"Pas de nullité sans grief" domesticado
Na elaboração de um código, antes de redigir seus dispositivos devem ser estatuídos os princípios que o nortearão.
quarta-feira, 25 de novembro de 2020
Atualizado às 09:07
Processo nulo e prejuízo
Pas de nullité sans grief não significa que a nulidade só será declarada se for demonstrado o prejuízo. Seu sentido é outro. Quer dizer que não se declara a nulidade se for possível demonstrar a inocorrência de prejuízo. Passamos a demonstrar.
Na elaboração de um código, antes de redigir seus dispositivos devem ser estatuídos os princípios que o nortearão.
Estabelecidos os princípios de um Código de Processo e, consequentemente, de um processo, esses princípios vão representar as pedras fundamentais sobre as quais será montado o restante da estrutura do processo. Essas pedras, as fundamentais, não podem jamais ser retiradas. Se forem, o processo desaba, assim como desaba o circo se retiradas as bases de seus mastros e mastaréus. A pena não pode ser aplicada em processo que está desabando. O acusado só pode se submeter à punição se o processo estiver íntegro, vale dizer, se seus princípios gerais estiverem todos firmes, de pé, incólumes e, por consequência, toda a estrutura do processo seja confiável. Constitucionalmente confiável e insuspeita.
Os princípios processuais obedientes à Constituição Federal adotados por ocasião do planejamento de um código se transformam em dispositivos legais. Esses dispositivos serão os fundamentais, pois são legítimos representantes daqueles princípios. Eles contêm previsão de atos processuais. São os atos essenciais. Os atos essenciais do processo são aqueles responsáveis pela efetividade dos princípios fundamentais de direito processual penal. As garantias do processo consistem no cumprimento dos princípios assegurados por esses atos. A não realização desses atos, ou a realização deles em desconformidade com a lei, acarreta na sanção de nulidade. Logo, são as nulidades que protegem o cumprimento dos princípios e das garantias do processo. Sem nulidades não há garantias.
Na essência, um automóvel são rodas, motor, freio e direção. O resto não é essência. Um edifício são fundações, pavimentos, escadas ou elevadores e telhado. Uma partida de futebol são dois times, uma bola e duas goleiras. Se tirar as rodas do automóvel, ele não anda, deixa de ser um automóvel. O mesmo se dá se tirar o motor, o freio ou a direção. Um edifício sem fundações, nem é erguido, não existe. Sem pavimentos, não é edifício. Idem se não tiver elevador, ou escadas, ou telhado. É um não edifício. E uma partida de futebol sem bola não é uma partida de futebol, é um encontro de dois times. Sem uma goleira ou sem um time não é jogo. Nessas condições, o automóvel, o edifício e a partida de futebol não existem, são nulos. Nulo é o inexistente. Nulo quer dizer zero. Zero é o que inexiste. Nulo é nenhum, nada. O que inexiste, ou é o que inexiste realmente, ou é aquilo que lhe falta requisito de existência. A bola é requisito de existência do jogo de futebol. Os dois times estão ali, as goleiras, a torcida, o juiz, mas não tem bola. Não tem jogo. Falta requisito de existência para uma partida de futebol. Faltando requisito de existência, a própria partida de futebol não existe. O ato essencial do processo no qual falta requisito de existência não existe.
O processo, em seu interior, é relação jurídica. Em seu exterior, um procedimento. O procedimento é composto por atos essenciais, assim como um automóvel, um edifício, uma partida de futebol. Sem suas colunas mestras, ele se transforma em uma tramitação cartorária e burocrática de atos sem significado de relação jurídica processual. Sem suas fundações, sem seus atos essenciais, é um não processo. É processo inexistente. É nulo absolutamente. Não existe.
Quando se tenta impor a tese de que "em se tratando de nulidade, a prova de prejuízo é essencial", além disso representar desconhecimento conceitual do instituto, é também a concepção meramente instrumental (e unilateral da instrumentalidade) do processo crime se fazendo presente - uma infeliz importação da doutrina processual civil. Coloca-se de lado o significado do processo penal como garantia do indivíduo. O enfraquecimento da importância do instituto das nulidades constitui tema de extrema gravidade, pois representa a decadência das garantias do processo penal frente aos desmandos do Estado. A expressão "efetividade do processo penal" é mais uma importação ideológica do processo civil. É esquecido que o processo penal efetivo é também aquele que assegura o direito de liberdade do inocente, pois que o Código Penal, onde ele não é norma incriminadora é direito penal de liberdade. É assim nas normas discriminantes de ilicitude, de culpabilidade, nas causas de extinção de punibilidade, em todo "papel não impresso de tinta da parte especial", ou seja, nos vácuos existentes entre as tipicidades penais. Todas as garantias e direitos fundamentais do acusado, especialmente o do devido processo, são assegurados pela sanção de nulidade. Processo penal em que se exige prova do prejuízo da nulidade é processo com garantia, mas sem sanção em caso de seu descumprimento. Ou seja, processo de garantia oca. Um processo ornamental.
Onde reside o prejuízo?
Ao final da instrução processual, as partes disporão daquilo que podemos denominar de acervo indiciário (ou acervo probatório). É com base nele que elaborarão suas teses de fato e de direito, e o juiz, na sequência, julgará. Esse acervo comportará mais de uma tese. Ele contém indícios e contraindícios. Quanto maior a quantidade e a boa qualidade do material colhido, tanto melhor. Boa qualidade quer significar fidedignidade, confiabilidade. Quantidade, fidedignidade e confiabilidade são as qualidades que se espera de um acervo bom e válido. Válido, pois se estiver viciado por nulidade lhe faltará quantidade, fidedignidade confiabilidade. É justamente a falta dessas propriedades que se chama de "prejuízo". O prejuízo é a perda de quantidade ou de qualidade do acervo probatório decorrente da falta de ato ou de formalidade processual. O prejuízo diz respeito às consequências desses atos ou formalidades faltantes, ao que deixa de ser produzido por efeito da falta. Em um processo instruído por juiz absolutamente incompetente (pelo juiz que não o juiz natural), há fidedignidade no acervo probatório resultante da instrução? Qual a confiabilidade do acervo em que funcionou perito suspeito no processo? São suficientes a quantidade e a qualidade do acervo em que atuou defensor negligente? Estando o prejuízo no acervo probatório, como provar?
Comparando o que existe com o que não existe. Prova impossível do prejuízo
Nulidade é omissão. Sendo omissão de ato essencial ou de formalidade essencial de ato essencial, é impossível concluir, comumente, pela ausência de prejuízo. Isso só seria viável caso se comparasse o processo do ato omitido com o processo do ato realizado. Ora, isto, no mundo real, é impraticável. Desta inviabilidade concreta fica-se em dúvida quanto à existência de prejuízo. No ano de 1982, já explicávamos as razões da impossibilidade de se fazer prova do prejuízo das nulidades na maioria dos casos, e de por que essa prova devia ser dispensada: "Acontece que a nulidade é omissão. Por ser omissão (de ato ou de formalidade), torna-se difícil, muitas vezes, afirmar se houve ou não prejuízo. Só se poderia verificar a existência, ou não, do prejuízo caso se comparasse o processo do ato realizado com o processo do ato não realizado. Ora, isto é, jurisdicionalmente inviável. Desta inviabilidade fica-se em dúvida quanto à existência de prejuízo. Considerando que verificação de prejuízo diz respeito à valoração de provas, o magistrado deverá aplicar o princípio in dúbio pro reo" (Medeiros, Flavio Meirelles - Nulidades do processo penal. Porto Alegre, Síntese, 1982. p. 37). Um exemplo: para se chegar a uma decisão sobre determinado assunto foram convidadas cinco pessoas. Uma delas faltou. A reunião chegou à conclusão X. Tendo faltado uma pessoa, a conclusão X foi a acertada ou não? Houve prejuízo decorrente da ausência de um convidado? Há como determinar se houve prejuízo? Absolutamente não há. E não há porque não dá para comparar a reunião realizada com quatro convidados com a reunião não realizada com cinco.
O princípio in dubio pro reo não se aplica somente aos fatos em que incide a lei penal (a ocorrência de fato típico, a legítima defesa, como exemplos, são fatos cuja incidência está afeta à lei penal). Todos os fatos de relevância para a justiça criminal, sejam substanciais ou processuais, estão sujeitos à aplicação do princípio, entre eles, o "fato prejuízo", uma consequência da nulidade. Quando o juiz decide acerca do reconhecimento ou não da nulidade do ato processual (e prejuízo faz parte da identidade da nulidade) e lhe ocorre dúvida quanto à existência de prejuízo, estará diante do chamado prejuízo potencial, duvidoso, possível, eventual. A ele se opõe o prejuízo efetivo, aquele que material e efetivamente se verifica. Considerando que a verificação do prejuízo diz respeito à valoração de provas, e que o princípio in dubio pro reo é aplicável também aos fatos de natureza processual, há que aplicá-lo quando a nulidade de prejuízo duvidoso for favorável à defesa.
O artigo 563 do CPP está redigido como segue: "Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa." Examinado isoladamente do sistema jurídico, ele pode dar margem a duas interpretações: 1ª - a nulidade só será declarada se for demonstrado o prejuízo; 2ª - não se declara a nulidade se for possível demonstrar a inocorrência de prejuízo. Pois bem, qual a interpretação correta? Por tudo o que vimos, correta, obviamente, é a segunda interpretação. A interpretação mais difundida, mais aceita, mais conhecida e de mais fácil entendimento, é a primeira. Conforme demonstrado, normalmente é impossível comprovar o prejuízo da nulidade. O legislador não exigiria o impossível, a prova diabólica. O prejuízo pode ter ocorrido ou não. Quando ocorre, é impraticável provar. Diabólica é a prova impossível ou excessivamente difícil de ser produzida. A lei não pode exigir o impossível, o inexequível, o irrazoável, em termos de produção probatória. Consequentemente, a interpretação lógica e sistemática do artigo 563 do CPP leva à conclusão de que seu real e exclusivo significado é: Nenhum ato será declarado nulo se for possível demonstrar a inocorrência de prejuízo. Não é necessária a demonstração de prejuízo para o reconhecimento da nulidade. Não é preciso fazer qualquer prova. O prejuízo não é condição para declaração da nulidade. Porém, se for possível comprovar a ausência de prejuízo - e às vezes é -, a nulidade não é reconhecida, porque inexiste. Logo, a comprovação da ausência de prejuízo constitui reconhecimento de inexistência de nulidade. Ausência de prejuízo não é causa de impedimento de declaração de nulidade, e sim o reconhecimento da sua inexistência. Na falta de prejuízo ausenta-se a identidade da nulidade. De uma vez por todas, doutrina e jurisprudência precisam parar de repetir a fórmula "não há nulidade sem demonstração de prejuízo", substituindo-a por "só não se reconhece a nulidade se for possível demonstrar a inocorrência de prejuízo".
Prejuízos direto e indireto
O processo é composto por atos essenciais. Basta excluir um ato essencial, que se exclui o próprio processo. O prejuízo é consequência imediata e lógica. Foi sabotada a estrutura do processo, a sua configuração, a sua essência. Gustavo Henrique Badaró, em Processo Penal, Revista dos Tribunais, 3ª ed., 2015, p. 795, foi extremamente feliz ao esclarecer e demonstrar como ocorre o prejuízo nas nulidades: Em regra, o não cumprir a forma ou não observar os elementos que integram o ato processual típico causará prejuízo, sob pena de se considerar que o legislador estabeleceu uma forma ou um elemento irrelevante e inútil para a consecução do fim que se pretende atingir.
Prejuízo direto é a perda de quantidade ou qualidade do acervo probatório. É conceito que merece complementação, pois abrange apenas as nulidades que ocorrem em 1ª instância. O conceito não alcança as nulidades que se verificam nas instâncias superiores e que dizem respeito, principalmente, à supressão de intimações, prazos processuais e direitos recursais. O conceito, então, deve ser alargado para o fim de alcançar também o prejuízo ao contraditório.
É possível cogitar-se de duas concepções de prejuízo. O prejuízo direto ou imediato e o prejuízo indireto ou remoto. Prejuízo direto ou imediato é a finalidade que não foi alcançada quando o ato é omitido ou é atípico. A não realização da finalidade do ato é o prejuízo. Nessa primeira concepção, exposta por Gustavo Badaró, o prejuízo se verifica de forma imediata (automática): ato atípico -> a finalidade do ato prevista em lei não se realiza = prejuízo. Já o prejuízo indireto ou remoto é o resultado do prejuízo direto, ou seja, é a decorrência da não realização da finalidade do ato, e que produz a perda eventual (normalmente de prova impraticável) ou de quantidade ou/e de qualidade do acervo probatório. Quantidade, fidedignidade, confiabilidade são as qualidades que se espera de um acervo bom e válido - devido processo exige acervo válido. É esta perda de quantidade ou de qualidade que se chama "prejuízo". Nessa segunda concepção, o prejuízo está nas provas. O prejuízo remoto normalmente é potencial. Geralmente não há possibilidade de fazer sua prova, nem que que ele está nem que não está presente.
"Pas de nullité sans grief" domesticado
"Pas de nullité sans grief", traduzido, significa exatamente o sentido de sua literalidade: não há nulidade sem prejuízo. Assim como não há fogo sem calor. Como não há água sem umidade. O calor é inerente ao fogo, assim como a umidade à água. O prejuízo não está fora da nulidade. O prejuízo, enquanto não realização da finalidade do ato, é consequência imediata (automática) da atipicidade do ato. Sair à procura de prejuízo da nulidade como se ele, o prejuízo, estivesse fora dela, e não dentro, é colocar a mão no fogo para ver se queima, ou na água para ver se está molhada. O prejuízo direto está, em princípio, sempre presente. Eventualmente pode não estar presente o prejuízo remoto e indireto. É em face a essas considerações que, se for para prosseguir repetindo esse surrado e enfadonho "pas de nullité sans grief", que o seja com logicidade e para significar: só não se declara a nulidade se for possível demonstrar a inocorrência de prejuízo. Ora, se o prejuízo está dentro da nulidade (como o calor no fogo), a nulidade só não pode ser declarada caso se prove que ele não se faz presente. Essa é a correta leitura do artigo 563 do CPP. O prejuízo é um elemento da nulidade. Ele está na nulidade. Não é condição para seu reconhecimento. Se estiver ausente o prejuízo, ausência essa que deve ser demonstrada, não existe nulidade. Nulidade possui prejuízo porque é nulidade, ou seja, porque foi omitido ato ou formalidade essencial que possuía uma finalidade e que, pressupõe-se, não foi realizada. É preciso parar de repetir a empoeirada fórmula "só é nulo se for demonstrado o prejuízo", e se passe a experimentar o uso de "só não deve ser declarada a nulidade caso seja demonstrada a inocorrência de prejuízo". Eis a interpretação acertada do artigo 563 do CPP. O prejuízo é inerente ao conceito de nulidade. Havendo nulidade, ela deve ser reconhecida. A ausência de prejuízo é um incidente. Ela exclui a nulidade. Sendo a ausência fato excepcional, que foge à regra, deve ser comprovado. A regra é: a nulidade deve ser reconhecida. A exceção é: se não houver prejuízo não existe nulidade. Portanto, a nulidade deve ser declarada, salvo se for demonstrada a inexistência de prejuízo. Só declarar a nulidade quando demonstrado o prejuízo é inverter a regra. Pas de nullité sans grief" significa que "não há nulidade sem prejuízo". Está literalmente e absolutamente certo. Toda nulidade contém prejuízo. Se não há prejuízo, de nulidade não se trata. É isso que esse velho gaulês mal interpretado quer dizer.
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*Flavio Meirelles Medeiros é advogado e palestrante.
Artigo de AUTOR VIP.