O papel da telemedicina na sobrecarga do sistema público de saúde
Adotada em caráter excepcional durante o combate à pandemia causada pelo novo coronavírus, a telemedicina se apresenta como instrumento de combate à negligência assistencial.
segunda-feira, 30 de novembro de 2020
Atualizado às 12:52
A tecnologia permeia as mais diversas áreas da Medicina, seja de modo a auxiliar na realização de exames e procedimentos com maior precisão e de maneira menos invasiva, seja na integração de informações para um melhor e mais completo tratamento, seja no estreitamento da relação médico-paciente através de instrumentos de comunicação utilizados com fins de assistência e promoção da saúde.
A implementação da tecnologia dos meios de comunicação no âmbito da saúde trouxe, junto à aproximação entre os sujeitos da relação, um formato de atendimento até então pouco explorado (tendo em vista as suas amplas opções) diante das limitações impostas ao exercício da telemedicina.
Apesar de não ser uma ferramenta nova, a telemedicina - definida pela Declaração de Tel Aviv como o "o exercício da medicina à distância, cujas intervenções, diagnósticos, decisões de tratamentos e recomendações estão baseadas em dados, documentos e outra informação transmitida através de sistemas de telecomunicação" - se tornou tema de grande relevância e tomou maiores proporções após a pandemia causada pelo COVID-19. O enfrentamento a essa doença deu causa ao distanciamento social que, por sua vez, tem o fim maior de reduzir e retardar o contágio da população bem como de não sobrecarregar o sistema público de saúde.
Nessa toada, a necessidade de continuidade aos tratamentos já iniciados e de prestar acompanhamento aos pacientes fez com que a forma de realização dos atendimentos fosse repensada, e trouxe a telemedicina como uma alternativa eficaz e segura, apresentando-se como uma ferramenta de grande valia ao sistema de saúde como um todo. Em decorrência disso, a Lei Nº 13.989/2020, de 15 de abril de 2020, autorizou o seu uso, de modo excepcional, enquanto durar a crise ocasionada pelo coronavírus (SARS-CoV-2); entrementes, inegável que a telemedicina pode ofertar muito mais, visto o seu poder de alcance.
Inicialmente pensada para atender a pacientes em locais ermos e com escassez de profissionais médicos, essa ferramenta passou a ser considerada também como uma solução passível de implementação não só em serviços privados e saúde suplementar, mas também no sistema público de saúde, o qual é responsável pelo atendimento de vasta parcela da população brasileira. A sua adoção em caráter excepcional, em tempos de combate ao novo coronavírus, observou a possibilidade de redução da circulação de pessoas em serviços hospitalares e ambulatoriais, nos quais os pacientes estariam mais expostos a doenças contagiosas e, por consequência, poderiam vir a necessitar de leitos hospitalares em decorrência de eventual agravamento em seu estado de saúde.
Mesmo estando na pauta da saúde pública há anos e tendo um grande potencial, a evolução da sua regulamentação no Brasil tem caminhado a passos lentos, contando com uma norma reguladora que não se mostra suficiente (Resolução CFM Nº 1.643/2002). Observa-se que a telemedicina já se mostrava presente através do comum contato entre médico e paciente aplicativos via de mensagens instantâneas, teleconferência, dentre outros; entretanto, a limitação ao seu exercício não permitia o seu aprimoramento e expansão. Em razão da emergência em saúde pública causada pelo COVID-19, foi possível constatar a sua necessidade, bem como a possibilidade de reduzir a sobrecarga de um sistema, garantindo aos seus usuários atendimento eficaz.
Observada a eficiência e plausibilidade de sua adoção para períodos extra pandemia, a telemedicina vem a ser um instrumento de combate à negligência assistencial a que são submetidos milhares de brasileiros, à migração de pacientes para grandes centros em busca de tratamento, observando que a escassez de médicos em determinadas regiões seria atenuada, e à redução do estrangulamento do sistema em sua atual formatação. Além disso, auxiliaria na redução de custos e riscos no transporte de pacientes e na facilitação de acesso a especialistas, visto que determinadas regiões, diante da insuficiência de recursos e estrutura, não atraem esses profissionais.
Insta salientar que a possibilidade de uso dos meios de tecnologia para fins de promoção à saúde propicia garantias constitucionais, notadamente o direito de acesso à saúde, que é dever do Estado, e a dignidade da pessoa humana. Desse modo, deve-se considerar a telemedicina como um instrumento capaz de mitigar as desigualdades no acesso à saúde levando a possibilidade de atendimento a localidades desprovidas desse, bem como de reduzir a sobrecarga do sistema de saúde público.
Como bem pontuado pelo conselheiro Adelmir Humberto Soares, quando da exposição de motivos da Resolução (já revogada) de Nº 2.227/2018 do Conselho Federal de Medicina - CFM, a qual disciplinava a telemedicina como forma de serviços médicos mediado por tecnologias, "nos tempos atuais, é importante registrar que a telemedicina é a ferramenta com maior potencial para agregar novas soluções em saúde e que muitos dos procedimentos e atendimentos presenciais poderão ser substituídos por interações intermediadas por tecnologias".
Como uma ciência em constante evolução, necessita de investimento e implementação prática, bem como de necessidade de regulamentação para aplicação em períodos habituais. Não se pode olvidar, ainda, que a sua aplicação é diretamente ligada à tecnologia, a qual não tem a sua disponibilidade de acesso em todas as partes do Brasil e que carece de investimento em infraestrutura, para que exista efetividade na aplicação da telemedicina e redução nos contrastes de acesso a serviços básicos de saúde no país.
Isto posto, apesar de não ser possível encarar a telemedicina como a solução para todos os problemas em assistência no sistema público de saúde, ela poderá ser uma grande aliada da saúde pública, sendo a sua implementação necessária. Após o enfrentamento da pandemia causada pelo novo coronavírus, mostra-se imprescindível a regulamentação do uso da telemedicina, com a sua incorporação ao sistema único de saúde com maior qualificação e capacitação dos profissionais, possibilitando, assim, o acesso e desopressão do sistema.
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DECLARAÇÃO DE TEL AVIV. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 16/05/2020.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM 2.227/18, Revogada. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 16/05/2020.
BRASIL. Lei 13.989/20, de 16 de abril de 2020. Dispõe sobre o uso da telemedicina durante a crise causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2). Brasília: DOU, 2020. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13989.htm>. Acesso em: 16/05/2020.
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, de 5 de outubro de 1988. Brasília, DF. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 16/05/2020.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM 1.643/2002. Define e disciplina a prestação de serviços através da Telemedicina. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 16/05/2020.
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*Mona Gabriela Matos e Cruz é advogada associada ao Escritório Giesta, Galvão & Saraiva. Pós-graduanda em Direito da Saúde, atuando exclusivamente no interesse de médicos e clínicas. Especialista em Processo Civil.