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Acusação criminal não pode ser apaixonada

O fato penal, na imprensa, já nasce desfigurado e manipulado, e a partir daí o linchamento público se inaugura.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Atualizado às 15:03

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

"...'falso acusador' (em grego diabolos, 2Tm 3.3; Tt 2.3)."1

Carnelutti, jurista inigualável, já nos alertava no século passado sobre a insaciável curiosidade da turba pelo processo penal. "O interesse da população pelos processos, sobretudo pelos penais", diz o italiano, "mas também pelos civis, sempre existiu. Hoje, todavia, é provável que os estímulos da imprensa tenham aguçado esse interesse"2. O fato penal, na imprensa, já nasce desfigurado e manipulado, e a partir daí o linchamento público se inaugura. O jurista, humano que é, não está imune às investidas da paixão e da cólera, tornando-se vulnerável ao fanatismo e ao histerismo, e aos juízos sumários e precipitados que deles resultam. Se, no entanto, souber olhar para além da superficialidade que a imprensa revela, o recente caso penal envolvendo a blogueira Mariana Ferrer pode fornecer ao jurista a mais sólida e precisa lição sobre a razão de ser do Ministério Público. Como a existência do Parquet é um fato consumado, poucas pessoas se colocam a questionar: porque um órgão específico e estruturado para fazer acusações criminais? Não temos ações penais privadas? Advogados não bastariam, como bastam no cível, para tal mister? No estágio atual da civilização parece despiciendo discutir a imprescindibilidade do Ministério Público. É, como disse, um fato consumado inquestionável. No entanto, quando vemos um promotor de Justiça ser alvo de linchamento público por postular a absolvição de um acusado, percebemos que a nossa pretensa civilização precisa ser sempre relembrada de como e porque chegamos até aqui.

Quando iniciamos o estudo do processo penal, aprendemos, com Tourinho Filho, que ele não é senão um "substitutivo civilizado da vingança privada"3. Civilizado. Não basta, assim, substituir a vingança privada por uma vingança pública. O que significa dizer isso? Que a acusação - e a pena, vale dizer -, é fruto de uma reflexão, ou, em termos jurídicos, de um devido processo. Se a acusação e a punição fossem deixadas às paixões inflingidas pela imprensa, se a inocência ou a culpa de um desgraçado fosse decidida por um tablóide ou por uma multidão de ocasião, a referida substituição já não seria civilizada. Bettiol ensina que a pena, para não se transmudar em vingança, tem de resultar de uma reflexão, e não um impulso vingativo:

"Quando também hoje se afirma que a pena é uma publica vindicta, se quer somente frisar que a aplicação da pena é remetida exclusivamente às mãos de uma autoridade pública, isto é, ao Estado, não já dizer que a pena encerra em si a natureza e as características da vingança. Muitas vezes temos observado como a pena se inicia quando termina a vingança e os impulsos que dão razão à vingança. A vingança é fruto de um impulso e, portanto, de uma emoção não controlada pela razão e é frequentemente desproporcionada relativamente à sua entidade do mal ou do dano causado. A pena, ao invés, se tal quer mesmo ser e ficar, é fruto de uma reflexão."4

Pois bem. Como fazer, então, para blindar o processo penal dos impulsos da paixão e da pura vingança? Como evitar acusações falsas, movidas por interesses inconfessáveis? Eis a razão de ser do Ministério Público. Para ser mais preciso, torna-se fundamental recorrer às lições do maior dos processualistas, Carnelutti:

"...mesmo que a acusação privada seja logicamente admissível e praticamente ativa, ela apresenta perigos, pelos quais o objetivo acusatório não pode normalmente ser confiado à parte lesionada. De um lado, o perigo é que à acusação privada falte energia. (...). Por outro lado, quando não se verifique a hipótese agora prevista e, ao contrário, em face da possibilidade de restituição ou ressarcimento a parte lesionada seja estimulada a perseguir o castigo, seu interesse pode impulsioná-la a agir com excesso, isto é, além dos interesses da justiça; enquanto contra um imputado privado de meios a parte lesionada não tem razão de insistir apesar de sua convicção da culpa do réu, se este é, pelo contrário, endinheirado, pode o interesse dominá-la a agir sem piedade ainda que esteja convencida de sua inocência."5

Carnelutti então prossegue para sustentar, brilhantemente, a imparcialidade da acusação feita pelo Ministério Público:

"Estas reflexões se dirigem àquele princípio da acusação pública, que faz parte já da tradição do juízo penal. (...). ...o acusador não pode nunca ser o sujeito do interesse lesionado pelo delito; mais correta seria a fórmula que contrapõe à acusação da parte a acusação de ofício ou, sem mais, à acusação parcial a acusação imparcial. O acusador público, assim, não é uma parte. (...). O problema da acusação pública tem assim o aspecto de um jogo de palavras, cuja fórmula paradoxal é a de parte imparcial."6

Entregar a movimentação da persecução penal à vontade de particulares traz, portanto, dois inconvenientes mutuamente excludentes: ora a impunidade, ora acusações falsas. Ernst Von Beling também alertava que o particular "no asume el molesto papel de acusador sino por motivos personales, de suerte que tanto existe el peligro de que no se acuse aunque el interés del Estado lo requeira, como el peligro contrario de que el odio, la venganza y otros motivos bastardos originen procesos sin fundamento (Ernest Beling, Derecho procesal penal, trad. Miguel Fenech, Madrid, Ed. Labor, 1943, p. 65)."7

A existência do Ministério Público atende, portanto, às exigências da Justiça de que o processo seja um "substitutivo civilizado da vingança privada". A acusação feita pelo Ministério Público é imparcial justamente por não estar o promotor, financeira ou moralmente, subordinado aos interesses, nem sempre nobres, do suposto ofendido. Com a vitaliciedade, a irredutibilidade de subsídios e a inamovibilidade, o membro do Parquet não tem compromisso senão com a sua consciência e com a Justiça. A acusação privada, por outro lado, não pode ser senão uma acusação parcial, pois "os advogados", ressalta Calamandrei, "são feitos para serem parciais"8. Enquanto o assistente de acusação, comprometido financeira e moralmente com o ofendido, deve postular pela culpa do acusado, sem precisar se convencer desta culpa, o Ministério Público, pela sua condição de parte imparcial, tem a isenção de ânimo e o desinteresse suficientes para formular o pedido que atenda aos interesses da Justiça, que podem não coincidir com os interesses do pretenso ofendido. Enquanto a parcialidade do advogado, que lhe é imposta pela parcialidade de seu cliente, o faz tutelar senão o interesse exclusivamente particular, a imparcialidade do Ministério Público lhe permite tutelar, simultaneamente, dois interesses públicos:

"Aqui o Estado deve tutelar, ao lado do interesse social da repressão, outro interesse público: deve impedir que a tranquilidade dos honestos seja turbada por acusações temerárias, e que as armas da justiça, utilizadas em prejuízo dos que devem defender, sirvam para proteger baixas paixões ou vergonhosas especulações. E o órgão do Estado, a que se atribui o exercício da ação penal, surgido pela necessidade de tutelar, ao mesmo tempo, ambos os interesses, tem a obrigação e o dever de prover a uma e outra tutela".9

Toda essa homenagem ao Ministério Público, que não é meramente retórica ou protocolar, é antes uma homenagem ao devido processo legal. Ao processo onde a paixão não penetra; onde a paixão não obnubila a acusação; onde a acusação não é movida por interesses inconfessáveis; onde a acusação é feita de maneira técnica e sóbria. O processo penal não é e não pode ser jamais um palco para ativismos ou debates ideológicos. Muito menos um lugar para "acrar". É um "instrumento de defesa social e não de vingança desses pequeninos Demóstenes da diatribe, desses Robespierres de fachada, mais interessados na sua própria promoção..."10. Reus res sacra. É colocar a vingança no lugar da Justiça, a paixão acima da razão, a parcialidade no lugar da imparcialidade. Em suma: a barbárie no lugar da civilização. É ignorar toda essa evolução história e racional que culminou com o surgimento de um órgão tal qual o Ministério Público. A Constituição Federal consolidou esse avanço civilizatório no art. 129, I, ao atribuir, com exclusividade, a titularidade da ação penal pública ao Ministério Público. Essa atribuição é uma garantia fundamental do cidadão de que terá um profissional imparcial, equilibrado e justo encarregado de promover a ação penal. Não podemos esquecer jamais o imortal exemplo do promotor de Justiça Eduardo Araújo da Silva, do caso Bar Bodega, que, sozinho e contra a turba ensandecida, evitou um erro judiciário. E evitou um erro judiciário da maneira mais completa e verdadeira possível: não simplesmente evitando a condenação de um inocente11, mas impedindo uma acusação injusta contra ele. A acusação criminal feita por um órgão da estatura e seriedade do Ministério Público não pode ser apaixonada, por ser uma contradição em termos. Tamanha a importância e a dificuldade de tão delicada função, que Calamandrei, coberto de razão, enunciou: "Entre todos os cargos judiciários, o mais difícil, segundo me parece, é o do Ministério Público."12

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1 PFEIFFER, Charles. F. Et al. Dicionário Bíblico Wycliffe, Trad. Degma Ribas Júnior, 2015, p. 25.

2 CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo, Trad. Roger Vinícius da Silva Costa, Editora Pillares, São Paulo, 2015, p. 27.

3 FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal, Vol. 1, 34ª Edição, Saraiva, 2012, p. 39.

4 BETTIOL, Giuseppe; BETTIOL, Rodolfo. Instituições de Direito e Processo Penal, Trad. Almicare Carletti, Editora Pillares, São Paulo, 2008, p. 140. (sem grifos no original).

5 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal, Vol. 1, Trad. Francisco José Galvão Bruno, Editora Bookseller, São Paulo, 2004, p. 214, 215. (sem grifos no original).

6 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal, Vol. 1, Trad. Francisco José Galvão Bruno, Editora Bookseller, São Paulo, 2004, p. 215.

7 FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal, Vol. 1, 34ª Edição, Saraiva, 2012, p. 574.

8 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, Editora Pillares, 2013, Trad. Ivo de Paula, p. 88.

9 FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal, Vol. 1, 34ª Edição, Saraiva, 2012, p. 574. (sem grifos no original).

10 FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal, Vol. 1, 34ª Edição, Saraiva, 2012, p. 573.

11 Carnelutti, com a sensibilidade que lhe era peculiar, chamava atenção para o grave erro daqueles que acham que a absolvição do inocente impede o erro judiciário: "A declaração negativa de certeza, ainda que se chame absolvição, não é outra coisa, na verdade, que o descobrimento e a declaração de um erro judicial. Ainda que esta fórmula possa surpreender, porque estamos habituados a pensar que com a absolvição, pelo contrário, o erro judicial é evitado, tão logo se medite um pouco sobre ela a surpresa desaparece; mesmo quando a absolvição seja pronunciada nas primeiras fases do juízo, ela vem depois de um início de processo contra quem mais tarde se reconhece inocente; mas precisamente porque, grande ou pequeno, o processo é uma pena, como negar que quanto àquele tanto de pena que o inocente sofreu com ele, foi injustamente castigado? Tudo o que se pode admitir é que, sem a absolvição, o erro judicial teria sido mais grave; portanto não para excluir o erro judicial mas para diminuir-lhe o alcance serve a absolvição." (CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal, Vol. 1, Trad. Francisco José Galvão Bruno, Editora Bookseller, São Paulo, 2004, p. 145).

12 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, Editora Pillares, 2013, Trad. Ivo de Paula, p. 55.

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*Nadir Mazloum é advogado associado ao escritório Lopes, Rezende & Mazloum Advogados.

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