alguém cuja defesa seria mais simples, na medida que o resultado final do processo judicial seria fácil antever.
Deve-se pensar o oposto. O culpado merece melhor defesa técnica, porque há muito a ser feito pelo defensor para se chegar a processo judicial e provimento jurisdicional justos que se encerrem com o mínimo de consequências legais ao crime e réu em julgamento.
Propõe-se aqui um pequeno mapa do que fazer, quando o cliente lhe confessou o fato. De início, se oferecida a denúncia, sugere-se examinar as questões de direito processual, ou seja, verificar a legalidade e a constitucionalidade da primeira fase da persecução criminal. Investigação, procedimento, medidas cautelares precisam ser confrontados com as normas aplicáveis e com os direitos individuais do suspeito, ou indiciado, o qual se encontra em juízo agora como imputado de crime.
Na sequência, deve-se destrinchar o fato e as provas do fato. Cumpre se examinarem causalidade e resultado típicos (art. 13 e 14, do CP), bem como ver como descritos na denúncia (art. 41, do CPP). Na sequência, questionar-se se o acusado deu causa ao resultado sozinho (por ação, ou omissão) (art. 13 e 29, do CP c.c. art. 239, do CPP) e se o inquérito policial contém provas materiais do fato, relação causal e resultado (art. 156, do CPP).
A natureza do crime, material ou formal, importa a esta análise, bem assim a aplicação da teoria do bem jurídico constitucional, afinal se perquire não apenas o evento material (corpus delicti), mas o resultado jurídico da conduta. Direito e processo penal andam juntos.
Examinado o acontecimento no mundo fenomênico, a dedicação da defesa passa ao juízo da tipicidade. Verificam-se qual crime, qual consequência jurídica deste crime e quais outros ramos do direito (v.g., administrativo, civil) se encontram atingidos pelo caso em exame. No juízo da tipicidade, perpassa-se pela parte geral do Código Penal, a procurar eventuais aspectos que importem à defesa técnica (causa de exclusão da ilicitude, espécies de erro, concurso de crimes, causa extintiva da punibilidade, dentre outras).
O cuidado na pesquisa da tipicidade permite adequação a crime menos grave, quando não se descobre a ausência de elementar, que seria essencial à caracterização da infração penal (18, do CP). Deve-se observar qual tipo penal as provas apontam e se, realmente, se configurou injusto típico. Portanto, não confunda a confissão do fato pelo cliente, com a ocorrência de ilícito, em especial, de infração penal.
Assim que se define a possibilidade de outra tipicidade do fato, afloram defesas processuais importantes quanto a competência e procedimento. Surgem, também, eventuais estratégias defensivas, por meio de confissão, ou mesmo acordo no processo penal (transação, suspensão do processo, acordo de colaboração, ou acordo de não persecução penal).
A problemática da culpabilidade necessita de ser enfrentada mediante cuidadosa entrevista entre advogado e cliente. Bom defensor elabora questionário sobre imputabilidade (art. 26, do CP), entendimento do agente no momento do crime, compreensão da realidade, valoração que este fazia do comportamento, do fato e do resultado. A preocupação com os aspectos volitivos demanda, ainda, por minúcias sobre o dolo (art. 18, I, do CP). E, sempre se deve ter em mente a dúvida: poderia ter o agente agido de outro modo?
Como sabido, nos crimes culposos, este trabalho sobre os aspectos anímicos desenvolve-se com maior dificuldade, no plano da imperícia, da imprudência e da negligência (art. 18, II, do CP), mas se apresenta, da mesma maneira, fundamental para defesa.
Ultrapassadas as etapas propostas, verificam-se a responsabilidade penal, as penas aplicáveis, os prováveis critérios de fixação das sanções penais e regimes de cumprimento, o dano ocasionado, tudo para se refinar a tática de demonstrar na instrução criminal pontos relevantes à individualização e à redução das consequências jurídicas do crime (art. 59, do CP).
Em verdade, o que permite o advogado realizar a construção da defesa do culpado apresenta-se o vínculo que a atividade defensiva na persecução penal possui com a legalidade estrita (art. 5º, II, da CR). O defensor deve ser intransigente na aplicação das leis, no acatamento às disposições constitucionais e no reconhecimento dos direitos individuais. Clama a todo tempo por due processo of law e tipicidade penal restrita.
Caso se dê a condenação criminal, deve-se reconhece-la como o necessário e suficiente à hipótese factual sub judice, se o espectro de provisões legais pertinentes à causa tiver sido aplicado, de forma justificada e conforme a lei.
E, se, da cuidadosa prestação de serviços advocatícios, advir sentença absolutória daquele que se disse culpado, não existe dilema deontológico, ou moral, a ser enfrentado pelo defensor, pois ele pratica atos essenciais (art. 133, da CR), que se constituem em meio para o desenvolvimento do processo judicial, como instrumento público e técnico de realização de justiça.
A absolvição fundada na rigidez probatória e legalidade dos procedimentos constitui-se no preço pago pelo Estado por dever cumprir a lei em qualquer fase da persecutio criminis. Nas democracias, o que importa é a proteção da liberdade jurídica do indivíduo (art. 5º, II, da CR), direito que remanesce, ainda que de modo residual, até mesmo, para o culpado, condenado com trânsito em julgado.
O culpado não perde a condição de sujeito de direitos no processo penal, gostem, ou não, os tiranos do bem. Pode, portanto, ser absolvido por diversas razões. Os advogados que repitam a si próprios as palavras de Horácio: "Cumpre vosso dever, e deixai o resto aos deuses" (Corneille, Horácio, ato II).
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*Antonio Sergio Altieri de Moraes Pitombo é advogado, mestre e doutor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pós-doutor no Ius Gentium Conimbrigae (Universidade de Coimbra). Sócio do escritório Moraes Pitombo Advogados.